A INFLUÊNCIA DAS CRENÇAS E PRÁTICAS POPULARES NO CUIDADO DE ENFERMAGEM A PUÉRPERA E AO RECÉM-NASCIDO: RELATO DE EXPERIÊNCIA Rubia Geovana Smaniotto Gehlen 1 ; Ana Carolina Blau 2 ; Vanessa Fátima Schons 3, Vanessa da Silva Bortoli 3, Jaqueline Arboit 3 ; Danimara Iauer Kister 3 ; Maiara Hirt 3 ; Leila Mariza Hildebrandt 4. DESCRITORES: Cuidados de Enfermagem; Fatores culturais; Enfermagem. 1. Introdução/Justificativa: Este trabalho se constitui em um relato de vivências realizado por acadêmicas do Curso de Graduação em Enfermagem durante as atividades teórico- práticas da disciplina de Saúde Coletiva III, em uma Unidade de Saúde da Família. Uma das atividades desenvolvidas foi à implementação da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) no cuidado a uma jovem puérpera que, em decorrência de agravos gestacionais, veio a ter parto pré- termo. Após se realizar o levantamento dos principais problemas vivenciados pela paciente no período puerperal, além das causas ou fatores que desencadearam no parto prematuro, identificaram-se os diagnósticos de enfermagem e realizou- se o respectivo plano de cuidados. Entretanto, durante a identificação dos problemas, percebeu-se a forte influência de crenças e saberes populares no cuidado executado pela puérpera a si e para seu filho recém-nascido. O trabalho em saúde exige que a formação dos profissionais seja pautada não só no conhecimento e competência técnica, política e científica, mas que esses trabalhadores sejam sensíveis à realidade da comunidade em que estão inseridos 1. Desta forma, justifica-se a realização deste trabalho, uma vez que se considera fundamental o entendimento das crendices e saberes populares relacionados ao processo de saúde- doença, para que assim, os profissionais possam se familiarizar com os aspectos culturais existentes na comunidade em que trabalham e aprendam a lidar com essas crenças, valores e hábitos e, sobretudo, respeitá-los. Assim, associando o saber científico com o popular, o profissional poderá prestar um cuidado mais eficaz, qualificado e condizente com a realidade do sujeito assistido. Neste sentido, este trabalho objetivou relatar a vivência de acadêmicos de enfermagem no acompanhamento de uma puérpera e observar a influência dos saberes populares e das crenças no processo de produção de cuidado a ela e ao recém-nascido. 1 Apresentadora do trabalho. Acadêmica do curso de Enfermagem UFSM/CESNORS-RS. Bolsista Pet Enfermagem UFSM/CESNORS- campus de Palmeira das Missões/RS. rubiageovana@yahoo.com.br 2 Co- autora do trabalho. Acadêmica do curso de Enfermagem UFSM/CESNORS- campus de Palmeira das Missões/RS 3 Co- autora do trabalho. Acadêmica do curso de Enfermagem UFSM/CESNORS-RS. Bolsista Pet Enfermagem UFSM/CESNORS-PM 4 Orientadora do trabalho. Enfª, Msc. e Profª do Curso de Graduação em Enfermagem da UFSM CESNORS-PM. 2. Metodologia:
Trata-se de um relato de experiência vivenciado por acadêmicas do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/CESNORS) durante as aulas teóricopráticas na disciplina de Saúde Coletiva III, desenvolvidas em uma Unidade de Saúde que conta com Estratégia de Saúde da Família, de um município do Norte do Rio Grande do Sul. Os dados foram coletados por meio da aplicação da SAE e levantamento de dados contidos nos exames, prontuário da paciente e anotações em diário de campo. Este estudo seguiu os preceitos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. A análise foi realizada pela compreensão dos dados encontrados no campo empírico e discutidos com base no referencial teórico. 3. Fundamentação teórica: As práticas populares surgiram como consequência da necessidade de se suprir os problemas diários relativos à saúde e, à medida que davam certo, formaram-se crendices e convicções em torno delas, repassadas de indivíduo a indivíduo e de geração a geração 2. Desta forma, a palavra crença pode ser definida como o conhecimento advindo do senso comum, transmitido de geração a geração de forma empírica e que, até nos dias de hoje, ainda faz parte da cultura das populações 1. Já a prática popular pode ser definida como a utilização de recursos por pessoas, famílias e terapeutas populares, cuja apreensão dos saberes se construiu a partir do cotidiano e repassado de geração a geração, em que o fazer não está ligado aos serviços formais de saúde 3. Nos dias atuais, a prática popular ainda vem sendo o primeiro recurso utilizado pelas famílias na realização do cuidado. Ambos fazem parte de uma cultura, que pode ser definida como o conjunto de dogmas, crenças e práticas que, de maneira consciente e inconsciente, orienta os objetivos e decisões de um grupo de pessoas 1. Para Moreira et al 1, a cultura é fundamental para incorporar as experiências pregressas, influenciar os pensamentos e ações no presente e transmitir essas tradições para os futuros membros do grupo. 4. Resultados e Discussão: A puérpera tem 21 anos, de cor parda, em união estável, primigesta, brasileira, católica, com ensino fundamental incompleto, dona de casa, reside em casa mista de quatro cômodos com fossa séptica, água encanada, energia elétrica e ambiente limpo. Os dados sócio-demográficos são relevantes, pois possibilitam apreender as características da puérpera, entender o seu contexto e a influência dos elementos culturais sobre ela. As razões que levam as pessoas a utilizarem as práticas populares e não a medicina convencional são inúmeras e, muitas vezes, não se relacionam aos aspectos socioeconômicos e ao nível escolar. Portanto, não pode ser caracterizada como uma prática utilizada pelas pessoas de classes mais baixas, mas como um fator integrante de sua cultura. E ainda que a humanidade tenha alcançado vários avanços científicos e tecnológicos no campo da saúde, estes ainda não foram
suficientes para suprimir da sociedade, as crenças e práticas populares vinculadas a tradições que são passadas de geração a geração 4. É talvez a criança quem mais receba a influência das crenças e práticas populares, uma vez que a mãe, enquanto gestante, passa a receber uma maior gama de influência cultural da família, em que as crenças e práticas populares utilizadas nas gerações anteriores são repassadas para ela, muitas vezes inexperiente, para que sejam reproduzidas. Desta forma, há a necessidade de uma maior cautela ao realizar o cuidado com uma mãe, principalmente na fase puerperal, sempre respeitando seus valores e crenças, mas buscando trabalhar os aspectos que possam ser prejudiciais à saúde da mãe e da criança 1-3. Durante as visitas domiciliárias à puérpera, pôde-se perceber, pelas suas falas e indagações, a forte prevalência cultural no cuidado puerperal e materno inserida no seu cotidiano, conforme pode- se perceber na seguinte fala da paciente: Viu, vocês não podem me dizer se eu posso lavar o cabelo antes dos trinta dias? Porque minha mãe me disse que quando é guri tem que ficar quarenta dias sem lavar e menina trinta dias. Esta concepção está presente no senso comum da sociedade e é passada de geração em geração, como uma medida comum adotada durante o puerpério e que gera controvérsias até mesmo entre os profissionais da área da saúde. Em outro momento, percebeu-se a forte reprodução de um saber popular, quando a puérpera nos relatou que não havia mais dificuldades para seu filho dormir à noite, pois ela havia aprendido com sua mãe uma simpatia que garantiria o bom sono noturno de seu filho: A minha mãe me ensinou a simpatia de desvirar o casaco para ele conseguir dormir de noite, agora ele não se acorda mais de noite. Desta forma, fica claro que as chamadas simpatias e superstições também fazem parte desta cultura popular e que ainda é usada nos dias de hoje. Nesse sentido, as crenças populares e os recursos não convencionais, integrantes desta cultura popular, utilizados na solução de problemas de saúde são estratégias de apropriação e construção de saberes, em que a cientificidade dos recursos utilizados não são relevantes, mas sim as respostas as suas necessidades em determinado momento 5. Ao ser questionada sobre a amamentação, a paciente relatou oferecer a mamadeira para seu filho logo após ele ter mamado no peito, pois na concepção dela, seu leite é fraco e não o sustenta, o que o leva a chorar após a mamada, segundo ela, de fome, conforme se evidencia na seguinte fala: O meu leite é muito fraco, ele mama no peito e logo começa a chorar de fome, daí eu dou a mamadeira pra ele, daí ele pára de chora.
Sabe-se hoje, que a ideia de leite fraco é equivocada e, embora tanto profissionais da saúde quanto as campanhas de amamentação trabalham no sentido de quebrar esses mitos e crenças e promovam educação em saúde, esse conhecimento popular ainda permanece muito forte. A literatura menciona que não existe leite fraco, uma vez que a composição do leite materno se faz de maneira ideal para alimentar e nutrir a criança até aproximadamente os 06 meses de idade como alimento exclusivo. Tem em sua composição o colostro, que aparece nos primeiros dias após o parto, agindo como laxante e imunizando o bebê contra diversos tipos de infecções 6. Ainda, no mesmo sentido, Moreira et al 1 identificou em seus estudos que as práticas populares mais utilizadas pelas mães envolvendo o cuidar em saúde com seu bebê estava relacionada ao aleitamento materno, em que a influência da cultura da família desencadeava no desmame precoce do bebê por afirmar que o leite era fraco e que assim o bebê morreria de fome. Isso mostra que esta é uma crença que está fortemente arraigada na cultura, difícil de ser quebrada. Em uma nova visita domiciliária, ao realizar o exame físico, percebe-se a redução do tamanho e volume de ambas as mamas, como resultado da pouca oferta do peito ao bebê e consequente insuficiência do estímulo da glândula mamária para produção do leite. Quando perguntado para a paciente se ela continuava a oferecer a mamadeira, esta respondeu afirmativamente, dizendo que caso contrário, seu filho chorava de fome, mesmo reconhecendo que este procedimento acarretaria na diminuição gradual do seu leite, conforme relato da mesma: O meu leite está cada vez secando mais, mas não adianta, se eu não dou a mamadeira ele ainda tem fome. Desta forma, mesmo com as orientações oferecidas pelas acadêmicas de enfermagem quanto à importância da oferta exclusiva do peito, a ideia de leite fraco acabou se sobressaindo, o que demonstra que, apesar do conhecimento científico que recebeu acerca do assunto, a crença que está enraizada na cultura da família, é difícil de dissolver. Esta questão relativa ao aleitamento materno foi complexa de ser trabalhada com a puérpera, pois dentro da sua cultura, o leito fraco é uma verdade e, para ela, esse conhecimento repassado através de gerações tem mais valor do que o conhecimento científico oferecido por pessoas que ela pouco conhece. 5. Conclusão: Ao promover ações em saúde, os profissionais de enfermagem precisam levar em conta a cultura em que o sujeito está inserido, uma vez que ela é parte integrante da herança de seus antepassados e, como tal, é seguida. Assim, respeitar as tradições e crenças se constitui em uma estratégia para promover uma assistência qualificada em que saber popular e científico podem ser aliados. Por meio dessa vivência em campo prático, percebe-se que promover mudanças dos hábitos em saúde envolvendo as crenças e práticas populares é um processo complexo, uma vez que estão
fortemente enraizados os aspectos culturais no seio da família e/ou comunidade. Assim, todo o saber científico e tecnológico de que se dispunha para o atendimento à puérpera não foi suficiente para promover a assistência eficaz, uma vez que a mesma optou por utilizar-se dos recursos populares para promover o cuidado, desconsiderando parte das orientações dadas pelas acadêmicas. Isto mostra que, durante a academia, apesar de se aprender a olhar para o indivíduo dentro do contexto em que o mesmo está inserido e como um ser integral, há pouco preparo para lidar com os valores culturais e, assim, há a reprodução de um cuidado pouco condizente com a realidade do sujeito e, por consequência, pouco eficaz. Além disso, não basta somente ter o conhecimento dos valores culturais, é preciso também saber aplicá-los dentro da comunidade em que o profissional atua e trabalhar em parceria com a mesma. Desta forma, as crenças e práticas populares são extremamente relevantes ao promover ações de cuidado não só ao indivíduo, de forma única, mas no coletivo, dentro da sua comunidade, olhando e respeitando as questões culturais inerentes a esta sociedade. Ressalta-se, porém, que é preciso ter cautela ao promover o cuidado associado ao saber popular do sujeito, pois muitas vezes esse saber é equivocado e pode gerar riscos à saúde do paciente, a exemplo do sujeito desse estudo que, segundo sua cultura, o leito é fraco, o que pode acarretar em prejuízos ao bebê, uma vez que o leite materno é uma das melhores fontes de alimento. Conclui-se, assim, que esta vivência foi de grande relevância para as acadêmicas de enfermagem, pois além de estar aprimorando as práticas de assistência à puérpera e ao recémnascido e aplicação da SAE, que é a base do cuidado, pode-se ainda aprofundar o conhecimento acerca da educação popular, fundamental para se realizar um cuidado efetivo e condizente com o contexto sociocultural em que a pessoa estava inserida. 6. Referências: 1. Moreira CT Et al. Crendices e práticas populares: Influência na assistência de enfermagem prestada a criança no programa saúde da família. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, 2006; 19(1): 11-18. 2. Kocher JC. Fundamentos da metodologia científica. Rio de Janeiro: Vozes; 1997. p 23-28. 3. Silvia YF. Família e redes sociais: o uso das práticas populares no processo saúde- doença. In: Silvia IF, Froenço MC. Saúde e doença: uma abordagem cultural da enfermagem. Florianópolis: Papa Livro; 1996. 4. Melo MB, Barbosa MA. Saber popular: sua existência no meio universitário. In: Livro-Temas do 56º Congresso Brasileiro de Enfermagem; Enfermagem hoje: coragem de experimentar muitos modos de ser, 2004 Out 24-29. Disponível em: http://bstorm.com.br/enfermagem. Acessado em: 01/07/2011. 5. Siqueira KM, Barbosa MA, Brasil VV, Oliveira LMC, Andraus LMS. Crenças populares referentes à saúde: apropriação de saberes sócio-culturais. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 68-73. 6. Vaucher ALI, Durman S. Amamentação: Crenças e Mitos. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 07, n. 02, p. 207-214, 2005.