A PAIXÃO DA AUDÁCIA EM TOMÁS DE AQUINO: EDUCAÇÃO E SENSIBILIDADE NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL

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Transcrição:

A PAIXÃO DA AUDÁCIA EM TOMÁS DE AQUINO: EDUCAÇÃO E SENSIBILIDADE NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL doi: 10.4025/XIIjeam2013.santin.oliveira48 SANTIN, Rafael Henrique 1 OLIVEIRA, Terezinha 2 Introdução Este texto tem o propósito de debater a relação entre a audácia e a educação na Suma Teológica de Tomás de Aquino. Acreditamos que as reflexões feitas por esse importante teólogo do século XIII pode nos ajudar a pensar sobre aspectos relevantes da formação humana. Um dos aspectos mais relevantes quando se trata das Questões tomasianas é a forma como o autor elabora o texto. A leitura permite perceber que as Questões se apresentam em forme de debate: refletem, na verdade, o modo como alunos e professores procediam nas aulas na Universidade do Século XIII. A Suma Teológica segue de perto o método desenvolvido naquela instituição: A Suma Teológica de Tomás de Aquino é o protótipo do questionamento do saber na unidade de trabalho do artigo (articulus), que, em sua própria estrutura, retoma a forma da questão disputada (M.-D. Chenu). Entretanto, o pensamento que se desenrola na Suma debate-se consigo mesmo: a objeção não é a simples oposição retórica de uma antítese a uma tese, é a mola de um dinamismo da interrogação, exprimindo um esforço do pensamento sobre si mesmo. O sed contra não tem menos força que os argumentos inicialmente evocados em favor da tese defendida. Também o respondeo (discendum), que vem determinar a questão, toma em geral a forma de uma distinção que permite achar na posição adversária a parte de verdade que a fundamenta. O artigo é pois o contrário exato de uma tese (thesis), é e permanece sendo uma quaestio que, ao mesmo tempo em que fornece uma resposta, propõe algo que possa medir o seu alcance. (LIBERA, 1990, p. 30). 1 Centro Universitário de Maringá 2 Universidade Estadual de Maringá. 1

De acordo com as análises de Libera apresentadas acima, o método utilizado por Tomás de Aquino na elaboração da Suma Teológica se caracteriza pelo dinamismo e pela pretensão de debater um assunto sob uma perspectiva de totalidade. O surgimento das Universidades na cristandade medieval é outro dado importante para entendermos as Questões tomasianas, pois foi nelas que o método que a caracteriza se desenvolveu (NUNES, 1979). Verger (2006) afirma que as Universidades surgiram no século XIII como corporações de ofício e logo afirmaram-se como studium generale, isto é, como uma instituição voltada para o estudo e o conhecimento, para a defesa daqueles que contribuíam para o progresso do saber naquela época. As Universidades se estabeleceram nas cidades, que se tornaram importantes para o Ocidente medieval no século XIII. Le Goff (2006) afirma que as cidades medievais desenvolveram-se entre os séculos XI e XIV com o aprimoramento do sistema feudal e com o renascimento comercial. Segundo ele, embora muitas cidades medievais tenham se estabelecido sobre antigos centros urbanos, trata-se de um processo diferente de urbanização, marcado principalmente pela produção artesanal e o comércio, [...] sustentados por uma economia monetária (LE GOFF, 2006, p. 223). Além disso, a cidade medieval é caracterizada, de acordo com Le Goff (2006), pela vida comunitária em favor do desenvolvimento socioeconômico da cidade face aos interesses dos senhores feudais. Oliveira (2008) destaca uma questão fundamental para entendermos as circunstâncias que possibilitaram as discussões tomasianas a respeito da audácia e da educação: o nascimento, no século XIII, das ordens mendicantes, principalmente a franciscana e a dominicana. O primeiro ponto importante destacado pela autora é o fato dos mendicantes terem contribuído para a nova forma de pensar as relações sociais. O ideal de pobreza defendido pelos frades confrontava-se com a riqueza e a ostentação de parte do clero mais próxima do poder. Além disso, os mendicantes estabeleceram-se no seio da comunidade, pois suas funções específicas eram as de pregar e ensinar. Enfim, enfatiza que os dominicanos procuraram dedicar-se mais ao ensino em comparação com os franciscanos. Oliveira (2008) demonstra que os novos valores urbanos, o surgimento das Universidades e das ordens mendicantes fazem parte de uma totalidade que precisa ser observada no estudo deste período da história. Tomás de Aquino ingressou na Ordem Dominicana entre 1244 e 1245 (CHENU, 1967), período no qual as Ordens Mendicantes conhecerem uma grande expansão. Chenu 2

(1967) afirma que os mendicantes, principalmente os Menores e os Pregadores, atraíram muitos jovens e pessoas ligadas aos estudos. Não é por acaso, portanto, que Tomás de Aquino ingressou ainda muito jovem na Ordem Dominicana. Vale lembrar que essa escolha do teólogo não agradou à sua família, que tentou impedi-lo de vestir o hábito dominicano, visto que sendo filho de nobres feudais o plano era que ele assumisse um alto cargo num mosteiro tradicional o mosteiro beneditino de Monte Cassino. Ainda sobre os Mendicantes, Chenu (1967) explica porque representavam o novo. A comparação que o autor faz entre as novas Ordens e as instituições monásticas antigas permite observar que, diferentemente destas últimas, Menores e Pregadores rompem com as tradições feudais que as antigas Ordens assumiram para si. Ao invés de alimentarem uma espiritualidade aristocrática, procuraram aproximar-se da plebe que, segundo Chenu, já tinha percebido sua importância na sociedade medieval. O nascimento das Ordens Mendicantes aconteceu, concomitantemente, com outros eventos importantes, como o renascimento urbano e comercial. Para Chenu (1967), os religiosos a quem definiu como mais tradicionais não se interessavam pelas mudanças que estavam acontecendo com os artesãos e os camponeses. Eles estavam tão apegados aos costumes feudais de fidelidade e juramento, tão seguros de sua supremacia, que não percebiam que o movimento de emancipação municipal causava grandes mudanças na sociedade medieva. Essa transformação das cidades era reflexo da ascensão de camponeses e artesãos que se instalaram nelas para desenvolverem suas atividades e, com isso, almejarem uma vida mais confortável e autônoma em relação à vida no feudo. Segundo o autor, os religiosos mais tradicionais [...] não se advertem de que um homem novo está prestes a nascer (CHENU, 1967, p. 14) e tentam por seu expediente manterem a antiga ordem que lhes era bastante conveniente. Le Goff (2008) é outro pesquisador que se aplicou à compreensão do período medieval. Ele dedicou um artigo às Ordens mendicantes que foi publicado originalmente em L Histoire em 1980 e, depois, traduzido para o português e publicado em Uma Longa Idade Média, em 2008. Este artigo traz informações importantes sobre os Mendicantes: As ordens mendicantes aparecem no século XIII. Receberam tal nome desde essa época, porque seu modo de subsistir pela esmola e não pelo recebimento de dízimos e de rendas do tipo feudal chocou os contemporâneos. A mendicância que praticam de maneira diferente em relação aos verdadeiros mendigos é um valor e um comportamento 3

discutido no século XIII. As duas principais ordens mendicantes são a ordem dos frades pregadores (comumente chamados hoje dominicanos e, na França Medieval, jacobinos, por causa do nome de seu convento, Saint-Jacques, de Paris), fundada pelo espanhol Domingos de Calaruega (c. 1170-1221, canonizado em 1233), e a ordem dos frades menores (comumente chamados hoje franciscanos e, na França medieval, cordeliers por causa do grosso cinto de corda de seu hábito), fundada pelo italiano Francisco de Assis (1181/2-1226, canonizado desde 1228). (LE GOFF, 2008, p. 175). Em primeiro lugar, Le Goff destaca as duas principais Odens Mendicantes que surgiram no século XIII, a Ordem dos frades pregadores, também conhecidos como dominicanos, e a Ordem dos frades menores, também chamados de franciscanos. Recebem o nome de mendicantes justamente porque vivem da mendicância. O autor destaca que esses religiosos praticavam a mendicância como valor, isto é, como pilar fundamental da Ordem. Essa atitude foi, de certo modo, radical naquela época, uma vez que a Igreja guardava relações com o mundo feudal e com a nobreza, como o próprio Le Goff afirma. Contudo, não devemos pensar na mendicância e na pobreza defendidas pelos mendicantes naquela época a partir das significações que damos a estas palavras hoje. Quando pensamos na mendicância temos a ideia de alguém que pede esmolas porque não trabalha. Entretanto, a mendicância para os frades mendicantes do século XIII era um valor, um princípio moral que os dignificava diante de Deus. Assim, a mendicância para nós do século XXI tem um sentido negativo, ao passo que para os frades medievais tem uma significação positiva. Le Goff destaca, ainda, outras peculiaridades importantes dos mendicantes: Os mendicantes não são monges, mas frades [quer dizer, irmãos, do lat. fratre] que vivem entre os homens e não na solidão. O quarto concílio de Latrão (1215) proibiu a fundação de ordens que observassem regras novas. Os dominicanos adotaram a regra dita de Santo Agostinho e então se apresentaram canonicamente como sacerdotes regulares, isto é, que vivem sob uma regra. Por causa de uma ficção segundo a qual São Francisco teria apresentado à Santa Sé um projeto de regra anterior ao IV concílio de Latrão, os franciscanos tiveram, em 1223, uma regra redigida por Francisco de Assis, depois de um primeiro projeto recusado, em 1221, pela cúria romana. As duas ordens são dirigidas por um capítulo geral que se reúne a cada três anos e elege um mestre geral para os dominicanos, um ministro geral para os franciscanos (LE GOFF, 2008, p. 175-176). 4

Assim como observou Chenu (1967), o autor afirma que os frades vivem de maneira diversa em relação a outros religiosos. A escolha dos mendicantes em viver na sociedade e não na solidão, de acordo com Le Goff (2008), é uma diferença significativa em relação aos monges. Segundo ele, os frades, ao contrário das Ordens tradicionais, como a dos Beneditinos, estabeleceram-se nas cidades. A atração que as cidades exercem sobre as Ordens Mendicantes provém de seu próprio desenvolvimento social, econômico, cultural. Ela passa a ser não somente lugar dos pecados próprios da vida camponesa, mas emergem outros que se acrescentam a eles. Os frades exerceriam, então, a função de pregar e ensinar os citadinos a se relacionarem a partir dos valores cristãos: A cidade é pagã, é preciso convertê-la (LE GOFF, 2008, p. 178). Dominicanos e franciscanos compartilhavam os valores da mendicância, mas a expansão das duas ordens deu-se de modo diverso. De acordo com Le Goff (2008), os dominicanos instalaram-se, principalmente, nos grandes centros urbanos da cristandade latina, enquanto os franciscanos preferiram as cidades menores. Um exemplo é o próprio Tomás de Aquino: frade dominicano, ele esteve em várias cidades para compromissos da Ordem. Contudo, destacou-se como mestre universitário em Paris, a cidade ocidental mais importante daquela época do ponto de vista cultural (Le Goff, 2010). Contudo, uma questão parece certa: [...] o mapa dos conventos de mendicantes confunde-se com o mapa das cidades (LE GOFF, 2008, p. 181). Ainda segundo Le Goff, Dominicanos e Franciscanos instalaram-se nas cidades também, porque esta necessita de novos homens para guiar a população urbana que crescia: Pior ainda, a cidade muitas vezes é herética, a vaga das contestações heterodoxas, das quais as dos valdenses e dos cátaros são as mais visíveis e as que mais conquistaram adeptos, ameaça o cristianismo oficial. O clero secular, insuficiente em número e instrução, e insatisfatório quanto aos bons costumes, o monaquismo dominado pelo desprezo do mundo (contemptusm mundi), a ideologia da solidão não chegaram a impregnar o contexto feudal. Para a nova sociedade urbana, há necessidade de um apostolado novo. Esses novos apóstolos serão os frades mendicantes. As novas ordens encontram sérios problemas para se instalar nas cidades. Beneficiárias desde muito cedo do apoio da cúria romana e dos príncipes leigos Branca de Castela e seu filho São Luís, por exemplo, foram muito favoráveis a elas, as novas ordens tiveram na maior parte das vezes o apoio dos bispos e, ao fim e ao cabo, puderam facilmente triunfar diante da hostilidade do clero paroquial que neles via concorrentes não sem motivo (LE GOFF, 2008, p. 178, grifo nosso). 5

Assim como Chenu (1967), Le Goff (2008) registra que os religiosos daquela época já não conseguiam lidar com as novidades e a diversidade desenvolvidas pelas cidades, principalmente aquelas que ameaçavam o cristianismo. Então, as Ordens Mendicantes nasceram e se projetaram de modo a preencher esta lacuna deixada pelo clero secular e pelas Ordens monásticas. Isto não significa, porém, que os mendicantes foram aceitos naturalmente por parte do clero. Segundo o autor, estes religiosos enfrentaram resistências daqueles que os viam como adversários. Os mendicantes também tiveram dificuldades em outras circunstâncias, como quando procuraram se estabelecer nas Universidades. Importantes intelectuais mendicantes, principalmente Dominicanos e Franciscanos, como Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio, tiveram que administrar conflitos contra os mestres seculares (Le Goff, 2010). Os Mendicantes foram, também, bastante atuantes na Universidade. Fortes (2013), ao analisar as relações entre o Convento de Saint Jacques e a Universidade de Paris, destaca que os Dominicanos se preocuparam com a formação intelectual dos frades, principalmente para o combate de heresias. Com o apoio do papado, conseguiram ingressar na Universidade de Paris, centro acadêmico da cristandade, para proporcionar aos integrantes da Ordem a formação filosófica e teológica necessária para os trabalhos que precisavam desempenhar. Com efeito, a primazia pela excelência na educação intelectual marca a Ordem dos Pregadores, de modo a constituir uma [...] identidade pautada nos estudos (FORTES, 2013, p. 64). O fato de Tomás de Aquino tratar da paixão da audácia num curso de Teologia é significativo. Com efeito, a Ordem a qual pertencia prezava pela formação intelectual de seus frades, principalmente para o combate aos hereges e aos infiéis debate que é claramente travado na Suma Contra os Gentios (TOMÁS DE AQUINO, 1990). A audácia, entendida como coragem, como uma ação que fortalece o espírito humano para enfrentar as dificuldades, torna-se, para um dominicano e professor da Universidade no século XIII, não somente um problema de ordem teórica, mas também um problema de ordem apostólica. 6

A audácia como paixão da alma e a formação do homem para o exercício inteligente da audácia Com a leitura da Questão 45, podemos observar que a audácia tem um sentido bastante particular em Tomás de Aquino, diferente dos significados que atribuímos a essa palavra atualmente. Tornou-se relativamente comum tomarmos audácia num sentido pejorativo, como sinônimo de petulância e impertinência. No texto tomasiano, a audácia aparece mais como um ato de coragem, como uma qualidade que nos torna capazes de enfrentar o que é árduo. Interessa-nos o modo como Tomás de Aquino analisa a audácia, principalmente no que tange à relação entre ela e a educação. Em primeiro lugar, podemos verificar que a audácia é considerada uma das paixões da alma, que somam 11 no total: amor, desejo, prazer ou alegria, ódio, aversão, tristeza, esperança, desespero, audácia, temor e ira. Todas essas paixões são tomadas pelo autor como os princípios do agir do homem (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 22). No primeiro Artigo da Questão 45, que pergunta se a audácia é contrária ao temor, o autor evidencia a natureza daquela paixão: [...] a audácia afronta o perigo iminente, porque acredita na sua vitória sobre o perigo (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 45, a. 1, resp.). Assim, ela se coloca em contraposição ao temor, porque este procura evitar um prejuízo futuro acreditando-se que não há alternativa positiva. Podemos observar que já nesse primeiro Artigo verificamos que o sentido dado por Tomás de Aquino à audácia remete à ação ou reação do homem em relação à algo que precisa ser feito. Desse modo, o movimento causado por essa paixão é o de impelir o ser para o enfrentamento, porque entende a necessidade de fazê-lo em função de algum bem que almeja. No segundo Artigo surge um questionamento que consideramos essencial: se a audácia é consequência da esperança. A esperança para Tomás de Aquino é outra paixão da alma que permite ao homem considerar um bem desejável difícil de alcançar, mas possível de ser alcançado. Espera-se, por exemplo, que os governantes se preocupem com o bem da sociedade e ajam em função disso, ou que os professores da educação básica consigam ensinar as crianças o necessário para um crescimento saudável. Esses são bens que exigem do homem certos esforços e, por isso, são difíceis de alcançar, mas isso não 7

significa que nunca poderemos alcança-los. Conseguir ou não o bem difícil e desejável depende da audácia em agir contra as dificuldades: [...] buscar um bem, pertence à esperança; evitar o mal, ao temor; buscar um mal terrível, à audácia; evitar o bem, ao desespero. Daí se segue que a audácia é consequência da esperança: pelo fato de que alguém espera triunfar de um mal terrível iminente, por isso o afronta audazmente. O desespero é consequência do temor: alguém desespera porque teme a dificuldade a respeito do bem a esperar. (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 45, a. 2, resp.). O excerto acima esclarece que a audácia é necessária para vencer um mal que ameaça a consecução do que se espera alcançar. Além disso, observamos que o limiar entre a esperança e o desespero é tênue: evitar o desespero e alimentar a esperança são situações que dependem da audácia. No terceiro Artigo, o autor investiga as causas da audácia. No Artigo anterior, verificamos que Tomás de Aquino considera a audácia como consequência da esperança. Nesse Artigo 3, ele aprofunda a reflexão sobre o comportamento audacioso, evidenciando o que origina a esperança que causa a audácia: [...] a esperança que produz a audácia é provocada pelo que nos faz acreditar que é possível alcançar a vitória [...] (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 45, a. 3, resp.). Considerando que as paixões estão presentes na alma humana por acidente e que, por isso, dependem da regulação da razão (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 22), a esperança e a audácia estão intimamente relacionadas ao conhecimento e ao pensamento reflexivo. Nesse sentido, o que faz o homem acreditar na possibilidade de conseguir o bem que deseja decorre do saber e da reflexão 3. A esperança, portanto, deve articular-se com a audácia de maneira inteligente. Por essa característica da audácia a de estar relacionada à razão, acreditamos que o processo educativo é fundamental para a formação de homens audaciosos, que esperam ser melhores do que são e, por isso, buscam superar as dificuldades com sabedoria. Com efeito, Tomás de Aquino não afirma que a audácia deve dar-se de qualquer maneira, tornando legítimo toda ação que combata um mal iminente visando um bem 3 Tomás de Aquino ainda enumera o que pode provocar em nós a esperança: [...] ou segundo nossas próprias forças, como o vigor do corpo, experiência nos perigos, abundância de riquezas, etc.; ou pelas forças dos outros, como amigos numerosos ou outros que ajudem, e sobretudo, se o homem confiar no socorro divino (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 45, a. 2, resp.). Podemos observar que todas essas coisas devem ser percebidas pelo homem, não sendo, portanto, dados naturais que dispensam o pensamento. 8

esperado. Partindo do pressuposto de que a audácia é uma paixão e que as paixões devem submeter-se à razão para que concorram para o bem 4 do homem. A definição de uma ação como corajosa 5 depende, segundo o Teólogo, das escolhas do indivíduo. Se o homem pratica algo aparentemente audaz que contraria o princípio da caridade, não está sendo corajoso de acordo com a perspectiva tomasiana, mas precipitado e inconsequente. Portanto, o homem precisa ser educado para praticar a audácia. A audácia exige, além do conhecimento do mundo, também o conhecimento de si mesmo. Na resposta à segunda objeção do Artigo 3, Tomás de Aquino afirma que: os que não têm experiência do perigo são mais audaciosos, não pode deficiência, mas acidentalmente: a saber, por sua inexperiência não conhecem sua fraqueza, ou a presença dos perigos. E assim, eliminando a causa do temor, segue-se a audácia. (TOMÁS DE AQUINO, ST, q. 45, a. 3, obj. 2). Assim, a falta de experiência sobre a própria fraqueza e sobre a presença de perigos, isto é, a ignorância, torna o homem audaz acidentalmente. A audácia, nesses casos, é fortuita e, por isso, o sucesso ou fracasso da ação depende mais da sorte do que do ato em si. Essas ideias apresentadas na resposta à segunda objeção do Artigo 3 são aprofundadas no Artigo 4 da Questão 45: A razão examina tudo o que faz dificuldade ao assunto. Por isso, os fortes, que com base num juízo da razão enfrentam os perigos, no princípio parecem remissos, porque não agem por paixão, mas com a devida deliberação. Quando estão nos perigos, nada encontram que não tenham previsto; e às vezes acham os perigos menores do que pensavam antes. Por esse motivo têm mais persistência. Ou, também, porque eles enfrentam os perigos pelo bem da virtude, e essa vontade do bem neles persiste, por maiores que sejam os perigos. (TOMÁS DE AQUINO, ST, q. 45, a. 4, resp.). Como podemos observar na passagem acima, pela razão o homem se torna forte, no sentido de que conhece as dificuldades e sabe o que deve fazer. Essa força caracteriza o homem que age com base no pensamento reflexivo. Portanto, a audácia, que é o 4 O autor trata do bem do homem em outra Questão da Suma Teológica (TOMÁS DE AQUINO, ST, I-II, q. 1-5). O bem, aqui, está relacionado à bem-aventurança, que é a felicidade em consonância com os princípios cristãos. Afinal, Tomás de Aquino é um teólogo dominicano do século XIII e essas circunstâncias devem ser consideradas na leitura de suas obras. 5 Consideramos, aqui, o termo coragem como sinônimo de audácia. 9

movimento do homem para o combate dos perigos que possam impedi-lo de alcançar um bem esperado, pressupõe o conhecimento. Conclusão A audácia, na concepção de Tomás de Aquino, é uma paixão da alma que se contrapõe ao temor e é consequência da esperança, pois visa o combate aos perigos que ameaçam a conquista de algo que se deseja. Por ser uma paixão da alma, a audácia deve ser exercida em consonância com a razão, pela qual o homem estabelece o caminho que pretende seguir em sua existência. Para o autor, que é um frade dominicano do século XIII, o caminho correto a seguir deve considerar os princípios cristãos e ter na bem-aventurança o fim último da vontade. O homem audaz que procede conforme a razão e de acordo com a bem-aventurança, pode ser considerado um homem que age virtuosamente. A partir dessas considerações, podemos verificar dois pilares substanciais que devem caracterizar o homem corajoso: o conhecimento e a firmeza ético-moral. De acordo com Aristóteles (1985) Os homens são, pois, animais políticos, necessitam uns dos outros para garantirem a própria existência e o único elemento pelo qual pode fazer isso é a razão, o saber. Para que a sociedade se mantenha, normas e regras precisam ser estabelecidas e seguidas pelos indivíduos a elas submetidos. Assim, inteligência e fibra moral são princípios que devem regular todas as ações humanas para não agirmos na contramão das nossas necessidades enquanto homens. Contudo, nós não somos naturalmente dotados desses valores, nem tampouco da ciência que precisamos para sobreviver. Todos esses elementos se constituem, conforme Tomás de Aquino (2004) em Sobre o Ensino (De Magistro), em potências que precisam ser desenvolvidas. O processo educativo é, portanto, crucial para a formação de homens racionais e moralmente fortes, o suficiente para serem audaciosos e equilibrados para agirem conforme o bem comum. 10

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Política. Trad. de Mário da Gama Cury. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. CHENU, M. D. Santo Tomás de Aquino e a Teologia. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editôra, 1967. FORTES, Carolina Coelho. O Convento de Saint Jacques e suas relações com a Universidade de Paris: considerações sobre a construção da identidade Dominicana na primeira metade do século XIII. Notandum. Número 32, São Paulo: Feusp/Porto: Universidade do Porto, 2013, p. 51-66. LE GOFF, J. Cidade. In: ; SCHMITT, J.-C (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006, p. 219-236, v. I. LE GOFF, Jacques. As ordens mendicantes. In:. Uma longa Idade Média. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. LIBERA, Alain de. A filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. NUNES, Ruy Afonso da Costa. A escolástica. In:. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979, p. 243-286. OLIVEIRA, T. O ambiente citadino e universitário do século XIII: um lócus de conflitos e novos saberes. In: (org.). Antiguidade e Medievo: Olhares Histórico-Filosóficos da Educação. Maringá: Eduem, 2008. TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os Gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulinas; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990. 2 v. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2003, v. III. TOMÁS DE AQUINO. Sobre o ensino (De Magistro), os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes, 2004. VERGER, J. Universidade. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru : Edusc, 2006, p. 573-588, v. II. 11