Delma Maria Fonseca Gonçalves A fantasia precursora dos sintomas A escuta dos histéricos ensinou a Freud que a fantasia podia ser precursora da formação dos sintomas. Esta vertente nos remete a uma dimensão do sintoma que não é somente a do inconsciente como intérprete, mas do sintoma como satisfação, que se expressa na fantasia. Este texto trabalha os fundamentos destas descobertas e levanta a questão dos sintomas psicossomáticos que não se servem da fantasia como mediadora ou precursora dos mesmos. > Palavras-chave: Psicanálise, escuta, sintomas psicossomáticos, fantasia Listening to hysterics taught Freud that a fantasy could be a forerunner to the formation of symptoms. This line of thought takes us to a dimension of symptom that is not only that of the unconscious as interpreter, but also that of the symptom as satisfaction, expressed in the fantasy. This text discusses the grounds for these discoveries and brings up the issue of psychosomatic symptoms, which do not make use of fantasies as mediators of or forerunners. > Key words: Psychoanalysis, listening, psychosomatic symptoms, fantasy artigos > p. 37-41 Introdução A descoberta da psicanálise começa com o sintoma. Todo tratamento ou toda análise começa com o endereçamento de um sintoma ao analista. E todas as manifestações de dificuldade à ação terapêutica os obstáculos ao tratamento, o conjunto de questões levantadas em relação aos finais de análise são, cada uma delas, advindas da persistência do sintoma, que nos coloca, ainda uma vez, a trabalhar. Embora a função inicial da psicanálise tenha sido livrar os pacientes de seus sintomas, e esta seja também a demanda de todo analisante, a persistência deles a levará a constatar a presença de um real, que resiste à cura. E não podemos reduzir esse ponto à questão da resistência. Há realmente algo de incurável na estrutura. Há um buraco no saber humano que impede que se elimine todo o sintoma. >37
artigos >38 Especificidade do sintoma psicanalítico A pré-história da psicanálise está enraizada no desejo de Freud de compreender algo das doenças funcionais, estas que não apresentam comprometimento orgânico comprovado. Com Charcot, veio a hipótese de que influências advindas do outro, no caso o médico, poderiam ter um desempenho de criar e/ou eliminar sintomas histéricos, provocar paralisias com palavras. Depois veio o texto de Anna O., que Breuer entregou a Freud, onde ficou sugerido, ou mesmo estabelecido, que os sintomas histéricos estavam relacionados à vida emocional, a causas traumáticas que se encontravam perdidas para a memória do sujeito. O método precursor da psicanálise, a catarse, consistia em encontrar estas causas traumáticas que motivavam os sintomas. Com a constatação da existência de um trauma repelido da consciência, fica também estabelecida a divisão do psiquismo, evidenciando que o mental não coincide com o que é consciente e que o tratamento só pode transcorrer em uma língua onde o trauma será dedutível da história de cada um. Freud logo introduzirá uma novidade técnica, que é a associação livre, para logo também descobrir que ela não é tão livre assim, porque as associações sempre levavam a um mesmo ponto. Vai se deparar aí com a resistência do sujeito a chegar à esperada abreação, da qual dependia a cura. Chama esse ponto de Núcleo Patógeno (NP) e vai descobrindo que, embora seja ele o que se procura no tratamento, é justamente esse núcleo que repele o discurso, ou então, é dele que o discurso foge. Isto é a resistência, essa inflexão do discurso ao se aproximar do trauma, donde já podemos dizer que o tratamento é pela palavra, mas tem um ponto que a palavra não diz. As vertentes do sintoma Com tais considerações, podemos identificar aqui, desde Freud, dois eixos, duas vertentes veiculadas pelo sintoma: 1 a A vertente de saber falar: Aqui temos o sintoma, que, por ser tecido pela palavra é também passível de ser decifrado por ela através das associações. Estamos na lógica do inconsciente como interpretável numa análise linguajeira, onde se operou o recalque dos significantes fundamentais do sujeito, que levará a esse caráter de substituição e exigência de um significante seguinte. E é isso que abre caminho para a formação do sintoma, que é passível de ser decifrado na palavra, através das associações. Esta convicção freudiana de que o sintoma tem um sentido e que pode ser decifrado será abordada por Lacan com os recursos da lingüística estrutural. Em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1957), Lacan situa o sintoma no nível do enunciado do grafo do desejo, lugar do desconhecimento, da alienação. O lugar privilegiado do sintoma é a significação que o sujeito dá ao Outro s(a) ------A, onde o neurótico não só se serve do Outro como o revitaliza, o restaura. Quer o Outro completo e faz isto com o sintoma. Como aquela paciente da qual nos fala Freud em O sentido dos sintomas (1916): trata-se de uma mulher submetida a uma compulsão que se expressava numa obsessão de ficar o dia inteiro correndo de um quarto para o outro chamando a empregada e a dispensando em seguida. O sentido deste sintoma remontava à
noite de núpcias dessa senhora, quando seu marido ficara impotente. Este ato obsessivo presente vinha a ser a atualização da cena ocorrida dez anos antes em sua noite de núpcias, continuando-a e corrigindo-a, consertando algo no Outro, ou seja, a impotência do marido, é o que nos diz Freud: Este sintoma tinha a intenção de retificar uma parte desagradável do passado e colocar seu esposo em melhor situação... Podemos dizer com Lacan que, como não existe a relação sexual, a pulsão genital deve fabricá-la no campo do Outro. Este sintoma formaliza no lado do grande Outro a relação homem-mulher tal qual toma forma no discurso, no laço social, no campo da cultura, que propõe modos de parceria assim e não assado. No campo do Outro há invenções, há criações de dispositivos, mas do outro lado é sempre o mesmo, uma hiância irredutível. Os dispositivos não mudam as pulsões parciais; a parte elaborável da linguagem sempre fracassa em dizer tudo, evidenciando sempre um ponto de não saber irredutível de onde advém a segunda vertente do sintoma, deste ponto onde a palavra não diz. 2 a Vertente de saber fazer satisfação: A clínica impõe a convicção de que no sofrimento sintomático há algo que transborda o princípio do prazer e Freud já fora advertido da insuficiência da palavra para dar conta de tornar todo o trauma tratado pelo simbólico: observa que os pacientes repetem coisas que lhe são desagradáveis, têm apego ao que lhes causam danos. O sofrimento do sujeito está habitado por um gozo desconhecido um sentimento de culpa inconsciente que acha satisfação na enfermidade. Sentimento que permanece mudo para o paciente e só se manifesta como resistência à cura. Isso Freud nos diz em O ego e o id, depois de ter elaborado Além do princípio do prazer (1920), lugar que trabalha essa satisfação silenciosa, como pulsão de morte. No seminário Angústia, Lacan vai dizer que o sintoma não é só apelo ao Outro. O sintoma em sua natureza é gozo e se basta. Então o sintoma tem sua lógica de saber cifrar, falar e impõe seu saber fazer satisfação, uma maneira de gozar para além do inconsciente intérprete, nos diz Lacan em RSI. Desde o início de suas descobertas, Freud sempre trouxe este caráter pulsional quando pontuava o fator quantitativo, econômico. Em Neuropsicose de defesa (1894), a defesa estava baseada numa teoria econômica Um quantum de afeto quantidade de excitação algo suscetível de aumento e diminuição, deslocamento e descarga. Vai também dizer em vários pontos de seu ensino que o sintoma não é só padecimento, ele se satisfaz na queixa, no auxílio do médico, na compaixão alheia, (1915-1917, conf. 24):... se os senhores tratam de neuróticos logo deixarão de pensar que aqueles que mais se queixam e lamentam sua doença seriam os mais dispostos a aceitar remédio. É o contrário. E dirá que o sintoma está ancorado num ponto de satisfação do passado e o que ele faz é repetir essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que surge no conflito: O sintoma irreconhecível para o sujeito, sente a suposta satisfação como sofrimento (p. 437). A fantasia como precursora do sintoma Em Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908, v. IX), Freud coloca a fantasia como lugar-tenente de uma relação sexual impossível de significar e es- artigos >39
artigos >40 tabelece que há por trás de todo sintoma histérico duas fantasias sexuais, das quais uma tem caráter feminino e outra um caráter masculino. Do termo bissexualidade, que Freud faz a essência da fantasia histérica, podemos deduzir claramente dois gozos, como a mulher que arranca suas roupas com uma mão enquanto homem e as mantém apertadas em outra mão enquanto mulher. Nesse texto, Freud vai dizer que as fantasias inconscientes são precursoras psíquicas imediatas de toda uma série de sintomas histéricos e estes nada mais são do que fantasias inconscientes, exteriorizadas por meio da conversão... os sintomas histéricos são a realização de uma fantasia inconsciente que serve à realização de um desejo. Estão à serviço da satisfação e representam uma parcela da vida sexual do sujeito e surgem como uma conciliação entre dois impulsos afetivos opostos... No segundo nível do grafo do desejo, o da enunciação, ou do enigma implicado em todo enunciado, surge primeiramente o matema da pulsão, <> D, onde encontramos o sujeito confrontado com a demanda do Outro e o S( ), lugar da angústia e do Che Vuoi? dirigido ao Outro. O Outro aqui não é o A sem barra, tesouro dos significantes, mas... apoiamos o fato de que esse lugar do Outro não deve ser buscado em parte alguma senão no corpo, que ele não é intersubjetividade, mas cicatrizes tegumentares no corpo, pedúnculos a se enganchar (brancher) em seus orifícios, para neles exercer o ofício de ganchos (prises), artifícios ancestrais e técnicos que o corroem. (Lacan, 1967) Freud promove o retorno do exílio do corpo em relação ao pensamento, onde Lacan formaliza o conceito de pulsão. Submetido às exigências de satisfação da pulsão, o sujeito se defronta no Outro com sua falta. A partir daí ele construirá o fantasma, com os restos ouvidos e mal entendidos da relação com o Outro. O fantasma se coloca então como o primeiro nível de velamento da verdade da falta do Outro. E é na medida em que a significação não é suficiente para dar conta do sintoma, que a psicanálise vai propor este outro elemento, a fantasia, que interfere na sua formação, mascarando a relação do sujeito com a pulsão (...) a lógica que nos propusemos supõe não haver outra entrada para o sujeito no real senão a fantasia (...) mas, vê-se pelas atuações do neurótico que, da fantasia, ele só se aproxima de viés, ocupadíssimo que está em sustentar o desejo do Outro, mantendo-o de diversas maneiras em suspense. (Ibid.) Vejamos o grafo: O vetor do desejo <> a <------d ao incidir sobre o fantasma bifurca-se: Uma das setas orienta-se para o lugar do s(a) ao qual convergem a imagem especular (m) e o campo do Outro, ponto de cruzamento que é o lugar do sintoma como metáfora. A outra seta sai do fantasma e vai ao S(A), ponto de falta na estrutura. Implica omissão de um termo, demarcando o lugar da insuficiência e do vazio que sustenta a própria estrutura. Podemos dizer que o sintoma tal como Lacan o apresenta em Subversão do sujeito é feito desses dois elementos: significação e fantasia. Em outras palavras, é uma articulação entre um efeito significante e a relação do sujeito com o gozo. Pensar o inconsciente como discurso e o sintoma como mensagem a decifrar orienta a operação analítica como possibilidade de
liberar o significado recalcado que constituía a verdade do sujeito. Foi daí que partimos neste trabalho. Mas pensar que o inconsciente escreve gozo muito antes de ser intérprete é pensá-lo estruturado com a língua, letra pulsional, que é um dos nomes do real e se refere ao exílio do corpo em relação ao pensamento; resíduo de percepção de palavra que é letra, é primário, aquilo que nunca se encontra na experiência, na realidade. A partir desta concepção, operar com o sintoma é abrir o seu invólucro, que é a resposta em forma de consistência, para chegar à inconsistência que o sujeito pretendeu responder com esse artifício. Para concluir, gostaria de deixar em aberto a questão relativa aos sintomas que não recebem o tratamento dado pela fantasia. Freud diferenciava, neste sentido, as neuroses atuais das psiconeuroses, como podemos delas diferenciar os fenômenos psicossomáticos, onde o trauma intolerável não recebe tratamento simbólico e se manifesta como lesão, no corpo. A multiplicação de sujeitos portadores de fenômenos psicossomáticos coloca a psicanálise a trabalhar. Sua ética lhe permite, e até impõe aí supor um efeito de sujeito. A intrusão significante corresponde à extrusão do gozo cujo resultado faz com que o corpo se desnaturalize, se sexualize, seja enfim, pulsional. Em outras palavras, a extração do objeto a é que possibilita a constituição da realidade do sujeito, que estruturalmente vai fazer de tudo para recuperá-lo, através da imagem do outro i (a) ou a partir da fantasia <>a. Uma das possibilidades de fazer o gozo entrar no corpo sem a mediação da fantasia é na psicossomática, onde a holófase seria um acidente da incorporação, que embora não leve ao gozo fálico sexual não deixa de ser uma forma de incidência do significante no corpo. Acho instigante o giro que Maria Anita Carneiro nos indica para operar com o fenômeno psicossomático: fazer passar o gozo do Outro ao gozo fálico da neurose e este ao gozo do sentido da associação livre. Será possível esta aposta? Antonio Quinet nos indica que o fenômeno psicossomático é uma carne que funciona fora da seqüência significante do corpo. Será possível fazer com que o significante que faz lesão no corpo entre em uma cadeia insignificante como marca que represente este corpo? Referências ALBERTI, Sônia e RIBEIRO, M. Anita. Retorno do exílio. Rio de Janeiro: Contra capa, 2004. FREUD, Sigmund (1908). Fantasia histéricas e sua relação com a bissexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. IX. O sentido dos sintomas. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVI. LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. A lógica da fantasia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 323-8. QUINET, Antonio. Retorno do exílio. Rio de Janeiro: Contra capa, 2004. p. 67-8. Artigo recebido em setembro de 2005 Aprovado para publicação em março de 2006 artigos >41