As transformações nas terras do Morgado de Marapicú: Um olhar sobre o caso das disputas na Fazenda do Sapê.

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Transcrição:

As transformações nas terras do Morgado de Marapicú: Um olhar sobre o caso das disputas na Fazenda do Sapê. Rubens da Mota Machado Doutorando no PPGH/UFF A instituição do Morgado de Marapicú: A administração do Conde Aljezur Sabemos que o Morgado de Marapicú fora instituído após a morte do Capitão- Mor Manoel Pereira Ramos de Lemos, quando a viúva D. Helena de Andrade Souto Maior Coutinho e seus filhos, firmaram escritura pública em 6 de Janeiro de 1772 transferindo as legítimas paternas e maternas para o filho primogênito, João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho. A sucessão hereditária de qualquer Morgado determina que os primogênitos do sexo masculino herdem a totalidade dos bens deixados em herança 1. Desta forma, Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, Conde de Aljezur, tornouse o quarto senhor das terras do Morgado de Marapicú após a sua instituição na figura do seu avô paterno 2. O Conde de Aljezur é figura essencial para entender a dinâmica social organizada em torno do Morgado de Marapicú na segunda metade do Oitocentos. Sabemos através das informações do Registro Paroquial de Terras, que na segunda metade dos Oitocentos, que o Conde já estava à frente da administração das terras do Morgado 3. O assento no livro de Registro Paroquial de Terras indica que o Morgado era composto em 1856 pelas fazendas de Marapicú e Cabuçú, atravessando as freguesias de Santo Antônio de Jacutinga, Nossa Senhora da Conceição de Marapicú e Nossa Senhora da Piedade de 1 O Morgado ou morgadio é o conjunto de bens indivisíveis, que com a morte do possuidor, passa para o controle do primogénito. O Morgado é uma vinculação entre o pai e sua descendência, na qual o filho primogênito herda a totalidade de bens da casa, sem que possa vendê-la. O Morgado de Marapicú foi estabelecido em decorrência da morte do Capitão-Mor Manoel Pereira Ramos, ocasião que a viúva, Helena Souto-Maior, em 1772, reuniu os bens do casal em favor do filho mais velho, João Pereira Ramos, a fim de garantir a nobre de sua casa. 2 Inventário post-mortem. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Francisco de Lemos Pereira Coutinho. Ano: 1909. 3 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Registro Paroquial de Terras (1854/1857). Vila de Iguaçu. (Acessado via CD-ROM) p. 55 e 56.

Iguaçu 4. No inventário do Conde, datado do ano de 1909, os limites das terras do Morgado aparecem ainda maiores, pois incorporavam a fazenda do Paul do Gandu nos limites da Vila de Itaguaí. Não sabemos se a fazenda do Paul do Gandu foi um incorporação tardia aos domínios do Morgado de Marapicú, ou se talvez houve omissão do pároco de Iguaçu no momento de registrar as dimensões do administradas pelo Conde em função das terras da fazenda Paul do Gandu estar situada na Vila de Itaguaí. Todavia, o elemento que mais interessa neste momento é a política de administração dos domínios de Morgado de Marapicú realizada pelo Conde de Aljezur ao longo da segunda metade dos Oitocentos. O mesmo assento do Registro Paroquial de Terras que informa os suntuosos domínios do Morgado de Marapicú registrava que as terras do Conde possuía mais de duzentos arrendatários. Este artigo tratará de um conflito envolvendo o administrador das terras do antigo Morgado de Marapicú e um arrendatário no início do século XX. Antes, porém, devemos conhecer como as terras do Morgado foram adquiridas por João Leopoldo Modesto Leal. O Morgado de Marapicú muda de mãos: A administração de Modesto Leal A administração do Conde Aljezur sobre as terras do Morgado de Marapicú teve fim no ano de 1909 com sua morte na cidade de Petrópolis. Sabemos que durante o Segundo Reinado, o Conde passava longos períodos na cidade de Pedro, inclusive sendo companhia certa do Imperador durante as suas caminhadas matinais. Seu inventário 5 sugere que o Conde de Aljezur escolheu permanecer em Petrópolis para passar a velhice, falecendo de marasmo senil aos oitenta em nove anos em sua casa na Rua Montecaseiros, 281 6. 5 Inventário post-mortem. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Francisco de Lemos Pereira Coutinho. Ano de 1909 6 Se a numeração da Rua Monte Caseiros na cidade de Petrópolis não foi alterada de 1909 para cá. É possível localizar com auxílio de um software de localização espacial a casa em teria habitado Modesto Leal no período próximo a sua morte.

No momento da avaliação dos bens do inventário do Conde de Aljezur, os domínios do Morgado foram estimados em duzentos e cinquenta e quatro contos de réis. (254:000$000 réis). As fazendas de Marapicú e Cabuçu foram avaliadas cada uma em cem contos de réis (100:000$000 réis) e a fazenda Paul do Gandu foi estimada em cinquenta e quatro contos de réis (54:000$000 réis). No inventário existia ainda outra propriedade agrária, a fazenda de Varginha, localizada em Iguaçu, porém tal fazenda não compunha os domínios territoriais do Morgado de Marapicú 7. O espólio do inventário do Conde de Aljezur foi legado a sua segunda esposa, a Condessa de Aljezur, Dona Ana Carolina de Saldanha da Gama, incluindo os domínios do Morgado de Marapicú, a fazenda da Varginha propriedade livre- e duzentos e quarenta contos oitocentos e oitenta e cinco mil réis (240:885$000 réis) em apólices do tesouro nacional 8. A condessa de Aljezur, talvez não desejasse seguir a política de transformar sua vasta propriedade territorial em renda monetária por meio de concessões de arrendamentos. Afinal, em 1911 a rica Condessa vendeu os domínios territoriais legados por seu falecido marido para João Leopoldo Modesto Leal, Conde Modesto Leal, pelo valor de cento de setenta e cinco contos de réis (175:000$000 réis) 9. Portanto, a partir do ano de 1911 os domínios do antigo Morgado de Marapicú passaram ao controle do Conde Modesto Leal. Neste artigo estará em análise o conflito entre o administrador do Morgado e um arrendatário de suas terras. Esse serão os assuntos das próximas páginas. João Leopoldo Modesto Leal, Conde Modesto Leal, enriqueceu no comércio de sucatas de navios, posteriormente ampliando as suas ações comerciais nos ramos dos empréstimos financeiros, aluguéis de imóveis, além de possuir diversas fazendas espalhadas por todo o Estado do Rio de Janeiro para a criação de animais e plantios. 7 A partir do ano de morte do Conde de Aljezur a utilização do termo Morgado de Marapicú cumpre somente o sentido de manter a coesão no texto. Pois, a lei imperial de 31 de Outubro de 1835 definia que o Morgado seria dissolvido em seu perfil jurídico com a morte de seu administrador a partir daquela ano. Portanto, quando o Conde Modesto Leal compra as terras, seu regime jurídico é semelhante a qualquer outra propriedade em relação à partilha em herança. 8 Inventário post-mortem. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Francisco de Lemos Pereira Coutinho. Ano de 1909 9 É curioso notar que mesmo em plena República a documentação jurídica continue a tratar os indivíduos envolvidos por seus títulos de nobreza.

Modesto Leal foi um dos homens mais ricos dos primeiros anos da República brasileira, tendo inclusive sido eleito senador da República pelo Estado do Rio de Janeiro. O litigio pelos limites da Fazenda do Sapê No ano de 1916, o enriquecido Conde recorria a Justiça solicitando a demarcação de limites entre as suas propriedades e as terras pertencentes a Francisco Silveira Machado. A petição que deu início ao processo na Comarca de Iguaçu informa que o confrontante das Fazendas Sapê e Campo-Alegre estaria invadindo dos domínios das duas fazendas ao introduzir animais e extrair lenhas e carvão. O advogado de Modesto Leal utilizou como evidencias da invasão de propriedade as acusações de introdução de animais e extração lenha e carvão para dar início ao processo contra Francisco Machado. Sabemos através de outros processos que envolvem Modesto Leal contra arrendatários e confrontantes de suas terras que as acusações invasão da sua propriedade por animais postos a pastar e extração não autorizada de lenha era retórica recorrentes nos processo judiciárias envolvendo o referido Conde. Sabemos ainda que na época da administração do Conde de Aljezur nas terras do Morgado de Marapicú, a extração de lenha e fabricação de carvão eram práticas autorizadas entre os arrendatários. Talvez a defesa de Modesto Leal tenha optado por utilizar como estratégia de argumentação o ataque contra uma prática costumeira entre moradores da vizinha do Morgado, buscando nos tribunais ter sucesso com os anseios do Conde Modesto Leal na definição dos limites de suas propriedades. Ao começo do processo, a defesa de Modesto Leal tratou de afirmar os limites do referido Conde sobre diversas propriedades na região de Iguaçu. Seu advogado solicitou ao coletor de impostos dos distritos de Marapicú e Jacutinga a transcrição do pagamento do imposto territorial sobre as fazendas Santa Rosa, Benfica, Campo-Alegre, Mato Grosso, Imbê e Piedade, localizadas em Marapicú, bem como das fazendas Laranjeiras, Sapê, Rio D Ouro, Santo Antônio do Mato, Manganga, Saudade e Rio D Ouro Colonial, situadas Jacutinga. Desta forma, somos informado que Modesto Leal era proprietário em terras iguaçuanas de domínios muito maiores do que o antigo Morgado de Marapicú. A

transcrição do imposto territorial demostra que o enriquecido Conde era senhor e possuidor de, ao menos, mais treze fazendas na região de Iguaçu. Para algumas dessas fazendas temos informações mais precisas, pois estavam envolvidas no processo de contestação dos limites contra Francisco Silveira Machado. Sabemos que as fazendas Benfica, Mato Grosso e Campo-Alegre foram adquiridas por Modesto Leal em dois processo diferentes de compra. Suas terras haviam sido desmembradas pelos herdeiros do Miguel Athanazio da Costa Barros e Dona Dorothéia Candida de Bulhões Sayão. A herança foi partilhada em doze partes iguais entre os herdeiros do casal. O herdeiro Gilberto Sobral de Bulhões Sayão negociou a sua duodécima parte com a sociedade formada por Botelhos e Oliveira pelo ano de 1912. Sabemos que os sócios Botelhos e Oliveira acostumavam arrendavam parte das terras compradas para a Companhia de Transporte e Carruagens e para a M. Lopes da Silva. Não temos qualquer tipo de informação que o referido M. Lopes da Silva fazia das terras Transporte e Carruagens utilizava os domínios arrendados para prestar serviços de manutenção para a Estrada de Ferro Central do Brasil. Todavia em Dezembro de 1915, a sociedade Botelhos e Oliveira vendeu a duodécima parte, anteriormente pertencente a Gilberto Sayão, das fazendas Benfica, Mato Grosso e Campo-Alegre a João Leopoldo Modesto Leal. No mês anterior do mesmo ano, Modesto Leal havia comprado onze duodécimas partes das fazendas Benfica, Mato Grosso e Campo-Alegre do conjunto de herdeiros da família Bulhões Sayão. Portanto, juntando as duas compras, Modesto Leal havia adquirido as doze partes em que foram fracionadas as fazendas Benfica, Mato Grosso e Campo-Alegre. Torna-se único senhor e possuidor das referidas fazendas. Através do processo movido por Modesto Leal, sabemos que a fazenda Mato Grosso fazia fronteira com as terras do Morgado de Marapicú, enquanto a fazenda Benfica tinha como confrontante as fazendas Campo-Alegra e Benfica 10. Isto, permitiu que Modesto Leal tivesse uma vasta área contigua sobre o seu domínio. Na dupla 10 Processo de civil entre João Leopoldo Modesto Leal e Francisco Silveira Machado. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Ano: 1916.

transação, o Conde empregou cento e doze contos de réis (112:000$000 réis) para comprar os domínios das fazendas Benfica, Mato Grosso e Campo-Alegre. As escrituras de comprar e venda enunciam as intenções de Modesto Leal ao adquirir a propriedade das fazendas. Na negociação da duodécima pertencente à Gilberto Sayão, constam algumas cláusulas de contrato entre a parte compradora e os arrendatários daquelas terras. Pelas cláusulas, o Conde autorizada a Companhia de Transporte e Carruagens a finalizar a confecção dos dormentes encomendados pela Estrada de Ferro Central do Brasil, sendo, porém usadas, preferencialmente, as madeiras já derrubadas até aquele momento. Todavia, caso houvesse necessidade, a empresa poderia extrair somente madeiras brancas nas matas de Alhos e Morro de Pedra, localidades próximas à serralheria que exista na fazenda. A empresa poderia ainda utilizar livremente o pasto para alimentar os seus animais, e em caso de necessidade, Modesto Leal se comprometeu a emprestar seus animais para o transporte dos dormentes, materiais de trilhos e barracões. O Conde, porém, é taxativo quando ao término dos trabalhos prestados pela Companhia de Transporte e Carruagens no interior da sua propriedade, afirmando que todo o trabalho deveria ser finalizado em Fevereiro de 1916. No mesmo contrato, Modesto Leal afirma que pagou o valor de quatorze contos de réis (14:000$000 réis) como indenização pelas benfeitorias construídas na área, permitindo que a Companhia pudesse extrair o milho de exportação plantado na propriedade com a utilizando o tempo natural necessário para a tarefa. Contudo, cabia pelas cláusulas do contrato, a fiscalização permanente por parte dos interesses de Modesto Leal, bem como a possibilidade de proibição sobre a extração de lenha a qualquer momento no interior dos seus domínios. A presença dos critérios anunciados parece ter sido condição essencial para aquisição dos domínios por Modesto Leal, ao passo que o referido Conde anunciava um limite breve para o terminou das atividades de serralheria da Companhia de Transporte e Carruagens. No contrato de compra e venda com os herdeiros das onze duodécimas parte das fazendas Benfica, Mato Grosso e Campo-Alegre, Modesto Leal a anuncia suas pretensões para com as terras recentemente adquiridas declarando que:

... não assumiu o compromisso de respeitar o arrendamento existente nas terras das fazendas compradas, visto destina-las a exploração e desenvolvimento da indústria agrícola e pastoril em grande escala, necessitando, portanto, das matas, capoeiras, pastos, aguadas, casa e tudo mais que compreendem as referidas fazendas, ficando a seu arbítrio e critério exclusivo a manutenção dos arrendamentos dos pequenos sítios que existem nas fazendas. 11 Modesto Leal declarava que não pretendia manter os contratos de arrendamento existentes nas terras compradas, porque vislumbrar desenvolver indústria agrícola e pastoril nas terras adquiridas. Sabemos pelas pesquisas em desenvolvimento até agora que Modesto Leal enfrentava a resistência de um grupo de arrendatários nos antigos domínios do Morgado de Marapicú. O Conde vinha rompendo unilateralmente os antigos contratos de arrendamentos existentes nesses domínios desde o tempo da administração do Conde de Aljezur. Talvez, Francisco Machado estivesse atento aos confrontos judiciais entre Modesto Leal e os arrendatários do antigo Morgado, e imaginasse que suas terras pudessem estar ameaçadas pelas pretensões de Modesto Leal, No decorrer do processo movido contra Francisco Silveira Machado, a defesa de Modesto Leal abandonou a estratégia de enfatizar a invasão de terras de Modesto Leal por gado solto e extração de lenha e carvão. Passando a alertar sobre a construção, por parte do implicado, de um prédio que transpassava os limites entre as propriedades. Para averiguar o fato, o Juiz Municipal solicitou ao oficial de justiça à descrição da edificação que vinha sendo construída nos domínios litigados. Ao realizar a visitação ao local de construção do prédio, o oficial de justiça descreveu a construção contendo vinte cinco palmos de frente, mais ou menos, e quinze palmos de largueza, mais ou menos, com uma pequena parte coberta com sapê. 12 11 Processo de civil entre João Leopoldo Modesto Leal e Francisco Silveira Machado. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Ano: 1916. 12 Processo de civil entre João Leopoldo Modesto Leal e Francisco Silveira Machado. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Ano: 1916.

Sabemos que a construção descrita estava sendo erguida não diretamente por Francisco Silveira Machado, mas sim pelos sócios Botelhos e Oliveira que haviam arrendado o terreno ao citado Francisco Machado. Na verdade, a fazenda Sapê anteriormente havia sido desmembrada em duas partes, das quais uma parte foi adquirida Modesto Leal, enquanto a outra parte foi comprada por Francisco Machado. Portanto, toda a querela judicial girava em torno da definição de limites pertencente a cada uma das partes envolvidas na Fazenda Sapê. O desmembramento das terras da fazenda Sapê aconteceu no ano de 1840, quando Pedro Dias Gordilho Paes Leme, transferiu parte das terras herdadas de seu avô Pedro Paes Leme 13 para a Companhia Industrial de Seda e Ramie, representada pelo Conde Motta Maia. Posteriormente, Domingos Theodoro de Azeredo Junior adquiriu as terras, e as legou em inventário para sua filha, Dona Eugenia de Azeredo Carvalho. Foi em negociação com Dona Eugenia Carvalho que Francisco Silveira Machado adquiriu os quatrocentos hectares pertencentes a sua parcela da fazenda do Sapê. Buscando esclarecer melhor as confusões em torno das fronteiras entre as duas partes da fazenda Sapê, o Juiz Municipal solicitou ao agrimensor José Ribeiro Gomes a aviventação dos rumos das referidas terras. O laudo solicitado determinou que Francisco Silveira Machado havia invadido os limites pertencentes a parte de Modesto Leal da fazenda do Sapê. A produção do laudo esquentou ainda mais os conflitos entre Francisco Machado e Modesto Leal. O advogado do primeiro contestou o laudo, argumentando que o mesmo era inconcluso e havia sido manipulado, pois havia uma mancha de verniz em uma parte crucial do mapa produzido pelo agrimensor. Por outro lado, a defesa de Modesto Leal negava que a manipulação tivesse por sido realizada por ele, repassando a culpa para o outro advogado. A defesa de Francisco Silveira Machado insistia na tese de manipulação do mapa produzido pelo agrimensor, insinuando nos autos que a amizade entre Modesto Leal e o escrivão do Cartório - correligionário político de Modesto Leal pudesse estar relacionada com a avaria provocada ao mapa. 13 Pedro Paes Leme era o Marques de São João Marcos.

O fatídico mapa não consta no processo. E a defesa de Francisco Machado apressou-se para produzir outro mapa que pudesse, sem manchas a parte, confirmar a posse de seu cliente do quinhão em disputa da Fazenda do Sapê. Desta forma, a defesa de Francisco Machado, buscando provar a posse de seu cliente sobre os 400 hectares declarados, produziu o mapa da fazenda do Sapê que será reproduzido abaixo: Conforme indicado no mapa acima, os 400 hectares da Fazenda do Sapê que a defesa de Francisco Machado alegava ter comprado faziam fronteira com outras propriedades de Modesto, como a Fazenda Campo-Alegre, Santo Antônio e Santo Antônio da Mata. Outro confrontante com a fazenda de Sapê, propriedade alegada por Francisco Silveira Machado, era a Fazenda Nacional de Santa Cruz. Sabemos que Francisco Machado possuía um aforamento de oitenta alqueires entre a localidade do Daniel e Limeira situado no interior da Fazenda Nacional de Santa Cruz. O que tudo indica neste processo, Modesto Leal enfrentava um proprietário de terras com domínios sobre dimensões significativas, e com recursos para travar uma longa

briga nos tribunais. Após, diversas trocas de acusações e dezenas de petições de ambas das partes, o Juiz Municipal julgou improcedente o pedido de embargo e manutenção de posse promovida contra Francisco Silveira Machado. A defesa do Conde Modesto Leal chegou a recorrer, sem sucesso, ao Tribunal da Relação para tentar reverter à decisão do juízo local. Até onde sabemos, naquele ano de 1916, os planos de Modesto Leal realizar exploração e desenvolvimento da indústria agrícola e pastoril em grande escala na região da Fazenda do Sapê foi, momentaneamente, frustrado por seu confrontante Francisco Machado. Referências: Inventário post-mortem. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Francisco de Lemos Pereira Coutinho. Ano: 1909. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Registro Paroquial de Terras (1854/1857). Vila de Iguaçu. (Acessado via CD-ROM) p. 55 e 56. Processo de civil entre João Leopoldo Modesto Leal e Francisco Silveira Machado. Arquivo do Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Ano: 1916. EL-KAREH, Almir Chaiban, Filha Branca de Mãe Preta: a Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II (1855-1865), Petrópolis, Vozes, 1982. MACHADO, Rubens da Mota. A terra e seus muitos domínios: senhores, lavradores e escravos nas redes pelo usufruto da terra (Vila Iguaçu, 1840 1880). 2013. 149f. Dissertação (Dissertação em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos de terra e direito agrário no Brasil na segunda metade do século XIX. 2. ed. rev. e ampl. Niterói: Editora da UFF, 2008.. Feliciana e a botica: Transmissão de patrimônio e legitimidade do direito à terra na região de Maricá (segunda metade do século XIX). In: LARA, Silvia Hunold (Org.); MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Direitos e justiças no Brasil: Ensaios de História Social. Editora Unicamp: Campinas, 2006.

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