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Transcrição:

Pessoa breve

Fernando Pessoa poemas escolhidos de ALBERTO CAEIRO edição Fernando Cabral Martins Richard Zenith ASSÍRIO & ALVIM

PREFÁCIO Intitulou-se «o único poeta da Natureza». E como vivia no campo, no cimo de um outeiro, sentia uma especial afeição pelas árvores, as flores, os rios, as pedras Mas Alberto Caeiro reconhecia que a «natureza» abrange todas as coisas do mundo material. A «espantosa realidade das coisas» era a sua «descoberta de todos os dias», afirma um poema de 1915. Outros poemas seus deixam bem claro que essa descoberta não era menos, nem mais, do que a percepção direta das coisas como nos surgem, na sua completa e suficiente materialidade. Quando o seu amigo Álvaro de Campos o advertiu de que havia semelhanças entre a corrente filosófica conhecida como materialismo e a doutrina inerente à sua poesia, Caeiro retorquiu: «Mas isso a que você chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver.» Para o poeta da Natureza, poetizar era também ouvir, tocar, cheirar e saborear, mas principalmente ver. Sempre como se fosse pela primeira vez. Ver como uma criança, livre de impressões prévias, teorias, filosofias ou ideias preconcebidas. É o ver que, para um adulto, exige uma «aprendizagem de desaprender». A Fernando Pessoa, intelectual cultíssimo e perdidamente viciado na razão, exigia um esforço superior ao que era capaz. E aí reside o milagre e o triunfo. Fernando Pessoa, por uma vez na vida, não teve razão: teve uma visão. Não terá sido exatamente assim, claro, mas foi apesar de si próprio que dele brotou Alberto Caeiro. 7

Pessoa andava interessado na natureza como tema de poesia e, em 1913, escreveu fragmentos para um curioso ensaio, «O Sentimento da Natureza», que distinguia entre dois modos de animar a noção que temos das coisas que nos circundam. Podemos, por um lado, emprestar-lhes a nossa vida e alma humanas, um procedimento elevado a um requintado grau pelo Paganismo, que humanizava a natureza através de entes vivos uma ninfa, um génio que habitavam as coisas e se fundiam com elas. (Pessoa sentia-se atraído pelo paganismo desde 1910, pelo menos, e já tentara representá-lo em alguns poemas, inacabados.) Outro modo de animar a natureza é atribuir-lhe uma vida interior divina, à maneira de S. Francisco de Assis, como se as coisas fossem expressões de Deus ou «símbolos do Além». O ensaio detém-se um pouco sobre o paganismo e sobre S. Francisco, mas parece que Pessoa queria propor ainda um terceiro modo de sentir a natureza. É o que sugere um breve apontamento, «sentimento da Natureza pura paisagem», que o escritor não desenvolveu, mas assinalou com cinco palavras bastante esclarecedoras, entre parênteses: «cousas em si, como cousas». Foi no ano seguinte que surgiu Alberto Caeiro, como uma culminação deste ensaio, ou talvez como sua absoluta superação. No início de março de 1914, Pessoa tateando em busca de uma nova voz, uma nova maneira chegou à ideia de um poeta bucólico, um «guardador de rebanhos» que escreveria versos para um livro homónimo. Numa folha dupla onde esboçava poemas, ainda sem saber ao certo quem era esse guardador nem como seria o seu livro, encontramos versos que falam de «pobres choupos cansados» que «choram lágrimas de poeta». O poema 8

em causa foi riscado, chumbado, pois o cansaço e o choro frequentes no ser humano não são fenómenos próprios dos choupos. Noutro poema da mesma folha, o guardador embrionário menciona as «suaves mãos da Primavera», diz que seus «olhos de poeta são irmãos» da Natureza (primeira versão) ou então da sua própria natureza (segunda versão) e faz uma referência ao «paganismo» que o inspira. O poema é, assim, um misto de franciscanismo e de paganismo declarado. Também foi riscado. Da mesma folha dupla salvou-se uma terceira composição, «Quem me dera que eu fosse o pó da estrada», que seria classificada como um dos quatro poemas escritos pelo guardador «estando doente» (ver O Guardador de Rebanhos, XV, e os quatro poemas sucessivos). A doença revela-se nas primeiras três palavras, «Quem me dera», expressão que indica insatisfação e o desejo de um estado diferente daquele em que se está. Estas três palavras jamais seriam repetidas pelo guardador, exceto num dos outros poemas que escreveu quando «doente»: «Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois». A dita folha dupla contém um último poema que, esse sim, nos revela o guardador na sua essencial objetividade isto é, na atitude de ver e dizer o mundo enquanto simples objeto ou conjunto de objetos: cousas em si, como cousas. Trata-se do poema que começa «Não me importo com as rimas» (O Guardador XIV) e no qual o poeta anuncia que fará versos «como as flores têm cor», embora reconheça (sem lamentar o facto) que lhe falta a simplicidade de «ser todo só o meu exterior». Após várias tentativas no manuscrito aqui analisado e também noutros Fernando Pessoa encontrara o seu guardador, ou foi 9

este que o encontrou. Era um poeta que via o mundo e a si próprio exatamente como são, e que assim os aceitava. Nada mais simples, ou mais difícil. Para Caeiro era possível fazê-lo porque não tinha existência real, mas como terá Pessoa conseguido inventar uma personagem tão singela, sábia, poderosa e irrealmente verdadeira? Pessoa admitiu que Caeiro podia ter procedido do poeta saudosista Teixeira de Pascoaes, mas «por oposição, por reação». Isto é fácil de entender. No artigo «A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico», publicado em 1912, Pessoa considerava a poesia de Pascoaes, Guerra Junqueiro e seus congéneres original e louvável por nela se «encontrar em tudo um além» (a ênfase é do autor) e ele próprio escreveu alguns poemas dentro da mesma linha. Ora, é precisamente a espiritualização das coisas ou, mais exatamente, a conversão das coisas em veículos de transcendência que Caeiro rejeita, apontando um dedo trocista diretamente a Pascoaes e outros «poetas místicos» no poema XXVIII de O Guardador. No mesmo artigo de 1912, Pessoa enalteceu a «Ode on the Intimations of Immortality» de William Wordsworth, um grande cantor romântico da natureza, mas em 1914, o «único poeta da Natureza» insurge-se contra quaisquer especulações sobre a imortalidade. À semelhança dos outros heterónimos, Caeiro alude repetidamente à morte, mas como um simples facto natural. Não sabe, nem quer saber, se teve um antes ou terá um depois. Porém, Wordsworth terá sido um dos poetas que levaram Pessoa a desejar fazer versos situados num ambiente rural. Outros poetas exerceram uma influência mais orgânica. O modo de versificar de Caeiro (como também o de Campos) deve 10

imenso a Walt Whitman, tendo Pessoa chegado a «pilhar» pequenas frases do poeta americano para O Guardador de Rebanhos, mas também neste caso houve alguma reação contrária. Whitman era um democrata expansivo que preconizava a fraternidade universal, ideal que por ser um ideal não interessava a Caeiro, que também não tinha interesse em exaltar o seu eu, cantando-o (característica whitmaniana patente em Campos). Dedicou-se única e diretamente às coisas, tal como Cesário Verde, o único poeta nomeado na sua poesia (O Guardador III). Foi a Cesário, aliás, que Caeiro supostamente dedicou o seu livro, antes de morrer, e talvez não seja por acaso que todas as letras do seu apelido figurem no nome do poeta. A data de 4 de março de 1914 é a mais antiga que encontramos nos manuscritos de O Guardador de Rebanhos. Também há poemas datados de 7, 11 e 13 de março. Outros poemas sem data serão do mesmo período e um levantamento dos manuscritos revela que pelo menos trinta poemas do ciclo já existiam em meados de maio. E Alberto Caeiro também existia. A figura do guardador terá despontado primeiro e o nome de Caeiro só uns dias ou semanas depois. O nome e o guardador acabaram por ser indistinguíveis, mas na primavera de 1914 Alberto Caeiro assumia-se como um poeta modernista multifacetado, responsável por O Guardador de Rebanhos, por «Cinco Odes Futuristas» e ainda pelo conjunto de poemas interseccionistas intitulado «Chuva Oblíqua». A «Chuva Oblíqua» transitou para Pessoa ele mesmo e as odes futuristas ficaram para Álvaro de Campos, que surge no início de junho de 1914, justamente com a escrita da «Ode Triun- 11

fal». Poucos dias depois, nasce Ricardo Reis, juntamente com algumas das suas odes num outro estilo, evocativo de Horácio. Esses três meses de criação poética extraordinária desde 4 de março até meados de junho foram celebrados por Pessoa como sendo o seu «dia triunfal», por ele fixado em 8 de março de 1914. Nesse dia, segundo contou na célebre carta sobre os heterónimos, surgiram-lhe o título de O Guardador de Rebanhos, o impulso repentino de escrever mais de trinta poemas para a obra assim intitulada, a figura de Alberto Caeiro, exaltado como «mestre», e uma reação a esse mestre que o levou a escrever «Chuva Oblíqua», também repentinamente. Nos dias seguintes, descobriu Ricardo Reis e Álvaro de Campos, dois «discípulos» de Caeiro. Como geralmente acontece com os melhores mitos, aquele que Pessoa inventou era verdadeiro na sua essência. A aparição de Caeiro foi um cataclismo que provocou fortes alterações no seu universo. O pseudopastor («Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse») e os seus dois filhos espirituais, Reis e Campos, foram as estrelas que mais brilharam na sua vasta obra poética e consubstanciaram vários sistemas de pensar, sentir e representar o mundo. Ao longo dos anos, Pessoa foi elaborando as biografias e os retratos dos três heterónimos Caeiro nasce (1889) e morre (1915) em Lisboa, mas vive sobretudo no Ribatejo, tendo olhos azuis, cabelo louro, um «ar grego» e uma testa «poderosamente branca», mas todos brotaram já com as suas personalidades e poéticas bem formadas. Foi em função do mestre, Alberto Caeiro, que as personalidades e os papéis dos dois discípulos se definiram. Segundo um prefácio para Aspectos, uma coletânea de obras heteronímicas que 12

Pessoa tencionava organizar, Ricardo Reis teria «intensificado e tornado artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Caeiro», enquanto Álvaro de Campos, «baseando-se em outra parte da obra de Caeiro», desenvolveu «um sistema inteiramente diferente, e baseado inteiramente nas sensações». Havia ainda um «continuador filosófico»: António Mora. Alberto Caeiro era o mestre de todos eles, mas um mestre pela negativa, pois ninguém conseguia imitar o seu exemplo. Os seus seguidores, frustrados e como que saudosos de um estado de graça que nunca atingiram realmente, veneravam o mestre ao mesmo tempo que se desviavam inevitavelmente do seu caminho, que nem sequer era um caminho, mas apenas ver e ser. Essa frustração foi abertamente denunciada por Álvaro de Campos no poema que dirige ao «Mestre, meu mestre querido!». Queixa-se por ter aprendido a «pavorosa ciência de ver» e pergunta: «mas por que é que ensinaste a clareza da vista, / Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?». O Sensacionismo, no mestre, era reconhecimento e receção; por isso predominava nele a visão sobre sentidos mais sensuais como o tato, o paladar e o olfato. Em Campos, o Sensacionismo tornou- -se um desesperado esforço («sentir tudo de todas as maneiras») para chegar ao pleno, sereno gozo de Caeiro, cuja maneira de ser «sensacionista», quando caía a noite e já não podia ver, é descrita no penúltimo verso de O Guardador de Rebanhos: «Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito». O fracasso como que predestinado de Campos reproduz-se em Ricardo Reis, militante promotor dos deuses e da ideologia pagã na sua poesia e também na sua obra ensaística, onde tece 13

considerações sobre «a reconstrução do sentimento pagão» efetuada pelo seu mestre, Caeiro. No entanto, este último nunca fala de paganismo, nem se interessa por Deus ou pelos deuses. As coisas são perfeitas em si, sem que o acréscimo de uma dimensão divina lhes possa trazer qualquer vantagem. A Natureza é «divina», se quisermos, por não ser divina (O Guardador XXVII). Como explicou Campos, nas suas Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro: «O meu mestre Caeiro não era um pagão; era o paganismo». E o próprio Reis admitiu que, para o «objetivista absoluto» que era Caeiro, «os deuses já eram a mais». Mas o classicista, resignado e um bocado triste, nunca os pôde largar. Modelo impossível para os seus dois discípulos, Caeiro também foi uma impossibilidade para o seu criador. Numa carta escrita em 25 de fevereiro de 1933, Pessoa confessou que O Guardador de Rebanhos «procede de um grau e tipo de inspiração [ ] que excede o que eu racionalmente poderia gerar dentro de mim». Isto é fácil de entender. Embora nunca tenha conhecido ninguém como o guardador que habitava no cimo de um outeiro ribatejano, era como se o conhecesse. E pelo resto da sua vida permaneceu entre maravilhado e confuso, à procura de mil verdades, tentando ver, simplesmente ver. 14

I Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. 19

Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes, Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias 20

Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado. 21