HISTOPATOLOGIA E MORFOMETRIA DA BEXIGA DE GATOS COM DOENÇA IDIOPÁTICA DO TRATO URINÁRIO INFERIOR (DITUI)

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Transcrição:

Ciência Rural, Santa Maria, v.31, n.6, p.1045-1049, 2001 ISSN 0103-8478 1045 HISTOPATOLOGIA E MORFOMETRIA DA BEXIGA DE GATOS COM DOENÇA IDIOPÁTICA DO TRATO URINÁRIO INFERIOR (DITUI) HISTOPATHOLOGY AND MORPHOMETRY OF URINARY BLADDER OF CATS WITH IDIOPATIC LOWER URINARY TRACT DISEASE (ILUTD) Archivaldo Reche Jr 1 Mitika Kuribayashi Hagiwara 2 RESUMO Com o objetivo de caracterizar a inflamação da bexiga envolvida na doença idiopática do trato urinário inferior dos felinos e de se comprovar seu caráter crônico, procedeu-se à análise histopatológica e morfométrica da bexiga de felinos que haviam apresentado recidivas da doença urinária e que não apresentavam sinais clínicos por, pelo menos, seis meses antes dos exames macro e microscópicos da bexiga. Foram utilizados 15 felinos, machos e fêmeas, de raças e idades variadas, sendo oito felinos com doença idiopática do trato urinário inferior e assintomáticos e sete felinos hígidos. Os resultados evidenciaram espessamento das camadas mucosa e muscular da bexiga, infiltrado inflamatório mononuclear acentuado na mucosa e muscular, petéquias subepiteliais, hiperplasia e pregueamento epitelial, aumento no número de vasos sangüíneos na lâmina própria, e infiltrado inflamatório perineural, alterações estas encontradas apenas nos felinos com doença idiopática do trato urinário inferior. Esses achados sugerem cistite crônica. Palavras-chave: doença do trato urinário inferior, gato, histopatologia, morfometria. SUMMARY This study was carried out to evaluate cystitis of cats with idiopathic lower urinary tract disease but without signs of the disease at the time of the study. Histopathologic and morphometric analysis of the urinary bladder were done in 15 cats, eight with the disease but with no clinical signs and seven healthy cats. There was bladder mucosal and muscle layers thickening with intense mononuclear inflammatory infiltrate, subepithelial petechiae, hyperplasia and epithelial wrinkles among the cats with the lower urinary tract disease, these findings suggest chronic cystitis. Key words: lower urinary tract disease, cat, histopathology, morphometry. INTRODUÇÃO Há pouco mais de setenta anos, surgiu o primeiro relato de felinos com doença das vias urinárias, associada à intensa cristalúria (Kirk, 1925 apud BUFFINGTON et al., 1997). Desde então numerosos estudos têm tentado estabelecer o significado da presença desses cristais, principalmente os de estruvita (fosfato amônio magnesiano), na etiopatogenia da doença idiopática do trato urinário inferior dos felinos (DITUIF) (TARTTELIN, 1987; OSBORNE et al., 1989). Mudanças na composição das dietas comerciais para felinos nos últimos 10 anos diminuíram acentuadamente a precipitação de cristais e/ou cálculos de estruvita na bexiga desses animais, sem diminuir a incidência da doença (OSBORNE et al., 1990). Além disso, são também freqüentes as recidivas dessa enfermidade. Estudos clínicos sobre a síndrome urinária dos felinos evidenciaram a cronicidade do processo e as recidivas foram associadas a situações de estresse (BUFFINGTON & CHEW, 1996). Uma inflamação crônica da bexiga foi uma das hipóteses propostas por RECHE JR & HAGIWARA, (1998) ao examinar radiologicamente as vias urinárias de gatos que apresentavam hematúria, disúria, polaquiúria ou obstrução uretral; esses gatos tinham espessamento da parede vesical em mais da metade dos casos estudados. Estudos recentes demonstram uma possível semelhança entre DITUIF e a cistite intersticial (CI) que acomete pacientes humanos 1 Professor, Doutor, Universidade Metodista, Rua Agissê, 268 ap.91, 05439-010, São Paulo. E-mail: valdorec@uol.com.br. Autor para correspondência. 2 Professor Titular, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo. Recebido para publicação em 10.11.00. Aprovado em 18.04.01

1046 Reche Jr. & Hagiwara (CLASPER, 1990; BUFFINGTON et al., 1996). Assim, como na doença urinária felina, na grande maioria dos pacientes humanos, o processo inflamatório das vias urinárias é de etiologia desconhecida (MESSING, 1987). Com o objetivo de caracterizar o processo inflamatório envolvido na DITUIF e de se comprovar o caráter crônico da síndrome, procedeuse à análise histopatológica e morfométrica da bexiga de felinos que haviam apresentado recidivas do processo e que se encontravam assintomáticos no momento dos exames macro e microscópico da bexiga urinária. MATERIAL E MÉTODOS Foram utilizados 15 felinos, machos e fêmeas, de raças e idades variadas, separados em dois grupos: GRUPO I: quatro gatos machos e quatro fêmeas, com alterações clínicas, laboratoriais, cistoscópicas e radiográficas, compatíveis com a DITUIF. Todos os animais haviam apresentado recidivas clínicas da síndrome urinária, por mais de duas ocasiões, num período de três meses, porém não apresentavam sinais clínicos por um período superior a seis meses anterior à eutanásia. GRUPO II: três gatos machos e quatro fêmeas, hígidos, segundo parâmetros clínicos e laboratoriais. O protocolo experimental a que esses felinos foram submetidos foi avaliado e aprovado pelo comitê que regulamenta a utilização de animais de laboratório na Universidade de Ohio-EUA. Todos os gatos foram submetidos à eutanásia por injeção intravenosa de 50mg/kg de pentobarbital sódico. Comprovada a perda dos sinais vitais, retirou-se a bexiga, próximo à inserção da uretra. Após observação macroscópica do lúmen vesical, a bexiga foi fixada em formol a 10% por 24 horas. A seguir, a bexiga de cada gato foi dividida em três regiões: pólo apical, corpo e pólo caudal. Um fragmento de cada uma dessa três regiões foi embebido em solução de OCT e cortado em criostato numa espessura de 10µm. Para cada gato foi examinada uma série de três lâminas, uma para cada região da bexiga. Essas lâminas foram coradas pela Hematoxilina-eosina e examinadas por microscopia óptica. A análise histopatológica foi realizada com as lâminas codificadas, o que impossibilitou a identificação do animal pelo patologista, evitando-se assim a obtenção de resultados viciados. Para cada lâmina, de cada região da bexiga, foram realizadas três mensurações de espessura. Seguindo-se o plano horizontal do corte histológico, foram tomadas as medidas das laterais (direita e esquerda) e uma mensuração central. Para a análise estatística utilizou-se a média dos valores obtidos para cada lâmina. A análise de imagem foi realizada na Faculdade de Medicina, setor de Microscopia e Imagem da Universidade de Ohio, Estados Unidos. As imagens selecionadas foram obtidas em microscópio de contraste de fase Zeiss, acoplado à câmara fotográfica de 35mm. Todas as imagens foram então analisadas, por medição linear (em mm) da mucosa e camada muscular da bexiga, com o auxílio do programa Bioscan 5.0 do sistema Optimas. Os resultados obtidos foram imediatamente transferidos para uma planilha de Excel 5.0 e analisados estatisticamente pelo teste t Student (VIEIRA, 1991); diferenças entre os grupos experimentais e controle foram consideradas significantes quando p<0,05. RESULTADOS Ao exame macroscópico, todas as bexigas dos gatos com DITUI apresentavam acentuado espessamento da parede, petéquias foram observadas na mucosa vesical de seis (75%) gatos. Não se observaram alterações macroscópicas nas bexigas dos gatos normais. Os principais achados histopatológicos e suas respectivas freqüências na população de gatos com DITUI, estudada no presente trabalho, encontram-se na tabela 1. Sete (87,5%) gatos com DITUI apresentaram hiperplasia e pregueamento epitelial, não evidenciados na bexiga dos gatos normais (Figuras 1A e B). A lâmina própria da bexiga de todos os gatos com DITUI apresentou edema, intenso infiltrado inflamatório mononuclear e proliferação de tecido conjuntivo, quando comparada à lâmina própria da bexiga dos gatos normais. O número de vasos na lâmina própria mostrou-se aumentado na bexiga de todos os gatos com DITUI (Figura 1B). Tabela 1 - Principais alterações histopatológicas da bexiga de gatos com Doença Idiopática do Trato Urinário Inferior (DITUI) (n = 8). Alterações histopatológicas da bexiga Gatos com DITUI (%) Hiperplasia e pregueamento epitelial 7 (87,5) Edema de lâmina própria 8 (100) Infiltrado celular mononuclear 8 (100) Hemorragia subepitelial 6 (75) Infiltrado inflamatório perineural 6 (75) Aumento no número de vasos 8 (100) sanguíneos em lâmina própria 1046 Ciência Rural, v. 31, n. 6, 2001.

Histopatologia e morfometria da bexiga de gatos com doença idiopática do trato urinário inferior (DITUI). 1047 Figura 1 - A: Fotomicrografia da bexiga (corpo) de um gato normal. Coloração: H-E. Aumento: 100x. B: Fotomicrografia da bexiga (corpo) de um gato com DITUI evidenciando hiperplasia e pregueamento do epitélio vesical, hemorragia subepitelial, denso infiltrado inflamatório mononuclear, aumento do número de vasos em lâmina própria e proliferação de tecido conjuntivo. Coloração: H-E. Aumento: 100x. Embora todos os gatos com a doença urinária tenham apresentado um aumento do número de células inflamatórias mononucleares, tanto na lâmina própria como na camada muscular da bexiga, observou-se uma variação no grau da inflamação, ou seja, algumas amostras apresentavam um grau de celularidade mononuclear mais acentuado do que outras. Em seis (75%) felinos com DITUI, observouse um acúmulo de células inflamatórias perineurais mais acentuado. Áreas de hemorragia subepitelial foram encontradas nos cortes histológicos da bexiga de seis (75%) gatos com DITUI (Figura 1B). Essas alterações não foram observadas em nenhum dos gatos normais. A análise morfométrica dos cortes de bexiga dos gatos com DITUI confirmou um espessamento significativo (p<0,05), da mucosa e da camada muscular da bexiga dos gatos com DITUI, quando comparada à bexiga dos gatos normais. Não houve diferença estatisticamente significante (p>0,05) entre as espessuras das diferentes regiões da bexiga, tanto nos gatos com DITUI como nos gatos normais. Na tabela 2, são apresentadas as espessuras da mucosa (em mm) das diferentes regiões da bexiga dos gatos com DITUI e dos gatos normais. Na tabela 3, estão representadas as espessuras da camada muscular (em mm) das diferentes regiões da bexiga dos gatos com DITUI e dos gatos normais. DISCUSSÃO Os resultados das análises macroscópica, microscópica e morfométrica da bexiga dos gatos com a síndrome urinária, confirmam a ocorrência de espessamento da parede vesical, corroborando com os achados de RECHE JR & HAGIWARA (1998). No entanto, nenhum dos animais do presente estudo Ciência Rural, v. 31, n. 6, 2001. 1047

1048 Reche Jr. & Hagiwara Tabela 2 - Valores médios e desvio padrão da espessura da mucosa da bexiga (Pólo Apical, Corpo e Pólo Caudal) em gatos portadores da DITUI (n = 8) e em gatos normais (n = 7). Gatos com DITUI n = 8 Gatos normais n = 7 *Teste t de Student, p < 0,05 Região da bexiga Pólo apical Corpo Pólo caudal 1,243 ± 0,362* 1,205 ± 0,281* 1,432 ± 0,362* 0,745 ± 0,213* 0,725 ± 0,220* 0,846 ± 0,255* apresentava quaisquer dos sinais clínicos da doença urinária no momento da eutanásia, como também não haviam apresentado qualquer recidiva num período inferior a três meses. Pode-se considerar, portanto, que o espessamento da parede vesical que ocorre nos felinos com DITUI, aparentemente não resulta de hipertrofia do músculo detrusor da bexiga, conseqüente ao esforço de micção, devido à obstrução uretral, uma das hipóteses que havia sido formulada por RECHE JR & HAGIWARA (1998). As alterações histológicas encontradas são bastante semelhantes às descritas nos pacientes humanos com CI (MESSING & STAMEY, 1978; LYNES et al., 1987; JOHANSSON & FALL, 1990). A hiperplasia e pregueamento do epitélio vesical, observados na bexiga dos gatos com DITUI, são também descritos nos estudos histopatológicos da CI, e evidenciam o caráter crônico do processo inflamatório vesical (JOHANSSON & FALL, 1990; LYNES et al., 1990). Petéquias subepiteliais, observadas na mucosa vesical de 75% dos gatos com DTUI deste estudo são achados inespecíficos que ocorrem por várias causas, inclusive procedimentos cistoscópicos (FALL et al., 1987; JOHANSSON & FALL, 1990). No entanto, o exame cistoscópico de todos os gatos deste estudo foi realizado cerca de dois meses antes Tabela 3 - Valores médios e desvio padrão da espessura da camada muscular vesical (Pólo Apical, Corpo e Pólo Caudal) em gatos portadores da DITUI (n = 8) e em gatos normais (n = 7). Gatos com DITUI n = 8 Gatos normais n = 7 *Teste t de Student, p < 0,05 Região da bexiga Pólo apical Corpo Pólo caudal 1,837 ± 0,232* 2,182 ± 0,616* 2,132 ± 0,317* 1,357 ± 0,489* 1,347 ± 0,475* 1,318 ± 0,582* da eutanásia e, portanto, é improvável que as petéquias estejam associadas a esse procedimento. Além disso, tais lesões só foram encontradas nos gatos com a síndrome urinária e não nos animais normais, que haviam sido igualmente submetidos à cistoscopia. Vários mecanismos são propostos para explicar o aparecimento das petéquias em região subepitelial da bexiga dos pacientes humanos com CI. LYNES et al. (1987) sugerem que a base fisiológica para a ocorrência de tais lesões é a ativação de mastócitos e conseqüente liberação de substâncias vasoativas como histamina, prostaglandinas e leucotrienos. O infiltrado inflamatório mononuclear observado, principalmente em lâmina própria, à semelhança dos achados de OSBALDISTON & TAUSSIG (1970) e BUFFINGTON & CHEW (1993), permite tecer algumas considerações quanto à etiopatogenia da síndrome urinária felina. Nos pacientes humanos com CI, os achados são coincidentes, havendo um predomínio de linfócitos, plasmócitos, macrófagos e mastócitos (FALL et al., 1987; JOHANSSON & FALL, 1990; LYNES et al., 1990; MACDERMOTT et al., 1991; CHRISTMAS, 1994). Dentre essas células, os mastócitos parecem exercer um papel preponderante no desencadeamento e na perpetuação do processo inflamatório vesical. Na CI, os mastócitos respondem por cerca de 20 65% do infiltrado celular, dependendo da existência ou não de úlceras (ENERBACK et al., 1989). A presença de maior número de mastócitos nos cortes histológicos de bexiga dos gatos com DITUI, quando comparada aos gatos saudáveis, foi comprovada por BUFFINGTON & CHEW (1993). A participação dos mastócitos na etiopatogenia da CI e, mais recentemente, da DITUI, vem recebendo atenção nos últimos anos, pois se sabe que as substâncias liberadas por essas células podem participar no desenvolvimento de muitas das alterações histológicas e dos sinais clínicos relacionados a ambas as doenças (FALL et al., 1987; LYNES et al., 1987; BUFFINGTON & CHEW, 1993; SANT, 1997. Dentre essas substâncias, destacam-se a heparina, histamina, proteases, fosfolipases, citoquinas, leucotrienos, prostaglandinas, fator de necrose tumoral (FNT) e polipeptídeos vasoativos (METZGER et al., 1986; GORDON et al., 1990), as quais contribuem para o processo inflamatório, algumas através do mecanismo de vasodilatação e aumento de permeabilidade vascular, outras através da medição da dor ou, ainda, da promoção da ativação de eosinófilos, macrófagos e dos próprios mastócitos. 1048 Ciência Rural, v. 31, n. 6, 2001.

Histopatologia e morfometria da bexiga de gatos com doença idiopática do trato urinário inferior (DITUI). 1049 CONCLUSÕES O processo inflamatório vesical, observado nos felinos com DITUI e sem manifestações clínicas da doença, é de caráter crônico e inespecífico. Portanto, estudos mais detalhados, como a análise ultra-estrutural da bexiga de gatos com DITUI, são necessários para melhor identificar e avaliar a participação de células como os mastócitos, na patogenia da doença urinária felina. AGRADECIMENTOS À CAPES pela concessão de bolsa modalidade doutorado sanduíche, através da qual o bolsista pôde realizar o presente estudo como complementação de sua tese de doutoramento, nas instalações da The Ohio State University College of Veterinary Medicine. Ao Prof. Dr. C.A. Tony Buffington pela coordenação do presente trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUFFINGTON, C.A.T., CHEW, D.J. Presence of mast cells in submucosa and detrusor of cats with idiopathic lower urinary tract disease. Journal of Veterinary Internal Medicine, v.7, n.2, p.126, 1993. BUFFINGTON, C.A.T., CHEW, D.J. Intermitent alkaline urine in a cat fed na acidifying diet. Journal of the American Veterinary Medical Association, v.209, n.1, p.103-104, 1996. BUFFINGTON, C.A.T., CHEW, D.J., DIBARTOLA, S.P. Interstitial cystitis in cats. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, v.26, n.2, p.317-326, 1996. BUFFINGTON, C.A.T., CHEW, D.J., KENDALL, M.S., et al. Clinical evaluation of cats with non-obstructive lower urinary tract disease: 109 cases. 1993-1995. Journal of the American Veterinary Medical Association, v.210, n.1, p.46-50, 1997. CHRISTMAS, T.J. Lymphocyte sub-populations in the bladder wall in normal bladder, bacterial cystitis and intertitial cystitis. British Journal of Urology, v.73, n.5, p.508-515, 1994. CLASPER, M. A case of interstitial cystitis and Hunner s ulcer in a domestic shorthaired cat. New Zealand Veterinary Journal, v.38, n.4, p.158-160, 1990. ENERBACK, L., FALL, M., ALDENBORG, F. Histamine and mucosal mast cells in intertitial cystitis. Agents and Actions, v.27, n.1-2, p.113-116, 1989. FALL, M., JOHANSSON, S.L., ALDENBORG, F. Chronic interstitial cystitis: a heterogeneous syndrome. The Journal of Urology, v.137, n.1, p.35-38, 1987. GORDON, J.R., BURD, P.R., GALLI, S.J. Mast cells as a source of multifunctional cytokines. Immunology Today, v.11, n.12, p.458-464, 1990. JOHANSSON, S.L., FALL, M. Clinical features and spectrum of light microscopic changes in interstital cystitis. The Journal of Urology, v.143, n.6, p.1118-1124, 1990. LYNES, W.L., FLYNN, S.D., SHORTLIFFE, L.D., et al. Mast cell involvement in interstital cystitis. The Journal of Urology, v.138, n.4, p.746-752, 1987. LYNES, W.L., FLYNN, S.D., SHORTLIFFE, L.D., et al. The histology of interstitial cystitis. The American Journal of Surgical Pathology, v.14, n.10, p.969-976, 1990. MACDERMOTT, J.P., CHARPIED, G.C., TESLUK, H., et al. Can histological assessment predict the outcome in interstitial cystitis? British Journal of Urology, v.67, n.1, p.44-47, 1991. MESSING, E.M., STAMEY, T.A. Interstitial cystitis: early diagnosis, pathology and treatment. Urology, v.12, n.4, p.381-392, 1978. MESSING, E.M. The diagnosis of intertitial cystitis. Urology, v.29, n.4s, p.4-7, 1987. METZGER, H., ALCARAZ, G., KINET, J.P., et al. The receptor for immunoglobulin E as a membrane protein. Biochemical Society Symposia, v.51, p.59-67, 1986. OSBALDISTON, G.W., TAUSSIG, R.A. Clinical report on 46 cases of feline urological syndrome. Veterinary Medicine & Small Animal Clinician, v.65, n.5, p.461-468, 1970. OSBORNE, C.A., POLZIN, D.J., KRUGER, J.M., et al. Relationship of nutritional factors to the cause, dissolution, and prevention of feline uroliths and urethral plugs. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, v.19, n.3, p.561-581, 1989. OSBORNE, C.A., LULICH, J.P., KRUGER, J.M., et al. Medical dissolution of feline struvite urocystoliths. Journal of the American Veterinary Medical Association, v.196, n.7, p.1053-1060, 1990. RECHE JR, A., HAGIWARA, M.K. Estudo clínico da doença do trato urinário inferior dos felinos em gatos domésticos de São Paulo. Brazilian Journal of Veterinary Research and Animal Science,v.35, n.2, p.69-74, 1998. SANT, G.R. Interstitial cystitis. Current Opinion in Obstetrics and Gynecology, v.9, n.5, p.332-336, 1997. TARTTELIN, M.F. Feline struvite urolithiasis: factors affecting urine ph may be more important than magnesium levels in food. Veterinary Record, v.121, n.11, p.245-248, 1987. VIEIRA, S. Introdução à bioestatística. 2.ed. Rio de Janeiro, Campus, 1991. 98p. Ciência Rural, v. 31, n. 6, 2001. 1049