A ATRIBUIÇÃO DE VALOR NAS PRÁTICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO.

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IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 28 a 30 de maio de 2008 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. A ATRIBUIÇÃO DE VALOR NAS PRÁTICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO. Tatiana da Costa Sena 1 Resumo: Este ensaio tem por objetivo refletir sobre as práticas de atribuição de valor empregadas pelo IPHAN quando da elevação de um bem cultural como patrimônio histórico e artístico da nação. Primeiramente pretende-se apontar alguns antecedentes da criação do órgão, bem como projetos que influenciaram a elaboração do Decreto-lei 25/37, e que expressam noções de valores que iremos abordar, com destaque para o valor excepcional, valor nacional e valor de exemplaridade. Palavras-chave: Preservação, patrimônio, atribuição de valor, legislação. Este ensaio tem por objetivo refletir sobre as práticas de atribuição de valor empregadas pelo IPHAN quando da elevação de um bem cultural como patrimônio histórico e artístico da nação. Primeiramente pretende-se apontar alguns antecedentes da criação do órgão, bem como projetos que influenciaram a elaboração do Decreto-lei 25/37, e que expressam noções de valores que iremos abordar, com destaque para o valor excepcional, valor nacional e valor de exemplaridade. Para tombar ou registrar um bem deve-se reunir critérios que o qualifiquem como digno de receber o título de patrimônio cultural da nação. Na luta por esses bens estiveram reunidos, nos primórdios de sua criação em 1937, intelectuais ligados ao modernismo e a política nacional-burocrática do governo Vargas. Contudo, mesmo antes da criação do 1 Historiadora, bolsista no Programa de especialização em Patrimônio PEP/IPHAN/FUJB. Email: tatiasenaop@yahoo.com.br

órgão oficial de proteção, foram elaborados projetos pensando na preservação e proteção dos bens culturais. Dois projetos se destacam e podemos indicá-los como a base para se construir o Decreto-lei 25/37, como também inseri-los no processo de elaboração de critérios para atribuição de valor aos bens. Observa-se que o Decreto Lei não exige estudos técnicos de valoração, ou de pesquisa sobre o bem a ser tombado, mas sim a Portaria 11/86 2 que regulamenta o processo de tombamento. Em 1930, o deputado José Vanderlei de Araújo Pinho elabora um projeto referente à proteção dos bens culturais. Na sua definição de Patrimônio Histórico e artístico Nacional, perpassa a noção de atribuição de valor necessária ao denominar um bem como patrimônio nacional: Art. 1º Considera-se Patrimônio-histórico e artístico nacional todas as coisas imóveis ou móveis, a que deva estender a sua proteção o Estado, em razão de seu valor artístico, de sua significação histórica ou de sua peculiar e notável beleza, quer pertençam à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos municípios, a coletividades ou particulares. 3 Percebe-se que a definição de patrimônio se assemelha ao Decreto-Lei 25/37 no que diz respeito à seleção de um bem pelo seu valor de arte e de história. Mário de Andrade também elabora um Ante-projeto, que não chega a ser adotado, mas é inspirador na montagem do Decreto-Lei 25/37. No seu capítulo II, expõe seu entendimento por Patrimônio Artístico brasileiro e novamente percebemos a noção de patrimônio atrelada a noção de arte. A diferença é que Mário privilegia todos os tipos de arte, não só as de valor excepcional e de notável beleza, mas tanto a popular, quanto a erudita: Entende-se por patrimônio Artístico nacional todas as obras de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares estrangeiros, residentes no Brasil. 4 A noção de arte para Mário de Andrade tem sentido amplo: Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se 2 Art. 4-1º (Bens imóveis) e 2º (Bens móveis). "Leis de Proteção - Patrimônio Cultural Móvel", elaborado pelo IPHAN-Departamento de Proteção. 3 Anexo IV: Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória. IPHAN. Arquivo Digital, p. 46; 4 Anexo VI,idem, p. 55.

utiliza da ciência, das coisas e dos fatos. 5 Comparando os três projetos, parece-nos que o projeto de Vanderlei Pinho expressa quase o mesmo que o Decreto-Lei no tocante a definição de patrimônio histórico e artístico nacional Ainda em 1934 através do Decreto Nº 24.735 foi criado Serviço de Proteção aos Monumentos Históricos e às obras de arte tradicionais do país sob os auspícios do Museu Histórico Nacional. Também na Constituição de 1934, no capítulo dedicado á educação e à cultura, o artigo 18 mencionava a proteção de nosso patrimônio: Cabe a União, aos Estados e aos Municípios (...) proteger os objetos de interesse histórico e patrimônio artístico do país (...). 6 nação: No Decreto-Lei 25 de 1937 está expresso o que se considera patrimônio cultural da Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico 7. A predominância é no sentido de valor de arte e valor de história para a prática de atribuição de valor no IPHAN. Notamos que essa definição é bem próxima do que Vanderlei Pinho elaborou em 1930. A estética e o que se considera belo em grande parte é o que direciona a seleção de um bem nos primeiros anos de atuação do órgão. Ao longo dos recém completados setenta anos do órgão, alguns autores tentaram sistematizar a trajetória desse emblemático órgão na defesa do patrimônio cultural brasileiro, tendendo a polarizar as ações entre o extenso período de atuação de Rodrigo Melo Franco Andrade (1937-1967) e na retomada de uma nova causa na direção de Aloísio Magalhães (1979-1982) 8. Nos primeiros trinta anos de sua atuação o IPHAN, se destacou nas atividades de defesa dos bens culturais isolados, principalmente das edificações religiosas, militares e civis. Na gestão de Renato Soeiro (1967 a 1979) inicia-se uma nova política de tombamento, dirigida mais para a preservação de conjuntos. Podemos dizer que a partir da década de 1970 há um intento na formulação de um conceito mais 5 Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória. IPHAN. Arquivo Digital, p 97. 6 Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória. IPHAN. Arquivo Digital, p 16. 7 Arquivo Digital "Leis de Proteção - Patrimônio Cultural Móvel", elaborado pelo IPHAN- Departamento de Proteção. 8 GONÇALVES, 2002. FONSECA, 2005.

elaborado de bem cultural, atento para as múltiplas manifestações do fazer do homem brasileiro e para consolidação do meio ambiente em que se insere esse fazer. Foi crucial a atuação do PCH e do CNRC para essa nova concentração. Na gestão de Aloísio de Magalhães novos conceitos são empregados como o de bens culturais. As referências culturais orientam as práticas de preservação, agora pautadas na diversidade cultural da nação. Do nacional para o local, do excepcional para o comum, da identidade para a diversidade. Essas dualidades sempre acompanharam as práticas de atribuição de valor de um bem cultural. Vivemos em um país continental com ricas e múltiplas manifestações culturais. Necessariamente uma política pública de preservação cultural, investida na estrutura do IPHAN, não daria conta de abarcar toda nossa diversidade, o que seria menos complexo se atuássemos juntos em todas as instâncias, esfera federal, estadual, municipal e estabelecêssemos um contínuo diálogo e contato com a comunidade em geral. A atribuição de valor diz respeito a uma determinada história, identidade e memória que se quer construir. E essa escolha sempre envolverá disputas e conflitos de posições e interesses diferenciados, pois a a memória coletiva é não somente conquista, é também um instrumento e um objetivo de poder ( Le Goff, 1984:46). Márcia Chuva, em palestra proferida na II Oficina do PEP de 2007 na cidade de Goiânia, salientava que quando da criação do IPHAN a unidade nacional era incompatível com as diferentes expressões culturais da nação. Nacionalizar nos anos 30 e 40 significou impor a unidade, impedindo qualquer feição plural da nação, que deveria sintetizar-se numa única brasilidade. Não por acaso elegeram o barroco mineiro como ícone máximo de brasilidade, percebida como a primeira expressão autenticamente brasileira. Atribuir valor a um bem significa entendermos nossos processos culturais. Já nos anos 1970 assistimos uma ampliação da noção do conceito de patrimônio, em parte devido a novas reformulações advindas do conceito antropológico de cultura. A carta do México de 1976 é um reflexo desses processos, é um manifesto da cultura do ponto de vista antropológico, a cultura deixa de ser uma erudição e passa a ser modo de pensar, um direito de todos os povos. O cotidiano, as manifestações populares e a diversidade cultural passam a influenciar novas formas de atribuição de valor pelo Estado. Como Laraia sustenta a cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações

anteriores e o ser humano é ao mesmo tempo produto e produtor da cultura. (LARAIA, 2004). Em meio a essas mudanças são criados instrumentos de preservação para o patrimônio intangível. No Brasil em 2000, foi expedito o Decreto 3.551 para o patrimônio Imaterial. Atualmente na instituição há um questionamento quanto a validade desse instrumento, dada a complexa tarefa de preservar e proteger formas de patrimônio vivo, possíveis de modificações e transformações. O que vem acontecendo é que ficou polarizado as ações de preservação entre Patrimônio Material e Patrimônio Imaterial. Sendo que os dois carregam em si é um significado simbólico, que lhe são atribuídos justamente através da imaterialidade do bem, mas tanto um como outro através de um suporte físico. Entendemos que as ações na seleção dos bens que incorporam o patrimônio da nação, não podem caminhar isoladamente, como acontece hoje na instituição. Tanto o tombamento, quanto o registro poderiam ser equacionados em uma só ação através de diálogos entre os departamentos DEPAM e DPI. O patrimônio é uma categoria de pensamento. Segundo Manoel Salgado 9 o patrimônio pode ser entendido como o passado através de vestígios materiais. Mas o sentido não está nas coisas, mas sim nos significados que atribuímos a elas 10, assim como para o patrimônio. A história durante muito tempo tornou a história da arte, os monumentos e a arquitetura em abstração. Quando da criação do campo do patrimônio no século XIX e também do campo da restauração, por exemplo, a imaterialidade dos monumentos históricos era mais sacralizada, pois interessava o estilo, o projeto mais do que a construção dos edifícios 11. Ruskin, crítico e historiador da arte inglês defendia mais a ética do que a estética ao conceber os monumentos históricos e Riegl já pensava na elucidação das massas e nos usos sociais que se pode fazer do patrimônio, não abordava a questão do valor nacional, mas sim a finalidade social dos monumentos como via de conhecimento 12. Hoje vivemos o fenômeno da aceleração do presente, onde o que foi minutos atrás já não o é mais, tudo rapidamente tende a ser obsoleto. É como se o princípio da incerteza nos guiasse ou desorientasse 13. Já não sabemos como estabelecer laços entre o velho e o 9 Salgado, Manoel. II oficina PEP/ 2007 Goiânia, 23/10/07. 10 Adorno apud Aguilera - II oficina PEP/ 2007 Goiânia, 24/10/07 11 Idem 12 Choay, 2001; FONSECA, 2005. 13 Aguilera - II oficina PEP/ 2007 Goiânia, 24/10/07

novo. E a ação do patrimônio implica em lidarmos com esse desafio. Como ligar o novo ao antigo e retomar um processo de continuidade? Se a idéia de patrimônio está ligada a legado, e relacionada com preceitos e conhecimentos recebidos, devemos cada vez mais ter consciência de nossa historicidade. Os Bens patrimoniais representam uma narrativa sobre a trajetória do que é ser brasileiro, ou ainda o que se busca ser. Podemos dizer que os monumentos são todos e quaisquer bens que adquiriram um significado cultural, atuando como instrumentos da memória coletiva. Preservar esses bens significa contemplar a diversidade, permitir e assegurar que vários tipos do fazer humano se perpetuem. É uma forma também de permitir que as gerações futuras tenham acesso a ancestralidade e a herança cultural da nação. Porém não em raros casos esses monumentos são oficialmente implantados e/ou criados em algum local, que nem sempre está ligado a nossa memória coletiva. Quando a população se apropria e se reconhece nos bens culturais eleitos como representativos da nação torna-se mais fácil atuar com políticas de preservação. Trabalhos que elucidem a população quanto o significado desses bens, e trabalhos de educação patrimonial que atuem na conscientização das crianças para a proteção do patrimônio são essenciais nas políticas de preservação hoje. É importante também sabermos os usos e significados que a população atribui a esses bens, como forma de democratizar a atribuição de valor na hora na hora da seleção dos mesmos. Querendo ou não é o corpo técnico do IPHAN, que a partir de estudos promovem pareceres sobre determinado bem, e depois encaminham ao Conselho Consultivo que decide ou não o tombamento ou registro. A população quase não participa desse processo 14, pois o Conselho é integrado por um grupo restrito de intelectuais que ainda se baseia em conceitos como de valor excepcional, de exemplaridade, de singular notoriedade para justificar o tombamento. Muito se fala que essa temática mudou na casa e que tendem a privilegiar a diversidade cultural. O que se vê é que no discurso se prega uma concepção e na prática continuam a agir quando da criação do órgão e como está prescrito 14 Pode-se argumentar que a população participa quando encaminha ao órgão o pedido para tombamento, que entende o tombamento federal como um prestígio maior. Boa parte dos pedidos ainda procede de pessoas ligadas ao meio ou de funcionários da casa. Ou quando muito a população participa da reunião do Conselho Consultivo, como foi observado na reunião para registro do Samba e tombamento da Igreja da Vitória em salvador. Foi uma reunião emblemática na história do IPHAN.

no decreto lei: tombam pelo valor excepcional 15 e por forma ou de outra estarem ligados a fatos memoráveis da história nacional. A atribuição de valor passa pela estética, pelo belo, pela raridade. A atribuição de valor é uma construção cultural. Ainda prevalecem a preocupação com o valor artístico e arquitetônico. A noção de valor nacional, é fundada na idéia de nação e nas práticas voltadas para suscitar um sentimento de nacionalidade. Hoje o que a instituição entende por valor nacional ainda é válido discutir. Segundo Cecília Londres o valor que permeia o conjunto de bens tombados, independentemente de qual livro foi registrado, é o valor nacional, ou seja, aquele fundado em um sentimento de pertencimento a uma comunidade, no caso a nação (FONSECA, 2005:36). No entanto, nos textos jurídicos que regem o órgão é o valor cultural atribuído ao bem que justifica seu reconhecimento como patrimônio. Para a autora, no campo do patrimônio as noções de arte e história norteiam o processo de atribuição de valor. E hoje podemos afirmar que é o valor nacional que justifica o tombamento? Acredito que o valor excepcional e estético direcionam boa parte dos tombamentos. Tem-se dificuldade de lidar com bens que não possuem excepcionalidade. Parece-nos pertinente como pensamos na excepcionalidade, é preciso considerar também o conceito de representatividade. Não podemos perder de vista Na fala do presidente do IPHAN, Luis Fernando de Almeida 16 dizia que caminhamos para a fetichização dos objetos e não para a apropriação social desses bens. Preservamos monumentos para quem? O trabalho do órgão nem sempre é reconhecido socialmente, nem mesmo pelos próprios quadros da instituição. Socializar a importância de se restaurar ou tratar um bem cultural seria um caminho. Luis Fernando de Almeida salientou também que colocaria como pauta no DEPAM, na instrução dos processos de tombamento que se prescrevesse um trabalho de educação patrimonial, pois é primordial nossa relação com a sociedade. O IPHAN deve manter permanentemente diálogo com a sociedade. Precisamos socializar o significado de nossas ações, pois o que assistimos é uma inflexão na maneira de como o órgão trabalha. A 15 Esse entendimento ficou bem evidente na última reunião do Conselho Consultivo, 06/12/07, onde foi tombada a Rota Nacional da Imigração de Santa Catarina e as obras do arquiteto Oscar Niemayer. Tanto na leitura dos pareceres, quanto no debate dos conselheiros o argumento principal para o tombamento desses bens foi o valor de excepcionalidade, exemplaridade, por expressar beleza notável e valor estético. Nestor Goulart Filho que foi relator do processo de tombamento das obras de Niemayer argumentava que essas expressavam excepcionalidade de caráter pessoal e que as obras contribuíam para construção de uma identidade da arquitetura moderna brasileira. 16 Breve pronunciamento do presidente no Paço Imperial quando da realização do último dia do Seminário de Pesquisa Histórica no IPHAN, realizado pela COPEDOC/IPHAN entre os dias 26/11 a 30/11/07.

população deve se apropriar e compreender as ações dos patrimônios, antes mesmo de tentarmos ensinar algo a elas. Elas produzem conhecimento quando se relacionam com o bem e devemos levar isso em conta. De qualquer forma acredito que nossas ações, como a de qualquer outro órgão público, claro que com nossas especificidades, deve contribuir para melhorar as condições e qualidade de vida da população bem como para a construção de um Estado mais democrático. Os bens culturais respondem o que o presente lhes coloca, cada época fabrica seus bens culturais, como também cada homem é fruto de seu tempo. Portanto a prática de atribuição de valor também se adapta a essas questões, mas nas práticas do IPHAN elas expressão a longa duração, a perpetuação de valores ligados a estética, arte e arquitetura. É o processo de atribuição de valor que possibilita uma melhor compreensão do modo como são progressivamente construídos os patrimônios. É de total compreensão a tutela do Estado na nomeação dos bens dignos de serem preservados, o que não impede que isso ocorra através do estreitamento de laços com a população, que deveria usufruir mais desses bens. Como lidar com a proteção do patrimônio não consagrado no IPHAN? O problema é a seleção de bens com base na atribuição de determinados valores culturais, visando à sua proteção legal. Outro problema são os critérios usados para inscrição do bem nos livros do Tombo, o que acaba direcionando a leitura e também traz implicações nos modos de sua conservação: Caso do Quilombo de Palmares, do Presépio do Piriripau, do Terreiro da casa Branca. Aquilo que entendemos por nacional muda de acordo com as épocas. E mesmo que exista suportes concretos e contínuos do que se concebe como nação (território, a população e seus costumes etc.) em boa parte o que se considera como tal é uma construção imaginária (CANCLINI, p.98, 1994). Essa noção é baseada na de comunidade imaginada de Benedict Anderson, que defende que o nacionalismo é um artefato cultural, seria uma ficção constituída historicamente. (ANDERSON, 2001). Hoje ficamos a imaginar qual seria a função do IPHAN, perante o discurso da diversidade e da multiplicidade cultural. Devemos atuar no sentido de reforçar comunidades locais ou continuar tentando construir uma identidade nacional? O que nos resta é permanecermos sempre a procura de caminhos e reflexivos quanto a nossa prática.

Bibliografia AGUILERA, José: A construção da idéia de Patrimônio no mundo ocidental. II Oficina do Programa de Especialização em Patrimônio IPHAN: Goiânia, 2007. ANDERSON, Benedict. Introdução. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. pp.7-22. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: EdUNESP, 2001. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. GARCÍA CANCLINI, Nestor. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Traduzido por Maurício Santana Dias. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 23, p. 95-115, 1994. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, IPHAN, 2002. GUIMARÃES, Manoel Salgado: Patrimônio, memória e identidade. II Oficina do Programa de Especialização em Patrimônio IPHAN: Goiânia, 2007. LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. "Leis de Proteção - Patrimônio Cultural Móvel", elaborado pelo IPHAN- Departamento de Proteção. Arquivo Digital. LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória. Campinas: Unicamp, 2003. Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória. IPHAN. Arquivo Digital.