A VEROSSIMILHANÇA DO IMAGINÁRIO EM O ALEPH, DE BORGES

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Transcrição:

A VEROSSIMILHANÇA DO IMAGINÁRIO EM O ALEPH, DE BORGES Érika Tamirys de Lima Geisiara Priscila Christ (G GP Leitura e Ensino CLCA UENP/CJ) Nerynei Meira Carneiro Bellini (Orientadora CLCA UENP/CJ) A clássica obra O Aleph, de Jorge Luis Borges é considerada uma das obras que mais incitam a curiosidade do leitor e pode se transformar para ele em um grande desafio a ser alcançado, o intimidando, em um primeiro momento, por vários motivos: a linguagem requintada do narrador, por exemplo, causa estranheza a quem não tem o costume da leitura. O texto também pode parecer obscuro e confuso devido a sua repartição em diversos caminhos que demonstram não levar a lugar nenhum, podendo fazer com que o leitor desista da leitura e se intitule inimigo evidente do autor. Há um convite para quem se aventura a percorrer a narrativa borgeana, de modo a defrontar a construção da literatura, que depende de alusões e símbolos, uma caixa dentro de outra caixa, e assim infinitamente. Esse tipo de escrita é o que se estipula chamar de labirinto. Na concepção do autor, labirinto é a própria literatura, já que ela é uma construção complexa que abrange muitos elementos ou partes, cheia de referências na qual cada esconderijo é capaz de lançar o leitor a outro, imediatamente, contido em seu interior e, assim, sucessivamente até o infinito. A literatura é uma prática que nunca se esgota, flui na direção do infinito; sendo a verdadeira forma de ser do ofício literário. Se O Aleph de Borges era o lugar onde estão, sem se confundir, todos os lugares do universo, vistos desde todos os ângulos, fazendo uso da metáfora, podemos descrever a literatura universal como um espaço único e ilimitado que reúne o fruto de todos os escritores de qualquer época. Para ler esta obra é preciso utilizar os sentidos e o simbolismo é a marca registrada do autor, por isso analisá-la do ponto de vista racional não surtirá o efeito desejado. Aqui, e na maioria das obras de Borges, depara-se com o fantástico, isto é, algo que não é real, mas por sua verossimilhança - descrever o fantástico como algo provável - acaba tornando-se mais real que a própria realidade, sendo esta uma característica literária. De acordo com David Roas (2001, p.7), a maioria dos críticos afirma que a condição indispensável para que se produza o efeito fantástico é a presença de um fenômeno sobrenatural. Isso, contudo, não quer dizer que 146

toda a literatura em que esteja presente o sobrenatural deva ser considerada fantástica. Entretanto, a literatura fantástica é a única modalidade que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural. E o sobrenatural é aquele que atravessa os limites das leis que organizam o mundo real, aquele que não tem explicação lógica, que não existe no universo empírico. Na obra O Aleph, o leitor encontra 17 contos, sendo o último o conto de nome homônimo ao livro. Jorge Luis Borges retoma neste livro seus temas favoritos dando-lhes um imprevisto estabelecimento. Em cada relato arrisca uma nova visão do universo fantástico. Nelas, ele exerce seu modo característico de manipular a "realidade": as coisas da vida real deslizam para contextos incomuns e ganham significados extraordinários, ao mesmo tempo em que fenômenos bizarros se introduzem em cenários prosaicos. Deve ser criado um espaço que se assemelha ao que vive o leitor, um espaço que se verá invadido por um fenômeno que perturbará sua estabilidade. É por isso que o sobrenatural vai supor sempre uma ameaça para a realidade extrínseca à obra de modo a interrogá-la e fazê-la perder sua unidimensão. O conto O Aleph desenvolve o fantástico narrativo que, segundo Todorov no livro Introdução à literatura fantástica, é caracterizado por ser o único gênero em que o sobrenatural não pode ser explicado pelas leis que regem o mundo real, ele é o inexplicável, que provoca no leitor o questionamento sobre a existência do sobrenatural e o leva a contestar a sua própria existência: O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a (sic) um acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1992, p.31). David Roas, em seus estudos sobre obras fantásticas, sistematizou as teorias mais significativas e, assim, define o fantástico: (...) el relato fantástico provoca y por tanto, refleja la incertidumbre en la percepcíon de la realidad y del propio yo: la existencia de lo imposible, de una realidad diferente a la nuestra, conduce, por un lado, a dudar acerca de esta última y, por otro, y en directa relación con ello, a la duda acerca de nuestra propia existencia: lo irreal pasa a ser concebido como real, y lo real como posible irrealidad ( ).(ROAS, 2001, p. 9) O conhecimento racional acaba por ser condenado a fracassar, assim como acontece no conto O Aleph o descobrimento deste enigma, em meio às narrações de Borges realizadas em primeira pessoa, torna mais difícil sua assimilação, já que as primeiras narrações são 147

sempre em volta do mesmo assunto, Beatriz Viterbo, e sua ausência, que é a causa das rotineiras visitas de Borges à antiga casa da mesma, na data do aniversário da mulher. Uma das possíveis razões para o narrador voltar à casa de Beatriz, mesmo sem sua presença, seria sua tentativa atroz de mantê-la viva em sua memória, uma vez que a moradia está impregnada de pessoas e objetos que remetem a ela, ou seja, pai, primo-irmão, retratos, móveis, e o próprio espaço físico. Mudará o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, alguma vez, minha vã devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me a sua memória, sem esperança mas também sem humilhação. Considerei que em 3O de abril era seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo-irmão, era um ato cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias de seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia de seu casamento com Roberto Alessandra; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e em três quartos de perfil, sorrindo, com a mão no queixo. (BORGES, 2011) Neste momento, o narrador intenta preservar as lembranças de Beatriz que se esvaem com a passagem do tempo. Além disso, a paixão quase obsessiva de Borges por ela, a despeito de revelar as inquietações do protagonista e, consequentemente, desencadear uma narrativa envolvente ao leitor, cria a condição necessária para se revelar o jamais visualizado, o indizívil, o incompreensível: o Aleph. É a condição sine qua non para se instaurar o fantástico narrativo, ou seja, a representação ficcional de uma realidade verista para se liberar o imaginário. Na elaboração de uma narrativa fantástica se faz necessário a confrontação de uma realidade empírica com o sobrenatural. Para tanto, o autor, por meio de seu narrador, constrói espaços, componentes, personagens plausíveis em um mundo real introjetado pelo irreal. A esse respeito discorre Filipe Furtado em seu livro A construção do fantástico na narrativa: (...) na narrativa fantástica, o espaço familiar da natureza circunscreve sempre na maior parte da acção, constituindo a regra aparente do mundo fictício em que o fenômeno meta-empírico se insinua (...) (visa a) recorrer 148

sobretudo a processos descritivos tendentes a acentuar os traços realistas do mundo material nele representado. (FURTADO, 1980, p.126) No conto, dois personagens, Carlos Argentino e Borges (o narrador) descrevem suas visões pessoais. Em meio a suas confidencias divididas com Borges, Carlos afirma que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos (BORGES, 2011) e que se encontrava no porão, na sala de jantar da casa de sua família. O próprio narrador vislumbrou e descreveu sua visão: Então vi o Aleph. A fim de criar verossimilhança narrativa e persuadir o leitor à provável existência do Aleph, Borges apela para a dimensão mítica dos deuses e afirma: É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei. (BORGES, 2011) O conto reporta a uma questão crucial, ou seja, a limitação entre o imaginário e a linguagem no processo artístico da produção literária. A complexidade e a riqueza da mente humana não são transmitidas em sua totalidade à escrita, em razão das limitações existentes no âmbito da linguagem. Tal fato angustia ao escritor, que muitas vezes, deixa transparecê-lo em suas criações textuais. Borges reitera isso no conto: Chego, agora, ao inefável centro de meu relato toda linguagem; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? (...) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. (BORGES, 2011) 149

No conto, o escritor ao engendrar um narrador que se denomina Borges parece sugerir, na tessitura narrativa, a interpenetração de realidades (real e ficcional), isto é, trata-se de Borges, o escritor real com uma experiência sobrenatural ou um Borges ficcional, falseado pela linguagem? Além disso, esse narrador reforça a verossimilhança da visão do fato sobrenatural Aleph excusando-se da impossibilidade de verbalizá-lo em sua totalidade. A fim de amenizar essa restrição, vale-se de analogias históricas para descrever a então indescritível imagem fantástica: Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é de todos os pássaros; Alanus e Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph). (BORGES, 2011) A despeito dessas impossibilidades entre experiência mimética e descrição verbal, o narrador, depois de muito protelar em criar certas expectativas no leitor, empreende a descrição pormenorizada do Aleph: Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu (...) vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura (...) o inconcebível universo. (BORGES, 2011) 150

O Aleph parece conter todos os lugares, todos os tempos, todas as reminiscências, todas as experiências, enfim, todo o universo, em um ponto em que se culminam todos os outros, cuja dimensão é de dois ou três centímetros. Algo totalmente sobrenatural. O narrador maravilha-se com a estupenda e magnífica visão, mas esta lhe foi permitida por meio de Carlos Argentino, que o levou até o porão da casa de Beatriz onde estava o Aleph. Nessa leitura, entende-se que o narrador borgeano nutre um rancor por Carlos em razão de este ter tido um envolvimento amoroso com Beatriz, por isso dissimula seu êxtase diante da imagem: Os sapatos de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar: Formidável. Sim, formidável. A indiferença de minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia: Viste tudo bem, em cores? Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e o instei a aproveitar a demolição da casa para afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém creia-me, a ninguém! perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade são dois grandes médicos. (BORGES, 2011) Por fim, parece que a grande angústia a perturbar o narrador ocorre não somente em relação a seu amor platônico por Beatriz, mas, sobretudo, em relação à memória atingida pelas intempéries do tempo. Por isso, ele tenta a todo o momento preservar as lembranças de pessoas e de feitos marcantes em sua vida, mas no decorrer da narrativa é perceptível que prevalece algo cruel e inevitável: o tempo esmaece suas reminiscências. Sejam elas em relação à Beatriz ou ao Aleph. A única coisa que parece ludibriar a ação do tempo é a imortalidade que os clássicos da literatura atingem. Na acepção de Ítalo Calvino, essa universalidade alcançada por Borges, inclusive em O Aleph, permite que a obra não se esgote, nunca envelheça, permaneça atemporal e universal, por se tratar de um clássico. Considerações finais Depois da morte de Beatriz Viterbo, Borges visita sua casa no dia de seu aniversário, pois como diz o próprio narrador: assim ele poderia consagrar a memória da jovem. Na 151

abarrotada salinha, Borges estuda as circunstâncias de seus muitos retratos: Beatriz de perfil, em cores, com máscara de carnaval, primeira comunhão de Beatriz, Beatriz sorrindo com a mão no queixo etc. É neste ambiente verossímil que Borges, o narrador, presencia algo jamais contemplado, o sobrenatural Aleph. Mas o que seria o Aleph? É o que este trabalho aborda a partir de uma análise temática e formal dos componentes estruturadores do fantástico na clássica obra do escritor Borges. Para tanto, o estudo se baseia em considerações de Todorov, Roas etc. Por fim, o leitor pode também conhecer e experimentar a sensação de ver o Aleph. Referências: BORGES. O Aleph. Disponível em: <http://riesemberg.blogspot.com/2009/08/o-aleph-jorgeluis-borges.html>. Acesso em: 01 ago. 2011. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte Universitário, 1980. GUERINE, Andréia. Borges na Itália. 2005. Disponível em: < www.periodicos.ufsc.br>. Acesso em: 21 Abr. 2010. ROAS, David. Teorías de lo Fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001. ROSCHEL, Renato. Ítalo Calvino. Disponível em: <http://www.liguelivros.com.br/calvino.html>. Acesso em: 01 ago. 2011. ROSCHEL, Renato. Biografia Mínima. 2006. Disponível em:<www.leitura.blogspot.com.br>. Acesso em: 20 Abr. 2010. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992. 152

Para citar este artigo: LIMA, Érika Tamirys de. CHRIST, Geisiara Priscila. A verossimilhança do imaginário em O Aleph, de Borges. In: VIII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos Linguísticos e Literários. 2011. Anais... UENP Universidade Estadual do Norte do Paraná Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2011. ISSN 18089216. p. 146 153. 153