Red man syndrome versus anafilaxia à vancomicina?

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Transcrição:

CASO CLÍNICO / CLINICAL CASE Red man syndrome versus anafilaxia à vancomicina? Red man syndrome versus vancomycine anaphylaxis? Rev Port Imunoalergologia 2006; 14 (4): 343-347 Joana Caiado 1, Elisa Pedro 2, Anabela Lopes Pregal 3, Amélia Spínola 4, Alcinda Melo 5, Maria Conceição Pereira Santos 6, Manuel Pereira Barbosa 7 1 Interna do Internato Complementar de Imunoalergologia do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria 2 Chefe de Serviço de Imunoalergologia do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria 3 Assistente Hospitalar de Imunoalergologia do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria 4 Assistente Hospitalar Graduada de Imunoalergologia do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria 5 Técnica Superior Principal da Unidade de Imunologia Clínica da Faculdade de Medicina de Lisboa / Instituto de Medicina Molecular 6 Investigadora Principal da Unidade de Imunologia Clínica da Faculdade de Medicina de Lisboa / Instituto de Medicina Molecular 7 Director do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria RESUMO As reacções de hipersensibilidade à vancomicina envolvem mecanismos alérgicos e não alérgicos. Clinicamente é difícil distinguir as reacções alérgicas IgE-mediadas das reacções não alérgicas, das quais se destaca pela sua frequência o red man syndrome (RMS). Esta síndrome caracteriza-se pelo aparecimento de rash, prurido generalizado, dor torácica, espasmo muscular ou hipotensão minutos após o inicio de perfusão com vancomicina. Os autores descrevem o caso clínico de um doente de 15 anos, referenciado à consulta de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria (HSM) devido a reacção sistémica após perfusão endovenosa de vancomicina, efectuada como profilaxia de endocardite bacteriana antes da realização de colonoscopia. Os testes cutâneos em picada e intradérmicos com vancomicina foram negativos. O teste de activação de basófilos (TAB) realizado com vancomicina na concentração de 12,5 mg/ml (17% de activação; índice de estimulação de 4) indicou activação celular. O facto de esta ter sido a primeira exposição do doente ao fármaco e os testes cutâneos serem negativos favorece o diagnóstico de RMS. Contudo, o resultado do TAB indica activação de células mediadoras, que também pode ser observada numa reacção anafiláctica, independentemente do mecanismo subjacente. Palavras-cha vras-chave: anafilaxia, red man syndrome, teste de activação de basófilos, vancomicina 343

Joana Caiado, Elisa Pedro, Anabela Lopes Pregal, Amélia Spínola, Alcinda Melo, Maria Conceição Pereira Santos, Manuel Pereira Barbosa SUMMARY Hypersensitivity reactions to vancomycine include allergic and non-allergic mechanisms. The IgE mediated allergic reactions (anaphylaxis) and non IgE mediated can be clinically mistaken. Among these, we focus on red man syndrome (RMS) because of its increased frequency. This syndrome is characterized by itchy rash, thoracic pain, muscle spasm or hypotension, all occuring a few minutes after vancomycine infusion. The authors report a fifteen-year old boy, who was referred to our outpatient allergology unit to investigate a systemic reaction after vancomycine infusion, which was made before colonoscopy (bacterial endocarditis prophylaxis). Skin prick and intradermal tests for vancomycine were negative. Basophil activation test at the concentration 12.5 mg/ml (17% of activation; stimulation index 4), suggests cell activation. The fact that this was the first exposure to vancomycine and the negativity of skin tests indicates RMS as the most probable diagnosis. However, basophil activation test data indicates activation of mediator cells, which can be observed in anaphylactic reactions, independently of the causal mechanism of such reactions. Key-wor ey-words: anaphylaxis, basophil activation test, red man syndrome, vancomycine INTRODUÇÃO Avancomicina é um glicopéptido com potente actividade anti-estafilocócica, sendo o antibiótico de eleição nas infecções por Staphyloccocus meticilino-resistentes; faz igualmente parte dos protocolos de terapêutica alternativa em doentes com alergia à penicilina, sendo por isso utilizada na profilaxia de endocardite bacteriana. Este fármaco é frequentemente responsável pelo aparecimento de reacções de hipersensibilidade imediata com activação de mastócitos e basófilos, que incluem reacções não IgE mediadas, dose dependentes, associadas a infusões rápidas, descritas como red man syndrome (RMS) e anafilaxia alérgica IgE mediada. Apesar destes dois tipos de reacção ocorrerem por mecanismos distintos, a apresentação clínica é semelhante, sendo caracterizada por flushing, prurido generalizado, rash cutâneo eritematoso que envolve habitualmente a face, pescoço e tronco, dor torácica, espasmos musculares e menos frequentemente hipotensão e/ou angioedema. O RMS resulta da desgranulação dos mastócitos e basófilos com libertação de histamina induzida directamente pelo fármaco 1. É a reacção mais frequente, com uma incidência que varia entre 3,7% a 47,2% nos doentes infectados e até 90% em voluntários saudáveis 2. A menor incidência de RMS em doentes infectados pode dever-se à libertação de histamina provocada pela resposta imunitária à infecção; níveis mais altos de histamina induzem um retro-controlo negativo sobre o efeito da vancomicina, com menor desgranulação de mastócitos e basófilos 1. Esta reacção é dependente da dose e pode surgir na primeira administração, habitualmente cerca de 5 a 10 minutos após o início da perfusão. Está associada a infusões rápidas do fármaco e pode muitas vezes ser revertida diminuindo a velocidade de perfusão ou através de pré-medicação com anti-histamínicos 3. Nos casos em que, apesar das medidas referidas anteriormente, as manifestações clínicas se mantêm e não haja fármaco alternativo, pode-se ponderar dessensibilização à vancomicina 2,4,5. Os anti-histamínicos e corticosteróides estão indicados na prevenção de reacções tardias em doentes dessensibilizados, mas não são eficazes como terapêutica preventiva da reacção anafiláctica aguda 2. A anafilaxia alérgica IgE mediada à vancomicina é uma reacção potencialmente fatal, rara, embora a incidência real nunca tenha sido estabelecida 5. A ocorrência deste tipo de anafilaxia pressupõe uma primeira exposição (fase de sensibilização). 344

RED MAN SYNDROME VERSUS ANAFILAXIA À VANCOMICINA? / CASO CLÍNICO Tendo em conta a semelhança do quadro clínico destas duas reacções, é muitas vezes necessária a realização de testes cutâneos para a sua diferenciação. Dado o risco de eventuais reacções aos testes cutâneos, tem-se procurado desenvolver testes in vitro como auxiliares de diagnóstico. CASO CLÍNICO Os autores apresentam o caso clínico de um doente com 15 anos, de raça caucasiana, natural e residente em Lisboa, estudante, que recorreu à consulta de Imunoalergologia devido a episódio de rash cutâneo pruriginoso generalizado, sensação de opressão torácica, dispneia e hipotensão após perfusão endovenosa (ev) de vancomicina. Trata-se de um jovem com antecedentes de estenose aórtica congénita, submetido a dilatação valvular aos 2 anos, tendo efectuado profilaxia de endocardite bacteriana com amoxicilina até aos 3 anos de idade. Devido a episódio de urticária aguda relacionado com esse fármaco, passou desde então a utilizar eritromicina como alternativa. Desde há dois anos passou a utilizar azitromicina por eritema fixo malar associado à eritromicina. Refere, desde os 10 anos queixas de dor abdominal recorrente, tipo cólica, generalizada a todos os quadrantes abdominais que, nos últimos meses, foi acompanhada de hematoquézias e perda de peso, o que motivou a realização de colonoscopia. De acordo com o protocolo da profilaxia de endocardite bacteriana em doentes alérgicos aos beta-lactâmicos, efectuou terapêutica com vancomicina ev, que desencadeou eritema e urticária generalizados com prurido intenso, aperto torácico e hipotensão cerca de 5 minutos após o início da perfusão ev (dose total: 500mg/100ml, em perfusão de 200 ml/h). Este quadro resolveu em minutos após a suspensão do fármaco e administração de anti-histamínico e corticosteróide por via sistémica. Após estabilização clínica, foi-lhe administrada gentamicina 80 mg intramuscular e realizada a colonoscopia sem intercorrências. As alterações macroscópicas e anatomo-patológicas encontradas foram sugestivas de doença de Crohn. Para estudo da reacção de hipersensibilidade à vancomicina efectuaram-se testes cutâneos em picada, com diluições de 1:100 (0,5mg/ml), 1:10 (5mg/ml) e não diluída (50mg/ml), que foram todos negativos, e testes cutâneos intradérmicos, que também foram negativos nas concentrações de 0,5 µg/ml (1:100 000) e 5 µg/ml (1:10 000). Estas doses estão de acordo com as concentrações não irritativas preconizada por Empedrad e col 6. Paralelamente, para investigação da suspeita diagnóstica de alergia aos beta-lactâmicos, efectuaram-se testes cutâneos em picada e intradérmicos, de acordo com as normas da EAACI, com peniciloil polisina (PPL Allergopen TM ), peniciloato e peniloato (MDM Allergopen TM ), penicilina G, amoxicilina e cefuroxime e doseamentos de IgE específica a penicilina G e V, amoxicilina e ampicilina, que foram todos negativos. Efectuámos teste de activação de basófilos (TAB) com vancomicina nas concentrações de 12,5 mg/ml, 3,12 mg/ml e 1,25 mg/ml, tendo-se registado valores de activação de 17%, 13% e 6%, bem como índices de estimulação de 4; 3,5 e 2,2 respectivamente (Fig. 1). O TAB com vancomicina na concentração de 0,625 mg/ml foi negativo. Estes resultados sugerem activação celular, na medida em que a positividade do TAB tem sido definida para vários grupos de fármacos, embora não para a vancomicina, como valores de activação 5% e índices de estimulação 2. Adicionalmente, foram efectuados TAB com vancomicina em população controlo: 1 doente sob tratamento com vancomicina sem qualquer reacção e 1 voluntário saudável; todos foram negativos em todas as concentrações que também utilizámos no nosso doente. Não foi efectuada prova de provocação com vancomicina devido ao risco de reacção sistémica grave, sendo proposta a realização da mesma com amoxicilina, que a mãe do doente recusou, pelo que tem mantido profilaxia com azitromicina. 345

Joana Caiado, Elisa Pedro, Anabela Lopes Pregal, Amélia Spínola, Alcinda Melo, Maria Conceição Pereira Santos, Manuel Pereira Barbosa Figura 1. Teste de activação de basófilos com vancomicina nas concentrações de 12,5 mg/ml, 3,12 mg/ml e 1,25 mg/ml. Overlay com controlo negativo. DISCUSSÃO A reacção de hipersensibilidade mais frequentemente relacionada com a vancomicina é o RMS, que está associado à perfusão rápida do fármaco. A anafilaxia alérgica IgE mediada tem sido mais raramente descrita. Contudo, estas reacções são clinicamente muito semelhantes, sendo muitas vezes necessário recorrer a testes cutâneos para a sua diferenciação. No caso descrito, a apresentação clínica não permite distinguir entre os diferentes tipos de hipersensibilidade; contudo, é favorável ao RMS o facto de ter sido a primeira exposição do doente ao fármaco, assim como a velocidade de perfusão utilizada (1000 mg/hora) que, apesar de ser a velocidade de perfusão recomendada, é a que está descrita como frequentemente associada ao RMS 7. Em casos de RMS em que é essencial a administração de vancomicina, esta reacção adversa pode ser evitada diminuindo a velocidade de perfusão (<10mg/min) e/ou administrando previamente um anti-histamínico 3. Os testes cutâneos com vancomicina nas diluições recomendadas 6 foram negativos, sugerindo portanto tratarse de uma reacção não IgE-mediada. Embora não efectuado no nosso doente, níveis de triptase sérica elevados durante o episódio poderiam indicar reacção anafiláctica, enquanto níveis normais seriam mais a favor de RMS, uma vez que alguns autores defendem que níveis elevados de triptase sérica dependem duma activação imunológica de basófilos e não química, como acontece no caso do RMS 8. O TAB para o fármaco suspeito foi sugestivo de activação celular, embora não indicando necessariamente uma reacção IgE mediada. O TAB é um teste in vitro utilizado na investigação de hipersensibilidade medicamentosa 9,10, podendo ter utilidade na clínica, evitando provas de provocação em doentes com risco de reacção sistémica grave durante a realização das mesmas. A activação de basófilos é quantificada por citometria de fluxo após dupla marcação das células com Ac anti-ige/cd63 (marcador de activação). Na última década, este teste tem sido utilizado para aeroalergénios 11, alimentos 12, veneno de himenópteros 13 e alguns medicamentos, em particular beta-lactâmicos 14, sendo claramente necessária a estandardização e validação para outros fármacos, como por exemplo outros antibióticos e anti-inflamatórios. A estandardização de testes in vitro, nomeadamente do TAB, para vários fármacos, poderá vir a dar um contributo relevante no diagnóstico destas patologias. 346

RED MAN SYNDROME VERSUS ANAFILAXIA À VANCOMICINA? / CASO CLÍNICO O resultado do TAB neste doente levanta várias questões: Terá sido uma reacção alérgica IgE-mediada, apesar de ter ocorrido na primeira exposição ao fármaco, como está descrito para alguns beta-lactâmicos? Terá ocorrido uma sensibilização com a primeira perfusão de vancomicina, estando agora o doente em risco de desenvolver anafilaxia num segundo contacto, como há referência na literatura 15? Será esta activação de basófilos não mediada por IgE? Dada a falta de estandardização do TAB para este fármaco, será um falso positivo (apesar de em dois controlos saudáveis o resultado ter sido negativo)? Neste contexto, e tendo em conta que a investigação efectuada para hipersensibilidade aos beta-lactâmicos foi negativa, propôs-se realizar uma prova de provocação com amoxicilina que, contudo, foi recusada pela mãe do doente. A constatação de eventual tolerância a este fármaco dispensaria a utilização da vancomicina e/ ou de outros antibióticos de largo espectro, diminuindo assim a probabilidade do aparecimento de resistências microbianas. Embora sem indicação no nosso doente, a dessensibilização à vancomicina é uma outra possibilidade, sendo muitas vezes o único meio eficaz em casos de anafilaxia IgE-mediada. Procedimentos de dessensibilização têm sido utilizados com sucesso, em casos de RMS em que a diminuição de velocidade de infusão, por si só, não foi suficiente para evitar o aparecimento do RMS 4,7. O caso clínico apresentado reflecte algumas das dificuldades muitas vezes encontradas no diagnóstico de alergia medicamentosa. Também ilustra a necessidade de contrariar, baseado em provas objectivas, o frequente rótulo diagnóstico de alergia à penicilina e derivados. Sublinha- -se que, em casos como este, a negatividade dos testes cutâneos aos beta-lactâmicos deve constituir indicação para realização de provas de provocação que, muitas vezes, podem até ser destinadas apenas a excluir uma presunção diagnóstica, garantindo assim a segurança e a confiança na administração do beta-lactâmico. REFERÊNCIAS 1. Sivagnanam S, Deleu D. Red man Syndrome. Crit Care 2003;7:119-20. 2. Wazny LD, Daghigh B. Desensitization protocols for vancomycin hypersensitivity. Ann Pharmacother 2001;35(11):1458-64. 3. Renz CL, Thurn JD, Finn HA, Lynch JP, Moss J. Antihistamine prophylaxis permits rapid vancomycin infusion. Crit Care Med 1999;27(9):1732-7. 4. Anne S, Middleton E Jr, Reissman RE. Vancomycin anaphylaxis and successful desensitization. Ann Allergy 1994;73(5):375-7. 5. Chopra N, Oppenheimer J, Derimanov GS, Fine PL. Vancomycin anaphylaxis and successful desensitization in a patient with end stage renal disease on hemodialysis by maintaining steady antibiotic levels. Ann Allergy Asthma Immunol 2000;84(6):633-5. 6. Empedrad R, Darter AL, Earl HS, Gruchalla RS. Nonirritating intradermal skin test concentrations for commonly prescribed antibiotics. J Allergy Clin Immunol 2003; 112:629-30. 7. Vervloet D, Pradal M, Castelain M. (eds) Drug Allergy. 3 th ed. Sweden: Pharmacia & Upjohn; 1999:100-2. 8. Renz CL, Laroche D, Thurn JD et al. Tryptase levels are not increased during vancomycin-induced anaphylactoid reactions. Anesthesiology 1998;89(3):620-5. 9. Sanz ML, García MC, Caballero MR, Diéguez I, Gamboa PM. Basophil activation test in the diagnosis of allergy to medicines. An Sis Sanit Navar 2003; 26 (Supl. 2): 39-47. 10. Boumiza R, Debard AL, Monneret G. The basophil activation test by flow cytometry: recent developments in clinical studies, standardization and emerging perspectives. Clin Mol Allergy 2005, 3:9 (http://www.clinicalmolecularallergy.com/content/3/1/9) 11. Paris-Kohler A, Demoly P, Persi L, Lebel B, Bousquet J, Arnoux B. In vitro diagnosis of cypress pollen allergy by using cytofluorimetric analysis of basophils (Basotest). J Allergy Clin Immunol 2000; 105:339-45. 12. Moneret-Vauttrin DA, Sainte Laudy J, Kanny J, Fremont S. Human basophil activation measured by CD 63 expression and LTC4 release in IgE-mediated food allergy. Ann Allergy Asthma Immmunol 1999; 82: 33-40. 13. Stevens S, Drouet M, Lauret MG, Loiry M, Sabbah A: Basophil activation test using flow cytometry in Hymenoptera venom allergy. Allerg Immunol (Paris) 1999; 31: 11-4. 14. Torres MJ, Padial A, Mayorga C. The diagnostic interpretation of basophil activation test in immediate allergic reactions to betalactams. Clin Exp Allergy 2004; 34:1768-75. 15. Hassaballa H, Mallick N, Orlowski J. Vancomycin anaphylaxis in a patient with vancomycin-induced red man syndrome. Am J Ther. 2000;7(5):319-20. 347