PALAVRAS AFRICANAS NO VOCABULÁRIO ALAGOANO: ESTUDO SOCIOLINGÜÍSTICO E RESGATE HISTÓRICO

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Transcrição:

4517 PALAVRAS AFRICANAS NO VOCABULÁRIO ALAGOANO: ESTUDO SOCIOLINGÜÍSTICO E RESGATE HISTÓRICO Solyany Soares Salgado (UFAL) INTRODUÇÃO As evidências históricas nos mostram que o Brasil recebeu, e ainda recebe, influências de várias culturas e línguas e, entre elas, a africana. Estudos de diversas áreas e tipos vêm sendo feito no intuito de buscar maior conhecimento sobre o papel africano durante a história brasileira. Em relação à língua não é diferente. Documentações comprovam que, em 1697, Pedro Dias já havia escrito a Arte da língua de Angola, que trazia uma série de termos originados do quimbundo, uma das línguas africanas do tronco banto e que tiveram uma influência muito significativa no PB, possivelmente mais do que outras línguas, justificado pela presença maciça desses povos no território nacional. O estudo sobre vocábulos de origem africana no português do Brasil continua sendo abordado por um número considerável de pesquisadores como, por exemplo, Pessoa de Castro (2006), Alkim & Petter (2008), Barros (2006), Bonvini (2008), que interpreta tal presença como empréstimo lingüístico provocado pelo contato entre línguas, interpretação, inclusive, adotada por esta investigação. A escolha por essa temática se deu pelo fato de encontrarmos a presença de palavras de origem africana no vocabulário alagoano atual, mas nenhum estudo feito e que pudesse oferecer maior esclarecimento sobre esse comportamento lexical, uma vez que, notamos uma alternância entre os vocábulos de origem africana e os vocábulos de origem portuguesa. Levando em consideração que existe tal alternância, essa temática é vista sob o olhar dos pressupostos da Sociolingüística Variacionista (LABOV, 2008 [1972], 1994), uma vez que essa teoria nos permite trabalhar com a variação e proporciona meios para que possamos encontrar regularidades, identificando fatores lingüísticos e sócio-históricos motivadores para o uso de uma ou outra variante. Apesar da alternância entre os itens lexicais de origem africana e os de origem portuguesa ser comumente vista, pouco se sabe a respeito do comportamento lingüístico e social dessa variação. Conhecer o comportamento lexical na comunidade em questão e verificar a origem dos itens encontrados nos leva a buscar possíveis esclarecimentos e contribuir para um maior conhecimento dos usos lingüísticos em Alagoas. De modo geral, essa pesquisa objetiva investigar a existência de indícios da fala e da cultura africanas que possam ter influenciado o léxico, procurando identificá-los e analisá-los. Temos como objetivos específicos, divididos por etapas, primeiramente, obter informações de cunho sócio-histórico e demográfico sobre essa comunidade remanescente do Quilombo de Palmares e, posteriormente, investigar a variação lexical entre itens lexicais de origem africana (como catota e cotó) e os de origem portuguesa (como meleca e mutilado) na fala atual dos habitantes da comunidade quilombola de Muquém (União dos Palmares AL), verificando os fatores condicionantes lingüísticos, de ordem morfológica, fonológica e semântica, e extralingüísticos, como sexo, escolaridade e idade, e resgatando a origem dos itens encontrados. No estágio atual desta investigação, obtivemos informações referentes à primeira etapa e indícios sobre a origem dos possíveis vocábulos a ser coletados durante as entrevistas e questionários, que serão abordados no transcorrer deste trabalho. 1. REFERENCIAL TEÓRICO O estudo da relação entre estrutura e funcionamento da língua e da sociedade proposto pela Sociolingüística, retoma a importância do entendimento de língua como um fenômeno social e tenta estabelecer propostas teórico-metodológicas que levem em conta o fator social para o estudo da língua em uso.

4518 A Sociolingüística Quantitativa, ou Sociolingüística Variacionista, que apresenta como principal teórico William Labov, elabora uma proposta metodológica coerente com a perspectiva sociolingüística, partindo do pressuposto que todas as línguas são heterogêneas e são faladas por pessoas que vivem em sociedade, que, por si só, já possui uma natureza diversificada. A teoria destaca o papel dos processos sociais e históricos para a configuração e estudo das línguas, papel que estava sendo desconsiderado, até meados do séc. XX, pelas outras linhas teóricas. Para essa teoria, ao contrário do que as outras imaginavam, a diversidade ou a heterogeneidade inerente às línguas é passível de ser sistematizada pelo fato de existirem fatores lingüísticos e sóciohistóricos que condicionam e que favorecem a escolha de uma das formas variantes encontradas nas comunidades de fala. A Sociolingüística reconhece a dinamicidade da língua, pelo fato dela estar sempre em processo de transformação e por ter a questão social atuante nessa configuração lingüística. Ao afirmar que existe variação na língua, Labov mostra que existem variantes, ou seja, formas diferentes com mesmo significado e que pelo fato de haver julgamento de valor, determinado socialmente, uma forma é tida como prestigiada e a(s) outra(s) acaba(m) sendo estigmatizada(s). No caso desta pesquisa, a variante lexical de origem africana é a estigmatizada, de modo geral, pela população alagoana, mas em relação à Muquém, ainda não se sabe como essa variante é julgada. Para os sociolingüistas variacionistas, a fala é fonte para que se possa compreender porque não há um caos lingüístico e porque os falantes se entendem e compartilham elementos lingüísticos que os identificam como integrantes de uma mesma comunidade lingüística. A fala das comunidades é determinada por fatores lingüísticos e sócio-históricos, por isso se diz que ela pode ser sistematizada. O registro dessa fala se constitui de um processo longo e de grande importância para a pesquisa. Por isso, a teoria apresenta uma metodologia muito bem delimitada e uma série de cuidados a serem tomados na coleta, na organização, na análise e nos resultados dos dados. A escrita também pode ser um bom instrumento de investigação lingüística, principalmente, quando o foco de estudo está relacionado a estágios anteriores da língua e que não possuem registro oral, mas apenas escrito. Os documentos escritos sobre as atividades realizadas pelos quilombolas e sobre as línguas faladas nos quilombos, podem contribuir de forma significativa para identificarmos as origens das palavras encontradas durante a investigação na comunidade de Muquém. Sendo assim, considerando os pressupostos teórico-metodológicos expostos, esta pesquisa se utiliza de informações sócio-histórica e demográfica relativas à comunidade em estudo e à população escrava em Alagoas, procurando coletar documentos antigos escritos e dados orais atuais que possam contribuir para uma maior compreensão sobre a variação lexical e sobre os fatores atuantes. Para tal investigação na fala atual, serão coletados dados por meio de entrevistas informais, que abordam temas relacionados ao dia-a-dia da comunidade como, por exemplo, sobre a fabricação de cerâmica, o trabalho na lavoura, as atividades culturais, a festa em homenagem a Zumbi, e outras baseadas nas perguntas feitas no projeto Serra da Barriga realizado, nessa mesma comunidade, pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) no ano de 1997. Os dados também serão coletados por meio de questionários elaborados com o intuito de obter dos informantes as formas lexicais usadas por eles e um julgamento de valor para as formas préestabelecidas no questionário e, possivelmente, para as formas usadas por eles, demonstrando qual dos itens lexicais, de origem africana ou portuguesa, é o mais usado e/ou o mais prestigiado. Para as informações históricas sobre a origem dos itens lexicais encontrados, serão pesquisados dicionários etimológicos, gramáticas e outras fontes documentadas. 2. MUQUÉM: A COMUNIDADE QUILOMBOLA Alagoas, assim como outros estados, contou com a presença de inúmeros escravos para o trabalho em seus engenhos de cana-de-açúcar. Mas, o fato mais significativo para a história desses escravos no estado alagoano ocorreu na região do atual município de União dos Palmares. Essa região, que fica na zona da mata, foi sede do maior quilombo do Brasil, o de Palmares, criado em 1630 e destruído em 14 de maio de 1697 (ALTAVILA, 1988, p. 39). A escolha dos escravos por essa região se deu por conta do terreno acidentado e pela mata densa que cercavam e protegiam os quilombos daqueles que tentavam destruí-lo.

4519 Essa região ainda apresenta indícios dessa presença quilombola, um deles é a comunidade de fala escolhida para esta investigação. A comunidade quilombola de Muquém foi a selecionada para este nosso estudo e se encontra, aproximadamente, a quatro quilômetros do município alagoano União dos Palmares e é uma das poucas comunidades reconhecidas como uma comunidade remanescente do Quilombo dos Palmares. Segundo o Ministério da Cultura, as comunidades remanescentes de Quilombos são áreas originárias de antigos quilombos e constituem-se de pessoas que possuem identidade étnico-cultural predominantemente de ascendência negra. A constituição Federal de 22/08/1988 assegura uma série de direitos a essas comunidades e um deles se refere à preservação das terras, sendo asseguradas como Território Cultural Nacional. Mas, ainda assim, Muquém convive com uma série de problemas, entre eles, a posse das terras. Sobre a comunidade, Santos (2004) afirma que ela fica relativamente isolada, pois a estrada é de difícil acesso a ainda apresenta um rio de forte correnteza. Possui apenas a Escola de Ensino Fundamental Pedro Pereira da Silva (do 1º ao 4º ano) e apresenta o índice de mais de 41% de analfabetos. A comunicação externa é feita por dois telefones públicos. Não há transporte coletivo e ninguém da comunidade possui automóvel. Os agentes de saúde encaminham a população ao município de União dos Palmares, pois não há um posto de saúde na comunidade. Não há rede de esgoto nem coleta de lixo (os moradores enterram ou queimam resíduos sólidos). A energia é fornecida pela Companhia Energética de Alagoas (CEAL) a 82,61% das casas e o sistema de abastecimento de água é oriundo de manancial subterrâneo, mas a água é imprópria para consumo. A população sobrevive economicamente da agricultura, da pecuária e, principalmente, da produção de cerâmica utilitária, atividade, inclusive, documentada por historiadores (FUNARI, 2006; PRICE, 2006) como típica dos habitantes do Quilombo dos Palmares. A história da comunidade é contada pelos próprios moradores e conforme o que ouviram dos pais e avós. Os relatos dos moradores coletados, em 1997, pelo grupo de pesquisa do Núcleo de estudos afro-brasileiros (NEAB), num projeto denominado Serra da Barriga e coordenado por Fernandes (2006) e, em 1999, pelo técnico em pesquisa do IBGE José Carlos Ferreira da Silva abordam diversos temas relacionados à comunidade, entre eles, ao nome do local, religião, festas e danças. Segundo os moradores, a data de origem da comunidade é desconhecida, alguns dizem que Muquém teria sido uma das pessoas de confiança de Zumbi dos Palmares e responsável por chefiar um agrupamento de negros fugidos que se encontravam na região do atual sítio Muquém. A maioria da população é católica e não há tradição de prática de candomblé. As festas estão associadas à religião e às comemorações no dia da consciência negra (20 de novembro). Os jovens só praticam a capoeira porque um professor de União dos Palmares vai até a comunidade dar aulas. E a dança do coco, dança de roda com influências africanas e indígenas, de letras simples, acompanhada de instrumentos, das palmas e do bater os pés no chão, está aos poucos deixando de ser realizada. Não se sabe ao certo que língua era falada nos quilombos palmarinos, mas, segundo alguns autores como Funari (1996) e Price (1996) a língua falada nesses quilombos não seria uma língua africana: Não sabemos que língua se falava em Palmares. Aparentemente, contudo, os palmarinos, como uma população de origem variada, congregando africanos de diferentes tribos, índios e europeus, deveriam usar uma espécie de língua comum, não necessariamente banto. (FUNARI, idem, p. 49, nota 47) A língua falada pelos palmarinos, de acordo com o que li, era um tipo de português misturado com elementos africanos, mas diferente o suficiente para que outros brasileiros não a entendessem. (PRICE, idem: 58) Mesmo levando em conta que existe uma relativa distância temporal entre o estado atual da comunidade (2009) e o da existência do Quilombo de Palmares (1630-1697), acreditamos que a cultura africana exerceu influência, em vários aspectos, na comunidade e que a fala ainda apresenta traços das línguas africanas como, por exemplo, no léxico.

4520 3. PRESENÇA DE PALAVRAS AFRICANAS NO VOCABULÁRIO ALAGOANO Para Bonvini (2008, p. 100), os trabalhos mais significativos sobre a presença de vocábulos de origem africana no Brasil atravessaram praticamente todo o século XX e apresentaram diferentes interpretações para essa presença. Para ele, as interpretações foram associadas à influência como feita por Renato Mendonça (1933); à crioulização prévia da língua portuguesa, Serafim da Silva Neto (1950); influência sem crioulização, Pessoa de Castro (1976, 1980); ao estatuto particular do português atual do Brasil que alguns julgam ter sua origem num crioulo, Guy (1989) e Baxter (1992); e a um semicrioulo, Holm (1994). Ainda para Bonvini, a interpretação que deve ser dada a essa presença, na verdade, é de empréstimos lingüísticos. Segundo o autor: O empréstimo lingüístico é um fenômeno sociolingüístico normal e freqüente. Resulta do contato de línguas. Durante esse contato, ocorre habitualmente uma troca bilateral entre falantes que usam línguas diferentes. Os termos originários de línguas africanas, atestadas no léxico do português do Brasil, testemunham esse contato e dependem dele. No Brasil, ele deu-se entre a segunda metade do século XVI e o final do século XIX. (Ibidem, p. 103) Boa parte das palavras emprestadas, entretanto, passou por mudanças formais e semânticas, se moldando e se integrando ao português, perdendo, muitas vezes, a semântica inicial na língua africana (ibidem, p. 142-143). Os falantes, mesmo que não percebam, utilizam de forma alternada palavras de origem africana e de origem portuguesa no seu cotidiano. A presença de itens lexicais de origem africana no vocabulário alagoano é apontada por Barros (2006). A autora afirma que os itens podem ser originários, principalmente, do quimbundo e reconhece o julgamento preconceituoso dos falantes em relação aos vocábulos que, embora não apresentem de forma explicita sua origem, são, em sua maioria, carregados pela discriminação surgida ainda no período escravista. Essa discriminação fez com que a língua africana tivesse pouco espaço na língua oficial portuguesa. As poucas palavras de origem africana foram mantidas na fala pelas camadas mais populares e hoje em dia são vistas, por muitos que não tem conhecimento de sua origem, como palavras utilizadas por pessoas sem formação escolar e de baixa renda. Tal configuração lingüística e social evidencia uma questão referente à desigualdade entre classes sociais e que se reflete na língua, ficando de um lado as normas populares, desprestigiadas, e de outro as normas cultas, prestigiadas (SILVA, 2007). Como aponta Barros (2006), algumas palavras são bem aceitas como aquelas presentes na culinária (caruru), na denominação de lugares (Cambona, Quitunde), na fauna (marimbondo), na identificação de pessoas (cambembe), outras palavras, por outro lado, são tidas como desprestigiadas e chulas como catota, cotó, bimba, xibiu e biboca. Normalmente essas palavras são usadas em situações informais, mas é notável que são faladas em Alagoas e que são formas concorrentes às palavras de origem portuguesa. Porém, algumas palavras citadas por Barros (2006) como de origem africana (angico, cachaça, caruru e cafuzo) foram apresentadas por dicionários etimológicos (BUENO, 1963 e CUNHA, 1982) como de origem incerta. Observando depoimentos de moradores de Muquém, coletados por Silva (2005), foram encontradas palavras como testo para tampa, garrancho para lenha, corredor para osso da canela do boi. Mas, ainda não se sabe ao certo a origem desses itens, assim como não se sabe a origem de outros itens encontrados em depoimentos coletados por Fernandes, em 1997, como, por exemplo, nos itens destacados nos trechos abaixo: Informante: só vem aqui se for com primisso Entrevistador: se for chamado Informante: se for chamado Informante: [...] essa épa (época) pouco ou muito a gente tem que se gimiá pra ir levando a vida porque a situação tá muito difícil.

4521 O primeiro item é usado no sentido de ser chamado e o segundo, no sentido de se virar, dar-se um jeito. Segundo alguns historiadores (FUNARI, 1996), os quilombos eram habitados por pessoas de diferentes etnias que, por diversos motivos, entres eles o da perseguição, encontraram refúgio nas comunidades quilombolas. Tal diversidade pode ter exercido influências na língua falada por esses grupos e na de seus descendentes como, por exemplo, nas palavras encontradas na fala dos moradores de Muquém. CONSIDERAÇÕES FINAIS Procuramos discutir, neste trabalho, os temas referentes à proposta de estudo sobre a presença das palavras africanas no vocabulário alagoano, que, por sinal, ainda encontra-se em andamento. De modo geral, trouxemos uma breve menção a estudos anteriores que pudessem estar relacionados à temática enfocada, seja num foco mais amplo como da presença das palavras de origem africana no português do Brasil e suas interpretações, com Bonvini (2008) e outros, seja na presença delas, mais especificamente, no vocabulário dos alagoanos, com Barros (2006). Durante nossa exposição, tentamos apresentar algumas considerações sobre as informações de cunho sócio-histórico e demográfico encontrados sobre a comunidade quilombola, mas sabemos que ainda podem ser encontradas outras informações que possam oferecer diretrizes para um melhor esclarecimento sobre o fenômeno estudado. Sabemos que a comunidade é remanescente do quilombo e que pode trazer características advindas do período de existência do quilombo de Palmares, inclusive no vocabulário da comunidade. Informações encontradas sobre o quilombo podem estar diretamente relacionadas ao que ainda se vê na comunidade nos dias atuais. Apesar de ainda não ser possível apresentar reflexões mais precisas sobre a alternância entre os itens lexicais de origem africana e os de origem portuguesa na comunidade, pode-se dizer que essa variação é comumente vista e pode revelar muito sobre a importância da presença das línguas africanas para a configuração do PB e, especificamente, do vocabulário alagoano. Acreditamos que as palavras encontradas nos depoimentos de moradores, coletados por Silva (2005), Santos (2004) e Fernandes (2006 [1997]) e outras que virão por meio desta investigação, são oriundas de diversas línguas africanas, indígenas e européias e que já sofreram modificações na escrita e na semântica, mas, em sua maioria, deve ser de origem banta, mais especificamente do quimbundo. REFERÊNCIAS ALKMIM, T. & PETTER, M. (2008). Palavras da África no Brasil de ontem e de hoje. In: PETTER, M. e FIORIN, J. L. (orgs.). África no Brasil: a formação da língua portuguesa. São Paulo: Contexto. ALTAVILA, J. de. (1988). História da civilização das Alagoas. Maceió: Edufal. BARROS, R. R. de A. (2006). O lugar social das palavras africanas no português do Brasil. In: Kulé- Kulé: visibilidades negras/ CAVALCANTI, SUASSUNA e BARROS (orgs.). Maceió: EDUFAL. BAXTER, A. N. (1992). A contribuição das comunidades afro-brasilerias isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do estado da Bahia. In: D ANDRADE, Eneresto; KIHM, Alain (eds). Actas do colóquio sobre Crioulos de base lexical portuguesa. Lisboa: Colibri, p. 7-35. BONVINI, E. (2008). Línguas africanas e português falado no Brasil. In: PETTER, M. e FIORIN, J. L. (orgs.). África no Brasil: a formação da língua portuguesa. São Paulo: Contexto. BUENO, F. da S. (1963). Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa: vocábulos, expressões da língua geral e científica sinônimos, contribuições o tupi-guarani. SP: Ed. Saraiva. CUNHA, A. G. da. (1982). Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Assistente Cláudio Mello Sobrinho. [et al]. RJ: Nova Fronteira. DIAS, P. P. (1697). Arte da língua de Angola, offerecida a Virgem senhora do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Pedro Dias da Companhia de Jesu. Lisboa: Miguel Deslandes. FERNANDES, C. S. (2006). Muquém: uma comunidade visível?. Kulé Kulé. Maceió: EDUFAL.

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