UMA BREVE INTRODUÇÃO AOS PROBLEMAS CLÁSSICOS DA MORFOLOGIA...9 Objetivos gerais do capítulo...9

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Transcrição:

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...7 UMA BREVE INTRODUÇÃO AOS PROBLEMAS CLÁSSICOS DA MORFOLOGIA...9 Objetivos gerais do capítulo...9 1. A noção de palavra...12 2. Classes de palavras...15 3. Flexão e derivação...20 4. Primeiras conclusões...23 Leituras sugeridas...24 Exercícios...24 O ESTRUTURALISMO DE MATTOSO CAMARA JR....27 Objetivos gerais do capítulo...27 1. A solução do estruturalismo para o primeiro problema levantado: a definição de palavra...31 2. A solução do estruturalismo para o segundo problema: as classes de palavras...37 3. Outros problemas morfológicos...40 3.1 A discussão flexão x derivação...40 3.2 A questão da forma das unidades morfológicas...54 4. À guisa de conclusão: uma aplicação concreta desses conceitos...59 Leituras sugeridas...61 Exercícios...61

A MORFOLOGIA BASEADA EM PALAVRAS NA GRAMÁTICA GERATIVA...63 Objetivos gerais do capítulo...63 1. As palavras na Morfologia baseada em palavras...69 1.1 A noção tradicional de morfema e seus problemas...69 1.2 Sobre teorias morfológicas baseadas em regras...73 1.3 A Morfologia Amorfa de Anderson...81 2. Classes de palavras na Morfologia baseada em palavras...89 3. Flexão e derivação: lugares diferentes na arquitetura gramatical?...90 4. Considerações finais...97 Leituras sugeridas...98 Exercícios...99 A MORFOLOGIA DISTRIBUÍDA... 101 Objetivos gerais do capítulo... 101 1. A palavra na Morfologia Distribuída... 107 1.1 A Morfologia Distribuída propriedades e listas... 107 1.2 A arquitetura da gramática... 111 1.3 Uma derivação em Morfologia Distribuída... 113 1.4 Alomorfia e reajustes fonológicos... 121 1.5 Sobre os problemas da noção de palavra nas teorias lexicalistas e o conceito de palavra morfológica na Morfologia Distribuída... 124 2. Classes de palavras na Morfologia Distribuída... 131 2.1 Sobre as raízes acategoriais... 131 2.2 Núcleos categorizadores e fases... 135 3. Flexão e derivação... 139 4. Considerações finais... 142 Leituras sugeridas... 145 Exercícios... 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 149 BIBLIOGRAFIA... 155 OS AUTORES... 159

APRESENTAÇÃO A Morfologia, isto é, os estudos sobre as palavras, suas estruturas, suas diferenças e semelhanças, talvez seja a mais antiga das áreas de investigação linguística a receber análises sistemáticas, em diversos lugares do planeta. Há, por exemplo, plaquinhas de barro recuperadas na região da Mesopotâmia, escritas por volta de 1600 a.c., que descrevem a estrutura do verbo da língua suméria, então falada na região. O árabe conta com estudos de Morfologia que datam de cerca de 1200 a.c. O importante gramático hindu Pānini dedica boa parte de seus textos, escritos por volta do século 5 a.c., à morfologia do sânscrito, língua que era falada na época em regiões da atual Índia. E toda a tradição gramatical greco-latina é pautada pelo estudo da Morfologia, tradição que influenciou diretamente o desenvolvimento das nossas gramáticas tradicionais e, em alguma medida, da própria Linguística. Apesar dessa longa história, o termo morfologia como utilizado atualmente dentro da Linguística foi cunhado apenas na segunda metade do século XIX, e ainda há muita coisa a ser entendida no domínio da Morfologia, o que faz dele um campo de estudos fascinante. Como em todos os campos do conhecimento humano, há problemas clássicos nesse domínio com os quais todos os estudiosos devem se defrontar. Por exemplo, embora a noção de palavra seja intuitivamente muito simples (no sentido de que qualquer falante é capaz de dar um sem-número de exemplos de palavras na própria língua), não é nada fácil fornecer uma definição desse termo que cubra todas as instâncias de palavra dentro de uma mesma língua sem falar da dificuldade de chegar a uma definição de palavra que cubra todas as instâncias de palavras nas várias línguas humanas! 7

PARA CONHECER Morfologia Este nosso livro se preocupou em abordar um conjunto desses problemas clássicos da Morfologia e as respostas que diferentes quadros teóricos foram dando para eles ao longo dos anos. Os problemas que escolhemos são basicamente a definição de palavras, de classes de palavras, o problema de identificar e individuar certos processos morfológicos como a flexão e a derivação, e, finalmente, a questão da forma que as unidades morfológicas exibem. É nossa preocupação também apresentar um panorama do que se tem feito em termos de estudos morfológicos no último século. Por isso, em cada um dos capítulos que se seguem, uma teoria morfológica será apresentada, com suas respostas para esses problemas clássicos mencionados, além de outras particularidades do quadro teórico em discussão. Assim, o capítulo O estruturalismo de Mattoso Camara Jr. se empenha em mostrar que respostas o estruturalismo, na versão defendida por um dos mais importantes linguistas brasileiros Joaquim Mattoso Camara Jr. tem para as questões mencionadas. O capítulo que se segue, intitulado A Morfologia baseada em palavras na Gramática Gerativa, tem a preocupação de mostrar as respostas que o quadro clássico da Gramática Gerativa pode apresentar, discutindo também alguns de seus problemas. Finalmente, o último capítulo, chamado A Morfologia Distribuída, faz o mesmo percurso de busca de respostas para as questões colocadas, mas agora vai encontrar essas respostas no âmbito da teoria da Morfologia Distribuída. Além de ser pensado como uma introdução relativamente extensa e densa em Morfologia, acreditamos que o formato deste livro favorece largamente o exercício do pensamento científico. Apresentamos os problemas e as soluções que os diferentes quadros teóricos tentam dar a eles, e procuramos, sempre que possível, trazer os fatos do português brasileiro para serem o fiel da balança na escolha de diferentes opções que as teorias nos permitem, argumentando com base nos dados em prol de uma ou outra análise para os fatos. Esse, parece-nos, é justamente o ponto alto deste livro: além de conhecer fenômenos e problemas morfológicos, e diferentes repostas para eles, você aprenderá como funciona a argumentação científica dentro da Morfologia. Esperamos que você, leitor, tire todo o proveito que este livro pode oferecer! 8

UMA BREVE INTRODUÇÃO AOS PROBLEMAS CLÁSSICOS DA MORFOLOGIA Objetivos gerais do capítulo Neste capítulo, vamos:  examinar certos conceitos veiculados pelos estudos tradicionais de Morfologia, mostrando os tipos de problemas que eles escondem em suas definições; e  preparar o caminho para a discussão desses mesmos conceitos por outros tratamentos dados à morfologia das línguas humanas em geral e do português em particular. Os objetivos de cada seção são:  A noção de palavra: apresentaremos um problema clássico da Morfologia, que é a definição do que é uma palavra; mostraremos alguns dos problemas que a definição da gramática tradicional enfrenta.  Classes de palavras: abordaremos outro problema clássico, que é o da definição das classes de palavras; discutiremos a necessidade da divisão das palavras em classes e quais critérios devem nos guiar para assentar o seu número; mostraremos alguns dos problemas que as classes de palavras, tal qual apresentadas nos estudos tradicionais, suscitam.  Flexão e derivação: examinaremos a questão da diferença entre flexão e derivação nos estudos tradicionais, um tema que se revela importante para estudos de Morfologia feitos sob outros prismas teóricos. 9

PARA CONHECER Morfologia A Morfologia é uma das áreas mais tradicionais dos estudos gramaticais. Seu estudo, como o conhecemos, remonta às primeiras formulações da gramática tradicional pelos gregos, e é sem dúvida a parte mais desenvolvida das nossas gramáticas normativas: embora em geral haja apenas dois ou três capítulos dedicados à formação das palavras, na verdade mais de Em vista do caráter em geral normativo das gramáticas tradicionais, usaremos, ao longo do livro todo, as expressões gramática(s) normativa(s) e gramática(s) tradicional(is) como se fossem sinônimos; contudo, estamos cientes de que nem tudo nos estudos tradicionais tem o aspecto normativo como centro, e que a expressão gramática tradicional se refere principalmente a um conjunto de trabalhos com caráter descritivo dentro de uma tradição de estudos gramaticais. dois terços das páginas das gramáticas são dedicadas à Morfologia, quando tratam da descrição detalhada das diversas classes de palavras do português. No entanto, a sua vida longa não garante acuidade para o tratamento morfológico tradicional. Examinaremos a seguir uma série de problemas morfológicos clássicos que recebem tratamento bastante superficial e incoerente nas gramáticas tradicionais e que por isso mesmo devem ser estudados por outras abordagens que diferem da gramática tradicional porque são abordagens de natureza científica, que nos permitirão compreender esses problemas, e suas consequências, em toda a sua extensão. Abordagens científicas É importante apresentar uma defesa aqui para a ideia de que as gramáticas tradicionais não podem ser chamadas de teorias científicas, porque falta a elas um conjunto de propriedades definitórias da empreitada científica, do qual escolhemos algumas poucas para apresentar a seguir: (i) As teorias científicas estão comprometidas, antes de mais nada, com a descrição dos fatos tal qual se apresentam no mundo, fazendo, quando muito, um recorte metodológico sobre eles, como, por exemplo, os dados de fala de uma certa comunidade. Por sua vez, as gramáticas tradicionais, em geral, selecionam os fatos que consideram pertinentes 10

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia com base no que esperam obter, e assim os dados que levam em conta, que a princípio viriam de fontes literárias, não consideram jamais as fontes literárias que não se comportam como o esperado: Guimarães Rosa, por exemplo, é citado com sentenças de Primeiras estórias, jamais com trechos de Grande sertão: veredas; (ii) As teorias científicas desenvolvem uma terminologia própria, que muda na medida em que o conhecimento sobre o objeto avança e se revela necessário mudar termos ou acrescentar outros para tornar a descrição dos fatos ou sua explicação mais precisas. A gramática tradicional, ao contrário, considera que os termos não devem sofrer alterações; em particular, a gramática tradicional do português deve seguir a terminologia imposta pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), o que restringe radicalmente sua cobertura; (iii) As teorias científicas não podem conter contradições internas, ou seja, as definições dos termos ou propriedades não podem ser contraditas por outras definições de termos ou propriedades; na gramática tradicional, encontramos contradições como, por exemplo, assumir em um momento que o sujeito é um termo essencial da oração, mas poucas páginas à frente assumir igualmente que existem orações sem sujeito (cf. Cunha e Cintra, 2001: 122 e 129). Vamos examinar a definição de palavra e a de classes de palavras que as gramáticas tradicionais do português nos fornecem; a seguir, vamos discutir um problema que para os estudos tradicionais sequer é um problema, visto que é dada como certa a diferença entre processos derivacionais como aquele que cria o adjetivo lavável a partir do verbo lavar e processos flexionais como aquele que dá a forma plural meninos para a forma singular menino. Contudo, a fronteira entre esses dois processos está longe de ser bem delimitada e, se não por outras razões, pelo menos por isso esse é um problema que merece um estudo aprofundado e consistente. 11

PARA CONHECER Morfologia 1. A NOÇÃO DE PALAVRA Os estudos tradicionais (por exemplo, aqueles levados a cabo nas gramáticas normativas do português) historicamente dedicam bastante atenção para a palavra, tema central da área conhecida como Morfologia. Esses estudos abordam uma série de problemas interessantes que merecem a atenção de qualquer morfólogo. O primeiro desses problemas é: o que é uma palavra? A gramática tradicional (doravante GT) de Cunha e Cintra (2001: 75), por exemplo, respondem a essa pergunta do seguinte modo: Palavra é uma unidade maior do que o fonema e menor do que a frase. Essa definição tem a grande vantagem de ser enunciada de maneira clara e num primeiro momento parece bastante boa, porque todos nós, intuitivamente, sabemos que caixa, pó ou sofreguidão são palavras e, de fato, todas elas são compostas por mais de um fonema e nenhuma delas é uma frase (algo que, intuitivamente também, sabemos ser composto por várias palavras, como o menino saiu chorando). No entanto, devemos notar de imediato que a definição de frase desses mesmos autores é um pouco distinta da nossa definição intuitiva. Para eles, frase é a menor unidade comunicativa. Agora é preciso averiguar se, com essa nova ideia sobre o que é frase, a definição de palavra continua sendo boa. Imagine um diálogo como o que está em (1): (1) A: Onde está a Maria? B: Saiu. Se você não lembra desse conceito da Fonologia, aconselhamos consultar o livro Para conhecer fonética e fonologia do português brasileiro, de Izabel Seara, Vanessa Nunes e Cristiane Lazzarotto-Volcão, também publicado pela Contexto. É verdade que a resposta de B contém mais elementos do que de fato estão presentes claramente, é possível inserir ali o pronome ela como sujeito da sentença, o que daria aos gramáticos a saída de dizer que estamos frente a uma estrutura com algum tipo de elipse. Por outro lado, com ou sem elipse, também é verdade que o verbo conjugado sozinho é uma resposta adequa- 12

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia da. Portanto, não há dúvida de que Saiu, nesse contexto discursivo, funciona perfeitamente como uma unidade comunicativa e por isso é uma frase pela definição dada. Logo, uma frase pode ser composta por uma única palavra, o que já compromete parcialmente a definição de palavra que acabamos de ver. O problema da definição de palavra dada anteriormente, contudo, é ainda mais sério. Embora seja verdade que a maior parte das palavras da língua seja constituída por mais de um fonema, também é verdade que existem palavras constituídas por um só fonema, como o artigo definido a ou o pronome oblíquo átono o ou ainda o verbo ser na 3ª pessoa do singular do presente do indicativo, que tem a forma é. Aliás, este último caso é particularmente interessante porque mostra que uma palavra pode ser formada por um único fonema e se constituir em uma unidade comunicativa completa, como vemos no diálogo em (2). (2) A: A Maria é a aluna mais inteligente da sala? B: É! Mesmo admitindo que estamos aqui também frente a um caso de elipse, se É! é uma resposta adequada nessa interação comunicativa, então acabamos de mostrar que uma palavra pode ser constituída por um único fonema e ainda assim valer por uma frase (na definição dada). O problema pode ser colocado nos seguintes termos: embora a GT estabeleça uma hierarquia com base no tamanho das unidades frase, palavra e fonema para definir palavra, o que os fatos da língua nos mostram é que em termos de tamanho essas unidades não se distinguem, já que podem ser idênticas, isto é, um mesmo elemento da língua pode representar essas diferentes unidades. Em (3), temos uma representação visual do problema (3a) traz justamente a equação proposta por Cunha e Cintra (2001), mas em (3b) temos a equação que os dados nos dizem ser a realidade da língua: (3) a. frase > palavra > fonema b. É! = é = /ɛ/ Portanto, a definição de palavra oferecida por esses gramáticos não é adequada porque ela não chega a distinguir de outras unidades diversas a unidade que supostamente está sendo definida, incluindo as que fazem parte da definição. 13

PARA CONHECER Morfologia Como se não bastasse, observamos que na língua existem outras unidades intermediárias entre as unidades nomeadas pela GT, que, no caso, seriam a frase e a palavra. Entre elas, por exemplo, temos os grupos nominais (como a menina de vestido verde) e as expressões idiomáticas (como enxugar gelo). Entre palavra e fonema, temos, por exemplo, as sílabas (como -ni- em menina ou ver- em verde) e certos formativos morfológicos (como des- em desinformado ou -al em laranjal). Você deve estar se perguntando se o problema não é dessa gramática normativa especificamente; porém, outras gramáticas normativas, como a de Carlos Henrique da Rocha Lima, a de Napoleão Mendes de Almeida ou a de Paschoal Domingos Cegalla se valem de definições similares a essa, às vezes fazendo uso do critério de escrita: identificamos a palavra na escrita porque é aquele termo que vem circundado por espaços em branco. Contudo, observe que quem escreveu colocando os espaços em branco já tinha que saber o que é palavra, certo? E como é que ele sabia disso? E mesmo essa ideia de separar as palavras na escrita por espaços é bem recente, porque em tempos de economia de papel esse não era um hábito corrente... E, além do mais, o que dizer de espaços em branco na fala? Dado que palavras não são unidades só da escrita, qualquer critério razoável deve se aplicar também à língua falada. O problema, claro, não é trivial: embora todos nós tenhamos uma definição intuitiva do que é palavra, isto é, embora sejamos todos capazes de dizer o que é uma palavra do português e o que não é, as noções morfológicas tradicionais têm muita dificuldade para definir precisamente esse objeto gramatical. Na verdade, as definições das gramáticas tradicionais só nos parecem razoáveis porque nós já sabemos intuitivamente o que são palavras. E mesmo assim, há casos em que a nossa intuição bate de frente com o que diz a gramática tradicional, como mostram certos usos de termos que em tempos anteriores da língua eram apenas partes de palavras, mas que hoje são tomados como palavras independentes (por exemplo, o uso de ex para fazer referência ao ex-marido ou ao ex-namorado) e também os inúmeros problemas de segmentação da escrita que encontramos em textos de crianças e adultos. A segmentação do fluxo da fala Todos nós nos defrontamos com o problema de identificar e isolar as palavras no fluxo da fala durante a nossa primeira 14

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia infância e conseguimos com algum sucesso separar as palavras da língua, apesar de elas aparecerem todas grudadas quando as pessoas falam ao nosso redor. Há anedotas diversas sobre o assunto, como a famosa brincadeira um bigo, dois bigos, em que a primeira sílaba da palavra umbigo é entendida como o artigo indefinido. À parte as anedotas, há problemas de segmentação que persistem pelas mais variadas razões e assim encontramos na escrita o problema exatamente contrário ao da anedota mencionada: os exemplos clássicos são coisas como (eu) teamo ou porisso. Aqui claramente o falante entende como uma palavra única aquilo que a tradição gramatical convencionou tratar como palavras separadas, escritas, portanto, com um espaço entre elas: te amo ou por isso. Vamos retornar várias vezes ao problema da definição de palavra ao longo deste livro. Veremos que a definição mesma do que é palavra depende numa larga medida do quadro teórico em que se está tentando formular essa definição, inclusive porque pode acontecer de a unidade palavra não ser a unidade mais importante para uma dada teoria. Por isso, ligada indiretamente ao problema da definição de palavra está a questão de sabermos se os processos morfológicos se realizam sobre palavras, sobre pedaços de palavras (como quer que os chamemos: afixos, radicais etc.), ou se tanto sobre uma coisa quanto sobre outra, dependendo de qual processo morfológico está em jogo. Notemos que a tradição gramatical não identifica um problema aqui, isto é, a gramática tradicional não se questiona sobre se a unidade pertinente da Morfologia é mesmo a palavra, mas pode ser que isso faça uma grande diferença, a começar pelo fato de palavras supostamente pertencerem a alguma classe, como veremos a seguir, uma exigência que não pesa sobre os pedaços de palavra. 2. CLASSES DE PALAVRAS Um segundo problema sobre o qual os estudos tradicionais já se debruçaram é o da classificação das palavras, isto é, a divisão das palavras em diferentes grupos segundo certas propriedades da sua interpretação e/ou da sua forma. 15

PARA CONHECER Morfologia A princípio, as classes de palavra nos parecem óbvias, intuitivas e necessárias; afinal, como viver sem verbos, substantivos, adjetivos, interjeições etc.? Como cientistas da linguagem, contudo, a primeira pergunta que devemos fazer é justamente: será que é mesmo necessário dividir as palavras em diferentes classes? No senso comum, quando fazemos uma divisão de coisas em grupos distintos é porque reconhecemos que elementos pertencentes a cada um desses grupos podem ser necessários em momentos distintos e será mais fácil acessar um determinado item se já soubermos de antemão onde (ou como) procurá-lo. Essa é a razão, aliás, pela qual organizamos os papéis importantes em pastas ou gavetas na nossa casa, as comidas em doces e salgadas, os seres vivos em vertebrados e invertebrados etc. Note que classificar o que quer que seja exige um bom critério; de outro modo, corremos o risco de não encontrar o que queremos no momento da necessidade. Assim, se alguém vai organizar os papéis nas gavetas da mesa, convém pensar num bom critério para fazer isso; um critério mal pensado para a divisão causa um problema na hora de fazer buscas. Por exemplo, adotando um critério de distribuição dos papéis que coloque na primeira gaveta os papéis brancos, na segunda os papéis azuis e na terceira os papéis amarelos, se a pessoa precisar de uma conta de água para servir de comprovante de residência, ou ela se lembra da cor da conta ou precisa procurar em todas as gavetas isso para não mencionar o problema de classificar todos os documentos que não têm essas cores ou para classificar aqueles que são multicoloridos. Deu para perceber qual é o problema? Voltemos à questão de dividir as palavras em classes. Os estudiosos têm assumido como indiscutível a necessidade de colocar as palavras em diferentes classes, já que elas têm propriedades morfológicas distintas por exemplo, as palavras classificadas como substantivos sempre exibem um gênero gramatical (masculino ou feminino), enquanto as classificadas como verbo não podem exibir gênero; por outro lado, verbos podem exibir morfologia de tempo e modo, mas substantivos não podem. Adicionalmente, a distribuição sintática dessas diferentes classes é distinta: lugares na frase em que deve aparecer um verbo não podem ser ocupados por um substantivo, como mostra o par em (4) a seguir: 16

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia (4) a. A Maria viu verbo o Pedro na rua. b. *A Maria visão substantivo o Pedro na rua. Como já é praxe em boa parte da literatura linguística, utilizaremos um asterisco (*) para indicar uma construção sintática ou uma formação morfológica que é impossível na língua. Portanto, parece mesmo que alguma classificação das palavras é necessária. Mas qual é a melhor forma de fazer isso? A NGB propõe uma divisão em dez classes: 1. Substantivo 6. Verbo 2. Artigo 7. Advérbio 3. Adjetivo 8. Preposição 4. Numeral 9. Conjunção 5. Pronome 10. Interjeição A primeira pergunta que podemos fazer é: afinal, por que dez classes? Por que não sete (que é um número cabalístico) ou nove (que tem quadrado perfeito)? Note que historicamente não foram sempre essas as classes de palavras postuladas pela gramática tradicional por exemplo, os particípios verbais já constituíram uma classe independente da dos verbos; também é digno de nota o caso das interjeições, uma classe deliberadamente criada pelos gramáticos latinos para que o número de classes de palavras da gramática latina fosse o mesmo da gramática grega, já que o latim, diferentemente do grego, não possui uma classe de artigos (nas gramáticas gregas, as interjeições eram parte da classe dos advérbios). Mas a questão principal não é simplesmente sobre o número de classes. O ponto central na verdade é: que critérios guiam essa classificação? A pergunta é particularmente relevante quando examinamos a última classe proposta pela GT, a das interjeições é razoável ter as interjeições como uma classe separada? Observe que boa parte das palavras dadas como exemplo de interjeições Atenção!; Corra!; Devagar! já pertence a alguma outra classe respectivamente substantivo, verbo e advérbio nos exemplos anteriores. Além disso, enquanto as outras classes de palavras são partes do discurso, isto é, são classes gramaticais, as interjeições remetem a situações 17

PARA CONHECER Morfologia e falas inseridas nessas situações, o que já seria suficiente para estabelecer uma distância considerável entre esta classe e as outras. Independentemente de haver uma boa resposta para as questões colocadas, é possível identificar um conjunto de problemas para a classificação adotada pela gramática tradicional: 1. Ela não é precisa: A definição de advérbio para Cunha e Cintra (2001: 541) diz que: o advérbio é, fundamentalmente, um modificador do verbo. [...] A essa função básica, geral, certos advérbios acrescentam outras que lhe são privativas. Assim, os chamados advérbios de intensidade e formas semanticamente correlatas podem reforçar o sentido: a) de um adjetivo; b) de um advérbio. [...] Saliente-se ainda que alguns advérbios aparecem, não raro, modificando toda a oração. Na página 543 de sua gramática, os autores fornecem a classificação dos advérbios da NGB, na qual aparecem os advérbios de dúvida e, dentre eles, a forma provavelmente. Como mostram Mioto et al. (2013), é verdade que provavelmente pode modificar (se é que modificar é o melhor modo de descrever o que acontece aqui...) a frase toda, um adjetivo, um outro advérbio e também um verbo: (5) a. Provavelmente [o João doou os livros para a biblioteca] (e por isso os livros não estão mais aqui). b. O João doou livros [provavelmente novos] (não velhos) para a biblioteca. c. O João doou [provavelmente ontem] (não hoje) os livros para a biblioteca. d. O João [provavelmente doou] (não vendeu) os livros para a biblioteca. No entanto, as sentenças em (6) a seguir mostram que essa não é a história toda, porque nelas provavelmente está modificando um grupo nominal o sujeito em (6a), e o objeto em (6b) e um grupo preposicional em (6c). (6) a. [Provavelmente o João] (não a Maria) doou os livros para a biblioteca. b. O João doou [provavelmente os livros] (não as revistas) para a biblioteca. c. O João doou os livros [provavelmente para a biblioteca] (não para o bar). 18

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia Portanto, ou advérbios não se definem como querem Cunha e Cintra (2001), ou provavelmente não é um advérbio. 2. Ela não é muito útil: Cunha e Cintra (2001: 177, 379) definem respectivamente substantivo e verbo como: (7) a. Substantivo é a palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral. b. Verbo é uma palavra de forma variável que exprime o que se passa, isto é, um acontecimento representado no tempo. Como já notou Perini (1995), a definição em (7a) exige que saibamos o que se quer dizer com seres. Para o senso comum, que homem ou mesa possam ser concebidos como seres parece indiscutível, mas será que viagem, ideal, beleza e nostalgia também podem ser assim concebidos? E representado no tempo, que aparece em (7b), o que quer dizer? Viajou ou encontrará são acontecimentos representados no tempo sem muita controvérsia; já estava não é muito claro que seja um acontecimento e sem dúvida viagem, que não é um verbo, pode ser concebido como um acontecimento representado no tempo... Ora, é difícil manusear definições se elas dependem de conceitos que não dominamos bem e, portanto, a utilidade delas está obviamente em questão. 3. Ela não é homogênea: Comparando as definições de substantivo e de advérbio, vemos que os critérios para definir as classes são díspares: trata-se de um critério semânticofilosófico no primeiro caso, mas distribucional-funcional no segundo caso. A conclusão que podemos tirar dessa breve discussão é que essa classificação deixa muito a desejar, porque tem problemas insolúveis de organização. Além disso, ela não é morfológica, no sentido de apontar imediatamente para as propriedades tipicamente morfológicas das palavras que constituem as diferentes classes... Contudo, ao invés de abandonar completamente a ideia de dividir as palavras em classes, veremos que as teorias linguísticas modernas desenvolvem classificações particulares para as palavras fazendo uso de outras estratégias e tendo como base critérios bem mais refinados e transparentes. 19

PARA CONHECER Morfologia 3. FLEXÃO E DERIVAÇÃO Há muitos outros problemas que se colocam para as teorias mais modernas de Morfologia, mas a verdade é que os estudos tradicionais nem sonham com eles. Por exemplo, a gramática tradicional toma como certo que existem processos morfológicos distintos como a flexão e a derivação (para não falar de composição e outros processos, como a siglagem), mas não se detém em fornecer argumentos consistentes em defesa desta posição. Supõe-se, por exemplo, que a flexão tem propriedades como a obrigatoriedade, que a derivação não tem; contudo, não há uma resposta clara para a seguinte questão: que propriedades morfológicas cada uma dessas operações teria para justificar uma separação entre elas? Além disso, sabemos que não é muito simples estabelecer a fronteira entre elas em particular, as fronteiras entre a derivação (sufixal) e a flexão, dado que esses processos fazem, ambos, uso de elementos que se juntam ao final da palavra. Um pouco de terminologia Os estudos tradicionais dão nomes diferentes aos elementos que participam das diferentes operações morfológicas. Chamamse desinências os elementos que participam de processos flexionais, como a expressão de número nominal plural que vemos em as rosas (analisado como a-s rosa-s), ou a expressão de tempomodo e número-pessoa nos verbos, como se vê em cantássemos (em que -sse- é responsável pela expressão do imperfeito do subjuntivo e -mos é que veicula a ideia de 1ª pessoa do plural). Por outro lado, a gramática tradicional chama de afixos os elementos morfológicos que participam de processos derivacionais, reconhecendo aí duas classes distintas: a de prefixos (caso em que o elemento derivacional aparece à esquerda do item que está sendo derivado, como em infeliz, analisado com in-feliz) e a de sufixos (quando o elemento derivacional aparece à direita do item que está sendo derivado, como em felizmente, analisado como feliz-mente). A gramática tradicional do português também faz uso de termos cunhados pelo estruturalismo (como morfema, alomorfe etc.), que discutiremos no próximo capítulo, onde receberão a definição pertinente e apresentaremos os exemplos relevantes. 20

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia A dificuldade da separação advém principalmente do fato de que não existem processos ou propriedades morfofonológicas exclusivas de uma ou de outra dessas operações. A título de ilustração, tanto derivação quanto flexão fazem uso de sufixos e não há nenhum processo fonológico, por exemplo, que possa afetar a derivação que não possa afetar a flexão. Vejamos um exemplo concreto em (8) a seguir. Em (8a), temos um exemplo de flexão em que a presença do morfema de plural parece desencadear a abertura da vogal no radical; por outro lado, (8b) mostra que esse mesmo fenômeno pode acontecer também na derivação: (8) a. [ô]sso > [ó]ssos b. cal[ô]r > cal[ó]rico Em nenhum dos casos acima o processo é geral e desencadeado em todos os itens que poderiam exibi-lo por exemplo, moço, que tem uma forma fonológica muito similar a de osso, não exibe a abertura da vogal do radical na forma plural moços. Isso quer dizer que nós não estamos falando de um processo fonológico automático da língua, isto é, um processo que ocorre em qualquer circunstância, estando ou não em jogo algum processo morfológico, como é o caso em (9), em que temos a sonorização da fricativa alveolar sempre que seguida por uma consoante sonora, sendo um caso de flexão, como (9a), com a forma vês do verbo ver, ou de derivação, como em (9b), ou um simples encontro de sílabas dentro de uma palavra, como em (9c): (9) a. (tu) ve[z] dedos, (tu) ve[s] telhas b. de[z]ditoso, de[s]temido c. de[z]de, de[s]te Portanto, talvez não haja razões propriamente morfológicas para distinguir operações como flexão e derivação. Será que outras propriedades justificam essa distinção? Seja como for, esse conjunto de observações nos leva ao último item da nossa pauta de investigação: o problema da forma das unidades em Morfologia. Há uma questão adicional colocada por exemplos como (9), que é exatamente o problema da variação da forma de um dado item dependendo, em certos casos, da sua vizinhança. Os estudos tradicionais já se deram conta disso, embora não pareçam muito preocupados com o fenômeno. Cunha e Cintra (2001), por exemplo, em certo ponto de sua discussão so- 21

PARA CONHECER Morfologia bre a desinência de plural nominal, chamam a atenção para o fato de que o mesmo elemento pode se apresentar sob diferentes formas. O exemplo que os autores dão está em (10) a seguir: (10) a. casa[s] b. casa[s] pequenas c. casa[z] bonitas d. casa[z] amarelas Esses, contudo, não são os casos mais complicados para tratar, porque o fenômeno de mudança de forma aqui corresponde a um processo fonológico automático na língua, e por isso dizemos que ele é fonologicamente condicionado. Mais complicado mesmo é quando a distância fonológica é grande, e não há outro processo fonológico similar na língua por exemplo, no domínio verbal, aparentemente tanto -o quanto -i são marcas da 1ª pessoa do singular, dado o que vemos em (11): (11) a. canto/vendo/abro b. cantei/vendi/abri A pergunta que se coloca então é: a existência de variação na forma dessas desinências, variação essa que não pode ser explicada pela Fonologia, é um problema da Morfologia? Como ela deve tratá-lo? Finalmente, podemos nos colocar o problema exatamente contrário: será que o fato de existir coincidência na forma de muitos afixos e desinências, como os que vemos em (12), deve ser tratado como tratamos a coincidência de forma das palavras, isso é, por meio dos conceitos de homonímia ou de polissemia? Ou há outro modo de tratar desse problema? (12) a. chaleira, roqueira, amendoeira b. eu cantava, ele cantava Homonímia e polissemia Relembrando: estamos diante de polissemia quando falamos de uma palavra que possui vários significados relativamente relacionados entre si um exemplo clássico são as diversas acepções do verbo achar, em frases como Maria achou a chave e João acha Maria inteligente. 22

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia Por outro lado, quando os diversos significados de uma palavra não têm qualquer relação entre si, dizemos que estamos frente ao fenômeno de homonímia: as palavras em questão têm a mesma forma fonológica, mas isso é basicamente uma coincidência este é o caso de manga (a fruta) e manga (da camisa), que diacronicamente provêm de fontes bastante distintas e entraram no português em diferentes momentos da história da língua. Você pode aprofundar sua compreensão desses conceitos consultando o Manual de semântica, de Márcia Cançado, publicado também pela Contexto. Será que podemos falar de homonímia ou polissemia quando estamos frente a -eiro em bombeiro e açucareiro? Será que a melhor maneira de tratar a coincidência de formas entre cantava (primeira pessoa do singular do pretérito imperfeito do modo indicativo) e cantava (terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do modo indicativo) é por meio da noção de homonímia? Evidentemente, muitas dessas questões não se colocam para os estudos tradicionais porque, para o tipo de objetivo que eles têm, que é fundamentalmente normativo, a descrição acurada dos fenômenos que de fato são atestados pelas línguas em geral e pelo português em particular não é necessária e nem muito interessante. Várias dessas questões são colocadas por abordagens modernas, que têm outros objetivos os objetivos da Linguística, que começam por tentar descrever detalhadamente os fenômenos das línguas para chegar a fornecer uma explicação para eles. Este livro não pretende abordar em profundidade todas essas questões, mas de qualquer modo aqui e lá tocaremos em algumas delas e veremos que as diferentes teorias linguísticas, por força dos seus pressupostos, se veem comprometidas a responder a essa ou àquela questão de maneira mais sistemática e abrangente. 4. PRIMEIRAS CONCLUSÕES Vimos neste capítulo que há uma série de problemas morfológicos que são clássicos, no sentido de que mesmo os estudos tradicionais os abordam. O primeiro deles é a definição de palavra; o segundo é a divisão das palavras 23

PARA CONHECER Morfologia em classes. Vimos que as gramáticas tradicionais não têm boas soluções para esses problemas e nem para outros que enunciamos brevemente na última seção, que incluem a distinção entre flexão e derivação, distintas formas para o mesmo conteúdo de afixos e desinências, e mesma forma fonológica para afixos e desinências que expressam diferentes conteúdos. Os próximos três capítulos pretendem fornecer as respostas que as teorias linguísticas do século XX apresentaram para esses problemas. Leituras sugeridas Há uma série de livros de introdução à Linguística que fazem boas críticas às abordagens tradicionais, mostrando alguns problemas que elas têm. Um que nos parece particularmente bom é o livro de John Lyons, Introdução à Linguística teórica. Esse é um livro antigo, nem sempre fácil de achar, razão pela qual indicamos também um outro livro de John Lyons, que se chama Lingua(gem) e Linguística. O livro de Mario Perini, Gramática descritiva do português, dedica seus dois primeiros capítulos à tarefa de fazer um estudo crítico dos conceitos da gramática tradicional. Sua leitura é simples e pode ser bastante útil para quem começou agora a se aventurar nos estudos da linguagem que partem de outra perspectiva que não a prescrição. Além disso, a própria Contexto já publicou outros estudos na área de Morfologia que discutem muitos dos problemas tratados aqui. Veja, por exemplo, o trabalho Formação e classes de palavras no português do Brasil, de Margarida Basílio, ou o já clássico livro de Maria Carlota Rosa, Introdução à morfologia. Exercícios 1. Aplique a definição de palavra de Cunha e Cintra (2001) aos itens linguísticos a seguir e diga, para cada um deles, se eles correspondem ou não a uma palavra: (a) [de plástico] (b) canela (c) [Idade Média] (d) sub- 24

Uma breve introdução aos problemas clássicos da morfologia 2. A gramática tradicional assume que existem dez classes de palavras no português. Imagine que você tem que fazer uma teoria na qual apenas sete classes seriam admitidas. Que classes você pensa que poderiam ser fundidas de modo a fornecer o resultado final de sete classes? 3. As gramáticas tradicionais assumem a existência de dez classes de palavras no português, mas nas últimas páginas da discussão sobre advérbios normalmente surge uma décima primeira classe, algumas vezes chamada de palavras de difícil classificação, na qual estão palavras como eis ou só. (a) Essas palavras têm alguma propriedade que as assemelhe entre si, de modo a efetivamente configurar uma classe? (b) Se este não é o caso, a que classes essas palavras deveriam pertencer? 25