A Reforma Metrológica no reinado de D. Manuel I

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Transcrição:

A Reforma Metrológica no reinado de D. Manuel I António Neves Curador do Museu de Metrologia do IPQ Resumo Na Idade Média usavam-se sistemas de medição cujas unidades tinham diversas origens, nomeadamente romana e árabe. As medidas eram geralmente as mesmas, mas os valores variavam conforme o local. Apesar de diversas tentativas de reforma e uniformização ocorridas na 1ª dinastia, no tempo de D. João II mantinham-se sistemas paralelos com nomes semelhantes que seguiam vários padrões nacionais localizados em locais diferentes, como Porto, Santarém e Lisboa. D. João II adotou uma das medidas de peso como padrão (marco de Colónia) e propôs um novo sistema uniforme baseado num quintal de 128 arráteis de 16 onças. O falecimento do rei impediu que concretizasse a proposta e foi o seu sucessor, D. Manuel I que efetuou essa reforma, assente num novo sistema de pesos, cujos padrões o rei que mandou distribuir pelo país. A reforma alargou-se às outras medidas (baseadas no côvado e vara para o comprimento, o alqueire para os secos e o almude para os líquidos) e foi definida no conjunto de leis que conhecemos como Ordenações Manuelinas, incluindo medidas de controlo metrológico que sofreram diversos ajustamentos, até à versão final, editada pela primeira vez em 1521, último ano do reinado de D. Manuel I. Esta reforma manteve-se com poucas alterações até ao séc. XIX, embora com eficácia relativa, pois, na prática, nunca houve uma total uniformização das medidas, que continuavam a variar de terra para terra. Os sistemas de medição anteriores As medidas utilizadas em Portugal na Idade Média tinham diversas origens (nomeadamente romana e árabe) e caracterizavam-se por grande diversidade e pela existência de sistemas paralelos, pouco estáveis e nem sempre coerentes. No que respeita às medidas de comprimento, a unidade principal era o palmo ( 22 cm), a partir do qual se constituíam múltiplos e submúltiplos. Assim, as unidades mais comuns eram o côvado, também conhecido por alna (derivava do cubito antigo), que correspondia, em Portugal, a 3 palmos e a vara, que correspondia a 5 palmos. Existia também a braça (que Pág. 1

alguns autores referem medir cerca de 184 cm, mas que outros indicam corresponder a 2 varas. Estas medidas tinham submúltiplos: meio côvado, meia vara, meia braça. Contrariamente ao que acontece hoje, as medidas de capacidade ou volume usadas para líquidos eram, em regra, diferentes das que se usavam para secos (principalmente cereais), embora nem sempre tal acontecesse. Assim, para os líquidos, a unidade principal era o almude (al mudd), do qual existem referências anteriores à nacionalidade (1033). Esta medida tinha múltiplos: quarta (4 almudes) e puçal (4 quartas = 16 almudes) e ainda o tonel (52 a 24 almudes) e a pipa (meio tonel) e submúltiplos: a meia (1/8 do almude) e a pinta (1/16 do almude) conhecidos desde o séc XIV, mas usados eventualmente antes. Para os secos (muitas vezes conhecidas como medidas de pão ), a unidade principal era o alqueire, cuja referência mais antiga que se conhece é já do séc. XII, no foral de Coimbra de 1111. Esta medida tinha também múltiplos: teiga (4 alqueires), quarteiro (4 teigas = 16 alqueires) e o moio (64 alqueires). Havia habitualmente uma relação entre o alqueire e o almude, que foi variando. Antes da independência de Portugal, o almude deveria equivaler a 2 alqueires. Existia ainda uma medida maior, chamada moio, que deveria valer 64 alqueires. Em 1179, os forais dados por D. Afonso Henriques a Coimbra, Santarém e Lisboa mencionam um alqueire bastante maior. O anterior, usado no Condado Portucalense, seria cerca de 40% mais pequeno que o novo. Vários documentos posteriores referem a existência da medida pequena e da medida grande, ou rasa grande. Para a medição do sal havia ainda uma medida chamada búzio, semelhante em capacidade ao bushel inglês. A partir do séc. XII o búzio seria usado como padrão da teiga (4 alqueires). Nuns locais aplicavam a designação búzio e noutros, teiga. No Portugal medieval, usavam-se diversos sistemas de pesos, baseados, principalmente, em duas medidas: o arrátel (do árabe ritl) e a libra. De acordo com a Lei da Almotaçaria de 1253, o arrátel teria 12,5 onças: «Et carrega de cera ualeat nonaginta libras portugalenses; et arroua de cera ualeat septem libras et dimidam portugalenses; et arratal de cera de duodecim unciis et media ualeat quator sólidos et octo denários». Uma arroba teria 32 arráteis e 12 arrobas seriam equivalentes a 1 carga. A arroba de 32 arráteis de 12,5 onças equivalia a uma arroba de 25 libras de 16 onças, usada em Castela, pelo que a arroba portuguesa deveria ser semelhante à arroba castelhana. No séc. XIV, encontramos o arrátel "legal" com 14 onças (continuou a ser usado na Casa da Índia até ao séc XIX). O quintal (4 arrobas de 32 arráteis) era de 128 arráteis de 14 onças. Usavam-se outros sistemas: Pág. 2

arrátel mourisco (citado em documentos de D. Dinis, D. Fernando e até D. Manuel I), usado, por exemplo, para pesar carne. Existe informação contraditória, mas há autores que defendem que teria 16 onças; arrátel folforinho (citado em documentação do tempo de D. Pedro cortes de Elvas de 1361, e de D. Fernando), também usado para pesar carne, seria ¾ do arrátel mourisco; arrátel de carniçaria seria superior a 48 onças; pedra (feita de pedra) teoricamente equivaleria a 8 arráteis, usada para pesar lã e linho. O peso variava (em função da dagredação do material). Nos finais do séc. XIV encontram-se referências, em Portugal, à utilização de 2 medidas com o mesmo nome, mas de origem diferente: o marco de Tria (de Troyes) e o marco de Colonha (de Colónia), os quais eram também usados em grande parte da Europa, nomeadamente no resto da península, em França e na Inglaterra. Embora os elementos disponíveis não sejam todos concordantes, aparentemente o marco de Colónia seria equivalente a 15/16 do marco de Troyes. Resumindo, as mesmas medidas eram usadas em praticamente todo o país (Norte - mais tradição romana e Sul mais tradição árabe), mas não mediam o mesmo, podendo variar de terra para terra. Havia a libra de origem árabe que era diferente da libra de origem romana, as medidas de capacidade usadas no Norte do país eram maiores que as usadas no sul com o mesmo nome, coexistiam sistemas paralelos com nomes semelhantes (arráteis diversos, marcos diversos, etc) e os concelhos seguiam vários padrões nacionais localizados em partes diferentes do país (Santarém, Porto, Lisboa). As tentativas de uniformização anteriores A diversidade de sistemas de medição, nem sempre facilmente relacionáveis entre si e o facto de existirem medidas com os mesmos nomes mas medindo valores diferentes, dependendo do local, não eram bem vistos pelas populações e levavam a que, por vezes, estas solicitassem a intervenção real. Em 1352, reunido em cortes, o povo pediu ao rei a uniformização de várias medidas de comprimento, volume e peso. Uma das situações referia-se às medidas usadas para os panos de cor, pois os compradores compravam por medidas "grandes" e vendiam com medidas mais pequenas, causando assim prejuízo aos seus clientes. Relativamente a isto, o Rei D. Afonso IV acedeu, mandando que todos usassem a alna de Lisboa. Quanto às medidas de volume (medidas de pão, de vinho e de azeite) e aos pesos, o rei entendeu que teria que avaliar melhor a situação, pois qualquer decisão afetaria também outros concelhos que não estavam presentes naquelas Cortes. Entretanto o rei faleceu sem tomar mais medidas nos sistemas de medição. Foi D. Pedro I que veio a efetuar algumas reformas nas medidas de volume e nos pesos. No que respeita ao volume, com D. Pedro I o alqueire aumentou um pouco de tamanho: o antigo seria 8/9 do «alqueire que fez rei Dom Pedro». O sistema mantinha uma estrutura já Pág. 3

conhecida: o moio dividia-se em 4 quarteiros, 16 teigas, 32 almudes e 64 alqueires, ou seja o almude continuava a valer 2 alqueires e 12 canadas (1 alqueire valia 6 canadas). Gradualmente foram deixando de se usar outras medidas antigas, como o sesteiro, o puçal e a quarta. Nas cortes de Elvas de 1361, o rei determinou que as medidas de vinho se deveriam aferir pelo almude de Lisboa. Relativamente ao peso, nessas mesmas cortes ficou determinado que os usados para pesar alguns produtos (ex: carne, lã e linho) deveriam ser de ferro e não de pedra, e marcados e aferidos pela arroba de Lisboa. Quanto à pesagem da carne, o rei determinou que poderiam continuar a usar os arráteis folforinhos onde havia esse costume, aferindo esses arráteis pelo padrão de Santarém. Conclui-se assim, que Lisboa tinha o padrão da arroba e Santarém o do arrátel folforinho, que valeria 3/4 do arrátel mourisco. Se em meados do séc. XII (Lei da Almotaçaria), o arrátel teria 12,5 onças, no séc. XIV, encontramos o arrátel "legal" com 14 onças, não sendo certo se esta alteração está relacionada com a reforma de D. Pedro. No entanto, apesar destas tentativas de uniformização, continuaram a usar-se vários tipos de marcos (de Colonha, de Tria e de mercearia) e vários tipos de arráteis. A obrigatoriedade de usar pesos (arrobas) de ferro e não de pedra foi reforçada no reinado de D. João I, em 1391. Nas cortes que tiveram início em Elvas em 1481 e acabaram em Viana em 1482, no reinado de D. João II, determinou-se, a pedido dos povos, que todas as medidas fossem da mesma capacidade. Em 1487 o rei constatou que «a causa primçipall donde o desvaryo dos ditos pesos veeo foy aveer hy duas maneiras d onças, s. omça do marco de Colonha, que foy ordenado pera se pesar per elle ouro e prata, e omça de marco de marçaria, que foy ordenado pera se per elle pesar todo o aver de peso». Assim, nesse mesmo ano, D. João II pediu à câmara de Lisboa e aos procuradores dos mesteres que se pronunciassem sobre a ideia de passar a usar, para todos os produtos, marcos de um único tipo («ou do marco de colonha ou do marco de marçaria») e um sistema de pesos com a seguinte estrutura: onça = 6 grãos; marco = 8 onças; arrátel = 2 marcos, ou seja 16 onças; arroba = 32 arráteis; quintal = 4 arrobas No ano seguinte, o rei tinha já tomado uma decisão sobre o padrão de peso e determinou que se deixasse de usar o marco de Tria (de Troyes), passando a usar o de Colónia: «que o peso e marco de Tria, por que se pesa o ouro e prata e outras coisas, seja defeso, e nenhum oficial de qualquer ofiçio que seja nem outras pessoas o nam tenham» e que não se pese coisa alguma «senom per o peso e marco de Colonha» Pág. 4

Nas Cortes de 1490, na sequência do pedido de alguns concelhos, D. João II aceitou que parte do país utilizasse as medidas do Porto e não as de Santarém, o que constituiu um retrocesso no processo de unificação do padrão nacional. Entretanto o rei faleceu em 1495 sem ter aplicado a reforma do sistema de pesos baseado no arrátel de 16 onças que tinha proposto. A reforma manuelina No início do reinado de D. Manuel I (finais do séc. XV), os sistemas de pesos e medidas usados no reino continuavam a caracterizar-se por relativa diversidade e incoerência, apesar das tentativas pouco sistemáticas de uniformização e dos esforços do seu antecessor. O mesmo acontecia um pouco por toda a Europa, onde diversos monarcas tentaram uniformizar os sistemas usados nos seus países. Assim, na península ibérica, em 1488, após a união dos reinos de Castela e Aragão, os reis católicos ordenaram que se passasse a usar um único padrão de pesos nas trocas comerciais. Também na Inglaterra, em 1496-97, Henrique VII efetuou uma relevante reforma metrológica, escrita, pela primeira vez, em inglês, tendo enviado cópias dos pesos e medidas a muitas das principais cidades do reino. Em 1497, pouco tempo após herdar a governação do reino, D. Manuel I convocou representantes dos concelhos com o objetivo de discutir a reforma dos pesos. Sabemos que a reforma estava concluída ainda antes do fim do século, porque os novos padrões foram produzidos em 1499 e o novo foral de Lisboa de 1500 já se baseia no novo sistema. Este assenta na proposta de D. João II, ou seja, baseia-se num quintal de 128 arráteis de 16 onças, sendo composto pelas seguintes 16 peças: a caixa que pesa meio quintal (= 2 arrobas); 1 arroba; 1 meia arroba; ¼ de arroba (= 8 arráteis); 1/8 de arroba(= 4 arráteis) ; uma peça de 2 arráteis; 1 arrátel; 1 marco (= ½ arrátel, = 8 onças); ¼ de arrátel (= ½ marco, = 4 onças); oitava de arrátel (= 2 onças); 1 onça; ½ de onça (= 4 oitavas); 2 oitavas; 1 oitava (= 1 cruzado) 2 peças de ½ oitava cada uma. Pág. 5

O novo sistema de pesos foi incluído no Regimento dos Ofiçiais das Çidades, Villas e Lugares destes Regnos, que o rei mandou imprimir, para melhor se divulgar (trata-se da primeira compilação legislativa impressa em Portugal, tanto quanto se conhece hoje). Em 1504 foram enviadas cópias dos padrões de pesos para muitos concelhos do país, acompanhados por um exemplar do referido Regimento. O arrátel antigo, de 14 onças, continuou a ser usado para especiarias e drogas (nomeadamente na Casa da Índia, onde se manteve em uso até ao séc. XIX). No que respeita às medidas de volume, para os secos, (principalmente os cereais), a medida principal era o alqueire, tendo como submúltiplos o meio alqueire, a quarta de alqueire e a maquia (supõe-se que valeria 1/16 do alqueire). Para os líquidos, ie, o vinho, usava-se o almude, com os seus submúltiplos: meio almude, canada, meia canada, quartilho e meio quartilho. O azeite media-se pelas medidas de secos (alqueire e seus submúltiplos). Contrariamente ao que fez com os pesos, D. Manuel não mandou distribuir cópias dos padrões de medidas de volume pelo país, o que levou a que a divulgação destas medidas não tivesse o mesmo êxito relativo que se verificou com os novos pesos. As medidas de comprimento eram o côvado e a vara. Seguindo o exemplo já iniciado anteriormente com as Ordenações Afonsinas, iniciadas no tempo de D. João I, mas publicadas só na regência de D. Pedro, tio do rei D. Afonso V, D. Manuel mandou fazer uma compilação das leis, que veio a ser conhecida por Ordenações Manuelinas. Esta compilação seguiu o modelo da anterior, com 5 livros, tendo tido várias versões. A 1ª versão foi publicada em 1512-13, com reedição em 1514. Seguiu-se uma versão em 1517-18, da qual se conhece pouco (foram descobertas apenas algumas páginas incompletas em 2012) e, finalmente, a versão de 1521, mais conhecida, pois o rei mandou destruir as anteriores e substituí-las por esta. Todas as versões foram impressas, tendo o rei contratado tipógrafos para o efeito. No primeiro livro, o título dedicado ao Almotacé-Mor (título XII na 1ª versão e título XV a partir de 1521) reproduz praticamente por completo (com alterações) o Regimento dos Ofiçiais das Çidades, Villas e Lugares destes Regnos. Nele encontramos a indicação dos principais pesos e medidas, que (a partir de 1521) deviam ser (tamanhos como os da cidade de Lisboa, e não sejam maiores, nem menores...), as medidas de controlo metrológico (os prazos para aferição das medidas e as multas e castigos para quem não cumprisse a lei), assim como a indicação de quem tinha obrigação de possuir os pesos e medidas, nomeadamente os concelhos, consoante o número de habitantes (vizinhos) e os "mesteres" que deles carecessem para a sua atividade. As Ordenações (como o Regimento atrás citado) especificam: Os padrões que devem existir nos concelhos; As pessoas, que por razão de seus ofícios devem ter determinados pesos ou medidas e quais; Pág. 6

Os prazos de verificação e aferimento; As multas aplicáveis (e quem fica com esse rendimento); Como utilizar e onde guardar os padrões municipais A reforma dos pesos e medidas efetuada por D. Manuel no fim do séc. XV foi tida em conta na elaboração dos novos forais que o rei mandou distribuir por inúmeros concelhos, substituindo os anteriores, e veio a ser divulgada com a publicação das Ordenações Manuelinas. Apesar de nos séculos seguintes (até à adoção do sistema métrico), continuarem a coexistir medidas com o mesmo nome e valores diferentes, tratou-se da tentativa de uniformização dos pesos e medidas que revelou maior sistematização e eficácia, principalmente no campo dos pesos, em virtude da sua distribuição relativamente generalizada. Vejamos como se processou a evolução da reforma entre o estabelecido no Regimento (início do séc. XVI) e a versão final (último sistema ) das Ordenações (editada a partir de 1521): Evolução da reforma no que respeita aos padrões que os concelhos deveriam ter: Regimento das cidades Ordenações (1512-14) Ordenações (1521) Padrão de peso de 1 quintal de 128 arráteis com as 16 peças postos nas cidades, vilas e lugares onde e quantos nos pareceu necessário a cada um lugar Além do referido no Regimento, os concelhos deveriam ter: Padrão de peso de ouro (especifica quais); Padrão de vara e côvado; Medidas de pão: fanga, alqueire, meio alqueire e quarta; Medidas de vinho: almude, meio almude, canada, meia canada, quartilho e meio quartilho; Medidas de azeite: alqueire e meio alqueire e quarta e medidas miúdas que se costumam usar As medidas de comprimento e capacidade são as mesmas, excepto a fanga, que não é mencionada. Quanto ao peso, não se referem os padrões de peso de ouro e só as cidades e vilas com 400 vizinhos ou mais, terão o peso de 1 quintal de 128 arráteis com 16 peças; os concelhos entre 200 e 400 vizinhos, terão apenas meio quintal e daí para baixo; os concelhos com menos de 200 vizinhos terão somente arroba e daí para baixo Evolução da reforma no que respeita aos padrões nacionais que os concelhos deveriam seguir: Regimento das cidades Ordenações (1512-14) Ordenações (1521) Apenas refere o padrão de peso, semelhante ao da corte (quintal de 128 arráteis, etc) Entre Douro e Minho, Beiras, Trás os Montes, Algarve e Setúbal seguem medidas (padrões) do Porto; o resto do país mede pelas medidas de Santarém. Mas quanto aos pesos todos e varas serão iguais e tamanhas em um lugar como em outro pelos padrões que ora mandámos fazer. Pág. 7 Todas as medidas, e pesos, e varas, e côvados sejam tamanhas como os da nossa cidade de Lisboa e não sejam maiores nem menores.

Evolução da reforma no que respeita à guarda e utilização dos padrões que os concelhos deveriam ter: Regimento das cidades Ordenações (1512-14) Ordenações (1521) Os padrões municipais devem Acrescenta-se que os estar numa arca ou armário com duas fechaduras (cujas chaves estariam com o padrões devem estar marcados da marca do concelho. procurador e o escrivão). Multa para uso indevido dos padrões municipais = 4000 reais Multa para uso indevido dos padrões municipais = 2000 reais (metade) Acrescenta-se que os afinadores terão outros pesos e medidas concordantes com os do concelho, para afinar os pesos inferiores a meia arroba. Daí para cima terão que afinar na Câmara. Multa para uso indevido dos padrões municipais = 1000 reais (metade) Evolução da reforma no que respeita aos pesos e medidas que os particulares deveriam ter e respectivos prazos de afinação: Regimento das cidades Ordenações (1512-14) Ordenações (1521) Devem ter pesos (descriminados por cada ofício) e afiná-los de 2 em 2 meses pelos padrões do Passam a incluir-se os vendedores de peixe e ourives, e Nas medidas de comprimento: Mantém-se o disposto em 1512, com uma alteração: Só os Regatães de concelho: Mercadores de panos de cor pescado e carniceiros Carniceiros; terão varas e côvados; são obrigados a aferir Cirieiros (fazem velas de cera); Trapeiros (panos de diversos de 2 em 2 meses. Os que fazem candeias de sebo; tipos) terão varas; Caldeireiros; Os outros passam a Picheleiros (pichéis, funis); Nas medidas de capacidade: aferir 2 vezes por ano, Fazem bestas de aço; Vendem vinhos a grosso em Janeiro e Julho; Boticários; (medidas maiores) Fruteiras; Vendem vinho atavernado Os tecelães continuam Vendem sabão a peso; (medidas mais pequenas) a aferir 1 vez por ano, Especieiros; Compram e vendem azeite em Janeiro Moleiros, atafoneiros e em grosso (medidas maiores) azenheiros; Vendem azeite pelo miúdo (medidas mais pequenas) Devem ter pesos (descriminados por cada ofício) e afiná-los uma vez por ano : Tecelães de panos de linho; Tecelães de panos de lã; Tintureiros; Tecedeiras de veios; Pág. 8

Resumindo: Os Padrões Nacionais: deixam de ser vários, passando a seguir-se os de Lisboa; Os pesos que cada concelho deve ter passam a depender do número de habitantes (nem todos têm que ter até ao quintal). As multas por uso indevido dos padrões municipais, vão descendo de 4000 para 2000 e depois para 1000 reais em 1521; No que respeita ao controlo metrológico, com algumas exceções (carne e peixe), a verificação dos pesos e medidas deixa de ser de 2 em 2 meses e passa a ser 2 vezes por ano (em Janeiro e Julho). Incluem-se algumas profissões e medidas não previstas inicialmente (vinho e azeite capacidade; tecidos côvado e vara) A partir de 1521 deixam de pagar multa quando vão fazer a aferição. Nas outras situações, se o erro nos pesos ou medidas for culpa do afinador, é este que paga a multa. Efectuam-se algumas clarificações (ex: passa a haver multa para erro no côvado, não prevista inicialmente) e há outras alterações menores. Como podemos verificar, parece existir um aperfeiçoamento e ajustamento, conforme determinado pela prática ao longo destas duas décadas, no sentido de tornar o sistema mais rigoroso, mas também mais praticável. O sistema manteve-se quase sem alterações até ao séc. XIX, na redação que ficou conhecida por Ordenações Filipinas, recolha de leis promulgada por Filipe II em 11 de janeiro de 1603, com estrutura semelhante à que fora usada por D. Manuel I. Eficácia da reforma A reforma de D. Manuel I foi a maior reforma metrológica anterior ao sistema métrico, embora tenha sofrido alguns ajustamentos. Em 1575 D. Sebastião mandou finalmente distribuir as medidas de volumes de líquidos e de secos, seguindo, no geral, o sistema inscrito nas Ordenações Manuelinas, mas determinou que o azeite se passasse a medir pelo almude (líquidos) e não pelo alqueire (secos), como determinado nas Ordenações, e que, na medição de secos se passasse a utilizar a rasoura, para que as medições ficassem mais corretas. Filipe II, ao promulgar as Ordenações que conhecemos como Filipinas em 1603, reproduz praticamente a reforma manuelina, voltando a determinar que o azeite se medisse pelo alqueire. Assim, no geral (excepto estas pequenas alterações), a reforma de D. Manuel I, manteve-se em vigor durante vários séculos, até à adoção do sistema métrico decimal. No entanto, apesar da tentativa de uniformização que caracterizou esta reforma, os elementos recolhidos em meados do séc. XIX, aquando da implementação do Sistema Métrico Decimal na sequência do decreto de D. Maria II de 13 de dezembro de 1852, permitem concluir que nunca Pág. 9

chegou a haver uma real e total uniformização das medidas. Constatou-se que, mesmo em concelhos próximos, os valores das medidas variavam e apesar das sucessivas proibições (já anteriores a D. Manuel I) continuavam a usar-se instrumentos proibidos (ex: pesos de pedra). Bibliografia Regimento dos oficiais das cidades, vilas e lugares destes reinos, Edição facsimilada do texto impresso por Valentim Fernandes em 1504 e neste ano de 1955 reimpresso pela Fundação de Casa de Bragança com prefácio do Professor Doutor Marcello Caetano, Lisboa, 1955 Ordenações Manuelinas : Livros I a V : Reprodução em fac-símile da edição de Valentim Fernandes (Lisboa, 1512-1513) [...] / Introdução e descrição Codicológica de João José Alves Dias. Lisboa : Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002. Ordenações Manuelinas on-line [Em linha] Universidade de Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, [Consult. 2014-05-29]. Disponível em WWW:<http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/> Barros, Henrique da Gama, História da Administração Pública em Portugal, nos séculos XII a XV, vol. IV, 2ª Ed. Sá da Costa, Lisboa, 1945-1954; Basto, A. Magalhães, Livro Antigo de Cartas e Provisões dos Senhores Reis D. Afonso V, D. João II e D. Manuel do Arquivo Municipal do Porto, Documentos e Memórias para a História do Porto, V, Câmara Municipal do Porto, Porto, 1940; Cruz, António, Pesos e Medidas em Portugal, Instituto Português da Qualidade, Caparica, 2007; Gomes, João Rodrigues da Costa, Dos antigos pesos e medidas portugueses, in Anuário de Pesos e Medidas, 1940; Gomes, João Rodrigues da Costa, Subsídios para a história dos Pesos e Medidas em Portugal - Unidades do antigo sistema, in Anuário de Pesos e Medidas, 1946; Gomes, João Rodrigues da Costa, Subsídios para a história dos Pesos e Medidas em Portugal - Antigas Unidades de Medidas Lineares- Um padrão mediavel do côvado, in Anuário de Pesos e Medidas, 1944; Graça, Joaquim José, Systema Legal de Medidas, Typografia Universal, Lisboa, 1864; Lopes, Luís Seabra, Sistemas Legais de Medidas de Peso e Capacidade do Condado Portucalense ao Século XVI, Portugália, Nova Série, vol. XXIV, FL/Univ. Porto, 2003; Lopes, Luís Seabra, Medidas Portuguesas de Capacidade, Revista Portuguesa de História, t. XXXIV, 2000; Pág. 10