RABECA: UM SOM DA FESTIVIDADE BENEDITINA 1. No que se refere à presença dos elementos musicais na manifestação da Marujada

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RABECA: UM SOM DA FESTIVIDADE BENEDITINA 1 Dário Benedito Rodrigues Nonato da Silva 2 - PPG-UFPA No que se refere à presença dos elementos musicais na manifestação da Marujada de São Benedito de Bragança 3, neste artigo procuro demonstrar e dar a conhecer um desses significados tendo como cenário as influências dos brancos no contexto da Vila de Bragança, à luz de um escrito de José Veríssimo em Estudos Amazônicos 4. Um olhar em Veríssimo em suas Cartas... e rápidas reflexões Uma visão panorâmica da historiografia e da literatura da Amazônia brasileira 5 que militou entre o fim do século XIX e o começo do século XX destacaria, como referência obrigatória, um nome que representava cabalmente aquele momento de transição: José Veríssimo. Transição da subjetividade romântica para o despertar de um cientificismo que marcaria o período realista-naturalista no Brasil. Talvez não o mais criativo de todos, mas que produziu em seu tempo lúcidos ensaios, cartas, livros e deixou um legado de sua impressão e preocupação com o desenvolvimento mais tênue da Amazônia 6, em especial ao seu Estado de nascimento. Além de ser fruto da terra, Veríssimo se apresenta uma nova crítica e revelava um marcado caráter de cunho científico. Imbuído dos ideais que pugnavam pela objetividade no tratamento do fato literário e pela observação sistemática dos ambientes, adotando alguns procedimentos de empréstimo às Ciências Sociais, ampliou o campo de suas investigações, entendendo a literatura como uma manifestação que devia ser inserida num contexto mais amplo, que incluía as dimensões do cultural e do social. A filosofia e a doutrina das luminares da Europa do século XIX tiveram ampla divulgação entre nós: o positivismo de Comte, o determinismo de Taine, o evolucionismo de Darwin, aliados a outros literários como Spencer 7. Tanto que o espaço amazônico foi totalmente modificado à luz dos moldes da art noveau francesa 8 que, ao lado da vertente cientificista, propagou-se também como um sentimento nativista, não mais voltado para o 1

exótico indianista, como no romantismo, mas para uma saudável tentativa de descoberta das nossas diferenças culturais em relação à Europa. José Veríssimo, sem desprezar esta abertura do enfoque literário em direção à postura crítica que ampliava a compreensão do fenômeno cultural, não descurou da valorização do elemento estético na descrição densa do que via e ouvia, sentia e julgava com teor literário, que construía uma consciência da Amazônia, como Estudos Amazônicos, que tem sido vítima da perpetuação de alguns rótulos contrários ao estilo da sua prosa e ao seu suposto desinteresse ou descabida crítica. Por esse motivo nada convencional, fiz uma alusão da maneira com que Veríssimo escreveu uma parte pequena do livro As Cartas com a pesquisa que engendro destinada à Dissertação de Mestrado, ressaltando a importância de um instrumento que a Marujada traz a lume, na elogiável execução de suas performances: a rabeca. No livro estão reunidos os vários volumes de escritos publicados nos finais do século XIX e que, numa iniciativa da UFPA foram agrupados. A faceta universalista da obra do nosso crítico se encontra agora conservada num compêndio, quiçá, até por ele mesmo desejado. Esse ensaio, em particular, reflete uma tendência de interpretação dos mundos presentes em Veríssimo (o europeu e o amazônico), formulada por um intelectual brasileiro. O leque de temas abordados se configura amplo e revela uma preocupação com a compreensão do espaço, da circularidade cultural 9, longe de qualquer sentimento xenófobo. Pode-se, quem sabe, até chamar de dialético este processo porque ele consiste num embate de experiência literária e espiritual, por meio da tensão entre o dado local e os moldes herdados da tradição européia. Em especial, na música, na superação constante de obstáculos, entre os quais o sentimento de inferioridade que um país novo, tropical e largamente mestiçado, desenvolve em face de velhos países de composição étnica estabilizada, com uma civilização elaborada em condições geográficas bastante diferentes. O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização se encontra, todavia ante particularidades de meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos 2

padrões europeus que a educação lhe propõe e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes. A referida dialética se nutre deste dilaceramento, que observamos em Veríssimo do final do século XIX em suas Cartas. Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento de condescendência em relação ao país, a pretexto de amor pela terra, ilustra bem esta posição que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas. O Modernismo rompeu com este estado de coisas. Essas deficiências, supostas ou reais, foram reinterpretadas. Acentuou-se a rudeza, os perigos, os obstáculos da natureza tropical. O mulato e o negro são definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração, exemplo. O primitivismo era, naquele momento, fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem. Mário de Andrade, em Macunaíma (a obra central e mais característica do movimento), compendiou alegremente lendas de índios, ditados populares, obscenidades, estereótipos desenvolvidos na sátira popular, atitudes em face do europeu, mostrando como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial correspondia, na tradição popular, um valor recalcado que precisava adquirir estado de literatura. Ao lado do problema de aceitação (poder-se-ia até dizer redenção) destas componentes recalcadas da nacionalidade, colocava-se de modo indissolúvel o problema da sua expressão. Enfim, a rabeca como expressão musical beneditina Dependente de várias leituras que não fiz, e sob o prejuízo de meses em que me proibiram a pesquisa, descobri um problema entre muitos no culto e devoção a São Benedito em Bragança: a utilização de um instrumento de influência européia, a rabeca. O número de escravos para cá destinados era elevado e a sua posse garantida aos proprietários de terras e senhores de escravos no âmbito urbano. Não era tão tênue a diferença entre os aspectos rurais versus aspectos urbanos, já que a Vila de Bragança se desenvolvia do outro lado do rio Caeté, com pouca movimentação de pessoas, gêneros e 3

víveres para outras direções. É certo que a construção de uma pequena sede, por Álvaro de Souza, denominada Vila Souza do Caeté, já era um grande passo rumo a certa autonomia do lugar, embrenhado no meio do mato bom, verdadeiro (caa + y + eté, em tupi) 10. Dedicada à proteção de Nossa Senhora do Rosário, a fundação da freguesia (termo que corresponde atualmente ao entendimento de paróquia ou uma tutela eclesiástica), o lugar já demonstrava vários cenários favoráveis à dominação em ambas questões, pelos fartos recursos humanos para o trabalho escravo: os índios, em várias comunidades distribuídos e pertencentes a padres, colonos e proprietários. Só em 1754, com a elevação da freguesia à categoria de cidade, um incremento é garantido, com a vinda de vários casais de colonos açorianos, destinados às áreas de produção agrícola, incentivando a produção de bens para a subsistência e para o abastecimento do resto da capitania 11. É evidente que no contexto do século XVIII essa investida era parte do projeto dominador da Amazônia. Em seguida, percebe-se uma certa organização estrutural que posso chamar hoje de urbanidade, seja na construção de casas na área onde hoje é o centro do município e do templo onde funcionou a Matriz de Nossa Senhora do Rosário (atualmente a Igreja de São Benedito) 12 seja na comercialização de vários gêneros agrícolas. Segundo os autos da devassa de 1764 13, mesmo com todas essas investidas políticas, não se satisfaziam as necessidades de crescimento demográfico e da organização administrativa de então. A introdução do trabalho escravo, para atender à lógica da economia da época, escravista, dependente e agro-pastoril, foi a saída para os colonos, que passam a apostar nesse recurso como a principal estratégia econômica e produtiva. O número crescente desses escravos negros evidenciou sua necessidade na mão-de-obra como base das relações de trabalho, a adequação ao sistema colonial à dinâmica interna de atendimento aos mercados consumidores do restante do país e à produção diversificada de alimentos e outros produtos. Vários estudiosos do assunto são unânimes em estimar mais de 53.072 negros adentrados no Grão-Pará, entre 1755 e 1820, tendo Belém como pólo re-distribuidor desse contingente de trabalhadores 14. 4

Provavelmente foi este o cenário em que aconteceu a fundação da Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança 15. Os mecanismos de dominação eram de tamanho poder que, de acordo com as pesquisas sobre escravidão urbana, o culto e devoção dos escravos negros serviam como estratégias de resistência do elemento cultural negro e de todo o seu imaginário social característico 16. É importante salientar que não trabalho com o mito da democracia racial ou da pureza racial para que afirme que o ritual da Marujada é autóctone e originalmente bragantino. Oriundas de uma tradição medieval, as irmandades e/ou confrarias tinham seu sentido principal o culto e a devoção coletiva a algum santo católico, organizando sempre em grupos de irmãos 17 celebrações e festas, além de serem responsáveis pela construção de vários templos religiosos ao santo dedicados, reunindo elementos étnicos, pobres caboclos das praias, campos e vilas, com caráter assistencialista, às vezes, sobrevivendo até a primeira metade do século XX, quando a Igreja Católica incentivou novas associações religiosas onde o seu controle era maior e mais evidenciado, na formação ideológica e no atendimento aos seus objetivos institucionais, fruto do processo de romanização 18 herdado do século XIX. Logicamente, a essência das manifestações de negros escravos mesmo com toda a sua inoperância estrutural e não no âmbito das relações com o sagrado, é de mescla dos elementos de várias origens: o negro escravo, por excelência, na musicalidade e na sensualidade do lundu, o caboclo amazônico, que se apegou a esse ritual, dando a sua feição e o elemento branco europeu, que influenciou (e até dominou) os significados dos rituais, quer com a introdução de danças e ritmos europeus (mazurca, valsa), quer com os instrumentos de sua cultura, num ritual simbólico 19. As relações de trabalho e de sobrevivência na escravidão do Brasil Colônia e Império, não só na antiga vila de Bragança, foram marcadas por conflitos e espaços de negociação, resistência, fuga e mescla de costumes comuns, mas que também ganharam expressões próprias com os rituais religiosos, mesmo considerados coisificação e animalização. E esse quotidiano de dominação, esperança de liberdade e de manifestação 5

do culto a São Benedito cresceu, tomou corpo e atraiu outros sujeitos sociais, inclusive os brancos senhores e membros da elite bragantina. Aqui é que possivelmente encontraremos a rabeca, espécie antiga de violino, de som fanhoso e rústico, incrementado à musicalidade da Marujada pelos brancos e por seu caráter controlador dentro da estrutura social da própria Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança. Hábitos e costumes culturais dos africanos são conservados, mas aprimorados com o som lânguido da rabeca, construída artesanalmente. O termo rabeca se refere a um instrumento de cordas tocado com arco. Segundo Mário de Andrade, no Dicionário Musical Brasileiro, rabeca é como chamam ao violino (antigo) os homens do povo no Brasil. Nas classes cultas é voz que já não se escuta mais. Desde a vulgarização do instrumento, pela segunda metade do século XIX, o chamaram de rabeca entre nós. Entre as formas pelas quais passou a palavra em várias línguas encontram-se rabé, rabel, rebel, rabil, raben, rabec, rebec, rabeca, rebeca, rebeb, rebeba, rubeba, rabebillo, rebequim, rabequim, rabecão, etc. No século XIX e na configuração da música popular, a rabeca passou a ser empregada por artistas populares de rua e em grupos e bandas populares do Norte e Nordeste do Brasil. Em algumas regiões do interior, como na Amazônia, em Bragança, durante o mês de dezembro, a rabeca é um dos instrumentos de base nas comemorações da folia dos marujos e no acompanhamento de suas danças rituais da Marujada de São Benedito. No Nordeste, na folia de reis, onde grupos se apresentam acompanhando os festejos do Dia dos Santos Reis, em janeiro. Este instrumento seguramente foi introduzido a partir do momento em que os brancos tentaram moldar ainda mais a religião e a cultura negra, impondo-se com novos ritmos aos folguedos e batuques. Já os negros foram induzidos a homenagear seus 6

senhores, assimilando em circularidade sua bagagem cultural, lítero-musical e religiosa. O que era apenas de cunho religioso, os escravos transformaram em religiosidade, lazer e resistência. A Igreja Católica, mesmo influente e dominadora, permitiu esse tipo de manifestação cultural porque, de uma forma ou de outra, ajudava a consolidar tradições religiosas em meio à cultura popular, numa afirmação cada vez maior da instituição e de seu espaço na hierarquia cultural da Colônia e do Império. A Marujada, muitas vezes realizada no interior da Igreja foi vista como um folguedo agressivo e disforme, até ser proibida em meados da década de 1880, como decisão da Igreja Católica. No entanto, esses rituais acabaram por assimilar e incorporar elementos católicos, através das orações em latim arcaico, destinadas a conseguir graças do Santo Negro, rezas e petições, louvores e folias, também em honra a Virgem Maria (como o é ainda a padroeira de Bragança desde então, Nossa Senhora do Rosário). A rabeca se adaptou muito bem a estas condições, ao permitir, e mesmo forçar, a proeminência da interpretação européia da musicalidade sensual do lundu, da intervenção subjetiva do músico, inclusive a ditar os ritmos da execução das danças da Marujada, da técnica de se tocar sobre a interpretação racional do momento sem o tradicional e rudimentar rufar dos tambores negróides 20. A rabeca acompanhou até as rezas dos negros, também como símbolo religioso em todo o cerimonial 21, portador de uma aura que lhe assegura dimensão sagrada. Sua finalidade, a exemplo dos demais instrumentos (o reque, o tambor, o pandeiro, a onça), é compor o acompanhamento musical e rítmico da dança da Marujada de São Benedito. Em todos, encontramos latente o sentimento de que a expressão livre, principalmente na execução da música para a dança da Marujada, é a grande possibilidade que tem para manifestar-se num lugar de contrastes (laicismo e arregimentação católica, libertação nos costumes, formação da opinião política), onde tudo se mistura e que as outras manifestações musicais não correspondem à realidade desses músicos. 7

Tendo feito uma síntese da presença do instrumento nos anos em que me envolvo na temporalidade da pesquisa, faço consideração ao assunto na cultura bragantina e a sua posição atual. Desta feita, a obra de José Veríssimo foi escrita num tempo em que já estavam bastante modificadas as condições de formação do nosso pensamento, com indícios claros de uma tentativa de superação de valores locais e de uma tirania européia no que se refere aos padrões, hábitos e costumes 22. Em vários artigos jornalísticos, depois dos anos 1980, ou pouco antes, noto a constituição de um período novo na vida do uso da rabeca entre nós. Nos dois decênios de 80 e 90, um admirável esforço de construir uma música válida 23, pela crescente integração de outros agentes sociais a este contexto, entre festivais estaduais e municipais, numa intransigente fidelidade ao local 24. Hoje, vejo um anseio generalizador, procurando fazer da expressão musical um estandarte de inteligência formal e de pesquisa especializada 25. É importante destacar atualmente a formação dos músicos bragantinos ainda desconhecidos do circuito musical regional, atraindo a atenção para que, como a Marujada de Bragança, conservando suas raízes e protegendo-as pela defesa cultural, seja garantida uma permanência importantes no contexto da festividade, como a própria história conta e da qual a rabeca é testemunha. Deste modo, os negros e os caboclos de Bragança fincaram sua identidade cultural, especialmente no âmbito da religiosidade 26, abraçando a musicalidade 27 da rabeca dos brancos, legando ao presente a Festividade do Glorioso São Benedito, para que as gerações futuras possam perpetuar o som dessa festa 28. Notas 1 Artigo apresentado ao XXIII Simpósio Nacional de História 2005. 2 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia, da UFPA, Belém. 3 Auto dramatizado da Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança, fundada por escravos em 03.09.1798. 4 Cf. VERÍSSIMO, José. Nas Malocas. In: Estudos Amazônicos. Belém: EDUFPA, 1970. p. 116-123. 5 Algumas das reflexões recentes da historiografia amazônica se encontram em PRIORE, Mary del & GOMES, Flávio. Os Senhores dos Rios. Amazônia, margens e Histórias. Rio de Janeiro: ELSEVIER, 2003. 6 Artigo de José Veríssimo sobre a educação na Amazônia, especialmente como instrumento de civilização pode ser encontrado em BEZERRA NETO, José Maia. Os Males de Nossa Origem: O Passado Colonial Através de José Veríssimo. In: BEZERRA NETO, José Maia & GUZMÁN, Décio de Alencar. (orgs.) Terra Matura: Historiografia & História Social da Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2002. p. 39. 8

7 Sainte-Beuve e Zola compuseram um imprescindível quadro de referências para quem desejasse entender a literatura como um sistema de trocas no mercado das novas idéias. 8 Dois trabalhos esclarecem, em critérios metodológicos específicos da história social, essas mudanças urbanísticas no final do século XIX: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-époque. 1870-1912. 2 a edição. Belém: Paka-Tatu, 2002 e SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do Velho Intendente. Belém: Paka-Tatu, 2004. 9 Amplo aparato metodológico de história social se encontram em THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa. (3 vols.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 10 Cf. descrição mais ampla em BORDALLO DA SILVA, Armando. Contribuição ao Estudo do Folclore Amazônico na Zona Bragantina. Belém: Falângola Editora, 1981 e em CEZAR PEREIRA, Benedito. Sinopse da História de Bragança. Belém: Imprensa Oficial, 1963. 11 Outras considerações podem ser obtidas em ROSÁRIO, Ubiratan. Saga do Caeté: folclore, história, etnografia e jornalismo na cultura amazônica da Marujada, Zona Bragantina, Pará. Belém: CEJUP, 2000. 12 Antiga denominação da atual Igreja de São Benedito, objeto que foi da troca pelo templo beneditino numa área mais ampla da parte urbana central da Vila de Bragança à época, então em construção, com recursos arrecadados pela irmandade beneditina. Ver em GIAMBELLI, Dom Miguel Maria. Bragança e seus Templos Católicos. Diocese de Bragança. Inédito, 1993. mimeo. 13 Autos de devassa de 1764 Códice n. 145 Correspondência de Diversos com o Governo. Anais do Arquivo Público do Pará, v.3, t.1, 1997. pp.112-137. 14 Cf. SALLES, Vicente. O Negro no Pará. Sob o Regime da Escravidão. Brasília: Ministério da Cultura; Belém: Secretaria de Estado de Cultura SECULT; Fundação Cultural Tancredo Neves, 1988 e BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra na Amazônia (Sécs. XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001. 15 Ver em NONATO DA SILVA, Dário Benedito Rodrigues. A Essência Beneditina: Escravidão e Fé na Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança, do século XVIII ao XIX. Monografia de Conclusão do Curso de História. Bragança: UFPA, 2002. 16 Cf. FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Inimigos de Classe e Irmãos de Fé: escravos e senhores nas irmandades religiosas na Amazônia do século XIX. Belém: UFPA, 2001. 17 A religiosidade católica a partir do século XVIII caracterizava-se pela grande participação dos leigos, negros, livres ou libertos, que realizavam cerimônias religiosas em suas residências, nas capelas e igrejas por eles construídas. Ver SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor. Identidade Étnica, Escravidão e religiosidade no Rio de Janeiro, séc. XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000. 18 Movimento de Reforma Católica no século XIX, que tinha como pressupostos básicos a adequação do catolicismo brasileiro ao Concílio Tridentino e às orientações de Roma. 19 Cf. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 7 ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004. 20 Termo bastante conhecido elaborado pelo poeta bragantino Gerson Alves Guimarães. 21 Amplo estudo antropológico de significados dos rituais que envolvem a Marujada de São Benedito pode serr encontrado em SILVA, Dedival Brandão da. Os Tambores da Esperança. Um estudo sobre cultura, religião, simbolismo e ritual na Festa de São Benedito na cidade de Bragança. Belém: Falangola Editora, 1997. 22 Boa parte de conceitos utilizados se reportam à leitura de LEAL, Cláudio Murilo. Literatura e Cultura de 1900 a 1945 In: Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1965. pp. 109-138. 23 A utilização da rabeca música está ainda nos dias atuais atrelada à única participação nos rituais da Marujada. 24 Por iniciativa e financiamento de instituição bancária federal foram realizadas três edições de um evento intitulado Festival da Música de Bragança, com redefinição da música e das influências musicais locais. 25 Em Bragança se iniciou ampla pesquisa pela rabeca, inclusive pela produção jornalística sobre o instrumento no quadro Feito aqui, do Programa É do Pará, da TV Liberal. 26 A experiência religiosa popular está aqui definida em conformidade com a análise de Martha Abreu para quem a religiosidade popular é definida nos seus mais variados usos conforme situações plurais em que estejam reunidos elementos de diferentes camadas sociais. Ver: ABREU, Martha. Religiosidade Popular, Problemas e História. História e Religião, VIII Encontro Regional de História Núcleo Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, MAUAD, 2002, pp. 29. 27 Utilizo parte dos conceitos expostos em FONSECA, Eduardo. Dicionário Antológico da Cultura Afro-brasileira. São Paulo: Maltese, 1995. 28 Reflexão acerca do assunto pode ser obtida em NONATO DA SILVA, Dário Benedito Rodrigues. Pesquisador teme descaracterização da Marujada. In: JORNAL O LIBERAL. Entrevista à repórter Esperança Bessa, da Editoria CARTAZ. Belém: 25.janeiro.2004. 9