Escravos negros na capitania de São Jorge dos Ilhéus no século XVIII Fernanda Amorim da Silva 1 Orientador: Marcelo Henrique Dias 2 O conhecimento regional, tomando como exemplo a historiografia francesa, levou a uma reformulação da noção de história nacional, tendo a escola dos Analles como grande impulsionadora dessa nova mentalidade e dessa renovação no estudo das problemáticas das sociedades agrárias. Dentro dessas novas abordagens, no plano da história local e regional, pode-se desenvolver dentre outros, o estudo da organização do espaço rural. É o que propomos nesta pesquisa sobre a Vila de São Jorge, enfatizando a participação dos escravos negros no montante da população e na produção agrícola, bem como o ritmo e condicionantes das alforrias. A leitura de documentos do cartório de Ilhéus no século XVIII, em especial o estudo das cartas de alforria, é a base desta pesquisa e se constitui num procedimento fundamental para pesquisas como esta, pois, desde o início da colonização brasileira, os tabeliães de nota foram necessários e estiveram presentes lavrando e autenticando escrituras e outros documentos, já que a colonização se deu a partir da concessão de terras. Esses livros de nota da Vila de Ilhéus se constituem numa série que, se combinado com outros documentos também existentes, como inventários e testamentos, darão conta do amplo espectro da vida social e econômica dos escravos e forros da Vila. Com a coleta desses dados e com a comparação e análise dos mesmos, estamos percebendo que a participação da mão-de-obra negra não foi pequena como se imaginava. Esta pesquisa ainda não chegou ao fim, mas já pudemos perceber a presença do escravo negro de forma constante e ativa nos laços sociais da época, na Vila de São Jorge e em seu termo. Acreditamos, assim, e a partir de outros indícios surgidos até o momento, que será possível mostrar, com o resultado final da pesquisa, que a participação negra foi bastante significativa 1 Aluna do curso de História da UESC e bolsista do projeto de pesquisa Estruturas Sociais e Econômicas da Capitania de São Jorge dos Ilhéus (1700-1850). 2 Professor Mestre do DFCH e Coordenador do Colegiado de História da UESC.
sendo a realidade sócio-econômica da capitania mais complexa e menos sombria do que a exposta pela narrativa da historiografia oficial. São as cartas de alforria que nos revelam alguns aspectos das relações entre escravos e senhores, bem como com outros escravos e libertos, suas condições de vida e trabalho, a relação dos mesmos com os recursos e processos de produção, a origem desses escravos, dentre outras questões de grande interesse e que podem ser determinantes para aprimorar o conhecimento regional sobre a natureza da sociedade que gerou a história da nossa atual região sul-baiana. As alforrias, em princípio, demonstram significado religioso, já que os senhores fazem questão de registrar que estão alforriando os escravos por amor a Deus. Em alguns casos destacam também os bons serviços prestados pelos forros ou até mesmo pelos pais destes. Mas, em sua maioria, esses escravos pagavam por sua liberdade. São raras as vezes em que os senhores não cobravam em dinheiro, e à vista, e isto constitui a principal questão neste estudo: quais as fontes de pagamento destas alforrias? Pois os escravos cumpriam as exigências dos senhores pagando à vista e em dinheiro por elas. A persistência e a ampla difusão dessa prática nos leva a questionar como uma vila vista sob a ótica do discurso de decadência pela historiografia tradicional poderia oferecer condições para que os escravos possuíssem tal quantia de dinheiro. Quantia esta que não era pequena, e em grande parte, ultrapassava o valor dos imóveis cujas vendas estão registrados nesses mesmos livros de nota. Dos 125 documentos lidos até o momento, 22 são cartas de alforria (esses documentos compreendem o ano de 1710 e ao período 1728-1734), sendo no total 28 alforriados, pois em algumas cartas libertavam mais de um escravo. As crianças alforriadas geralmente eram filhos ou afilhados dos senhores e algumas vezes eram filhos de bons escravos. Os velhos, que segundo Kátia Mattoso eram escravos maiores de 35 anos, eram alforriados pelos bons serviços e por não trabalharem mais, ficando assim abandonados à sua própria sorte. Tab.1 Homens Mulheres Média do valor Velhos Crianças das alforrias 09 19 70 mil réis 04 08 Alguns desses escravos não tem a origem definida nos documentos, outros, no entanto, são identificados como da Guiné ou das Minas. Nas alforrias de crianças, é dado a entender que estas nasceram na própria Vila de São Jorge.
Origem: Tab.2 Da Guiné Das Minas Da Vila Sem Definição de origem 5 2 8 13 Quanto à natureza das alforrias, a maioria é simples, incondicional e paga pelo próprio escravo. Encontramos até uma escrava que deu em troca da sua liberdade outras duas escravas vindas da cidade da Bahia. Outros escravos são deixados forros nos testamentos de seus senhores e alcançam a liberdade após a morte destes. É o caso de um senhor que deixou a seguinte declaração em seu testamento: Declaro que tenho três filhos naturais filhos/ que tenho [ilegível] de sobreditta minha escra/ va por nome Maria, a saber Domingos/ Vicencia, Francisca os quais são meus filhos/ Declaro que deixo todos libertos aos dittos/ meos filhos assima nomeados. Natureza da alforria/formato da Concessão: Tab. 3 Cláusula Testamentária Paga Não paga Bons serviços/ outro motivo Alforrias pagas sem cláusula testamentária 5 4 7 12 Natureza das alforrias 39% 61% pagas não pagas
Outros documentos podem ser esclarecedores daquilo que as cartas de alforria não revelam. A exemplo das escrituras de retração dos escravos (aluguel) e de doações de escravos contidos nesses livros de nota, como também os inventários e testamentos de senhores de escravos que possam nos revelar a existência da chamada brecha camponesa, onde o escravo tem a possibilidade de possuir um roçado ou trabalhar num, para seu sustento ou lucro. E até mesmo as procurações, dentre os quais encontramos a procuração feita por um ex-escravo que descreveria como objeto de procuração ouro, prata, escravos, gado, açúcar, tabaco, carregações, etc Como esse forro da Vila de São Jorge chegou a possuir tais bens e como outros tantos possuíam dinheiro para comprar a liberdade, são questões que nos levam a ir mais fundo em nossas pesquisas.
Referência Bibliográfica! CARDOSO, Ciro Flamarion. BRIGNOLI, Héctor Pérez. A evolução recente da ciência histórica. Os Métodos da História. Cap. 01, p. 21-44, 5 º ed., 1990.! LINHARES, Maria Yedda. História Agrária.Domínios da História, ensaios de teoria e metodologia. Oeganizadores: Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Cap. 06, p.165-184, 5 º ed., 1997.! MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: editora Brasiliense, 1990.! SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos (Engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835). São Paulo: Cia das letras, 1988.! SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os arquivos cartorários e o trabalho do histoeiador. Acervo, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.05-15. 1987.