A simbolização fúnebre em torno dos inocentes na região de Seropédica do século XIX. TAÍS DUTRA CANDIDO DA SILVA * ; PAMELA PERES CABREIRA **

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Transcrição:

A simbolização fúnebre em torno dos inocentes na região de Seropédica do século XIX. TAÍS DUTRA CANDIDO DA SILVA * ; PAMELA PERES CABREIRA ** No presente trabalho, buscaremos compreender elementos das cerimônias funerárias de inocentes 1 em Itacurussá no período de 1828 e 1841, e quais significados eram atribuídos a estes rituais. Para a execução desse trabalho, contamos com um vasto e minucioso levantamento bibliográfico (de obras acadêmicas e memorialistas) e com um banco de dados elaborado a partir do corpus documental da cúria local de Itaguaí, cidade situada no litoral sul do estado do Rio de Janeiro. Esta cúria, além de abrigar os livros da própria cidade de Itaguaí, guarda também os registros das regiões de Mangaratiba, Bananal, Itacurussá. Esse banco de dados, bem como o levantamento bibliográfico, é resultado do trabalho dos bolsistas do Pet-História/ UFRRJ nos últimos anos, o que tem nos possibilitado propor questões referentes a registros de óbitos, casamentos e batismos no Brasil, que até a proclamação da República ficaram sob a cargo da Igreja Católica. Esse corpus documental possibilitou a criação de diversas vertentes de pesquisa dentro do PET- História/UFRRJ, por exemplo, a utilização de categorias raciais nos registros paroquiais, a visão do IHGB sobre a região que hoje estão situados os municípios de Seropédica e Itaguaí. Além disso, pode-se ainda trabalhar quantitativamente os dados referentes a negros, pardos, índios, entre outros. Uma destas vertentes é justamente sobre a história da morte e das cerimônias funerárias nestas regiões do entorno da UFRRJ, sendo a proposta deste trabalho. Com isso, procuramos estabelecer e colaborar com novas possibilidades de estudos, criando dentro do grupo o desenvolvimento de materiais didáticos e de banco de dados que serão posteriormente disponibilizados para uso tanto em escolas da própria cidade, bem como por pesquisadores que venham a se interessar pelos dados levantados sobre a região. *Graduanda do curso de História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET- História- UFRRJ). Trabalho escrito sob a orientação da Professora Doutora Adriana Barreto de Souza e Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET-História- UFRRJ). ** Graduanda do curso de História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET- História- UFRRJ). 1 Neste trabalho utilizarei o termo inocente como encontrado nos registros do período estudado (1828-1841). Essa nomenclatura é utilizada para indivíduos de até seis anos, enquanto adulto será utilizada para indivíduos acima de sete anos.

Primeiramente, trataremos da metodologia que fundamenta nossa análise. Em um segundo momento, analisaremos alguns elementos da história dos ritos funerários e as concepções católicas sobre a morte. Por fim, buscaremos tratar sobre as especificidades da região de Itacurussá e das cerimônias funerárias de inocentes. A pesquisa, portanto, estabelece uma análise voltada para um recorte geográfico restrito. Isto é possibilitado metodologicamente por correntes historiográficas que enfatizaram a micro-história e colaboram com o desenvolvimento de estudos que visam resgatar a cultura, economia e política de uma região específica, possibilitando estudos de caso e de objetos diretos dentro dos objetivos da pesquisa. Para tal, utilizamos a perspectiva de micro história italiana, segundo a abordagem de Giovanni Levi da alternância entre os níveis micro e macro do contexto histórico e, conforme Carlo Ginzburg, o paradigma indiciário. Ou seja, a construção de um determinado relato histórico a partir de fragmentos, vestígios separados. Também utilizamos a perspectiva de Jacques Revel, para quem: A mudança de escala de análise é essencial para a definição da micro-história. [...] Variar a objetiva não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e sua trama. Ou, para recorrer a um outro sistema de referências, mudar as escalas de representação em cartografia não consiste apenas em representar uma realidade constante em tamanho maior ou menor, e sim em transformar o conteúdo da representação. (REVEL, 1998: 19-20) 2 No Brasil colonial, até meados do século XIX, a concepção da morte estava totalmente vinculada à visão de mundo construída pela Igreja Católica, principalmente na crença na eternidade da alma, sendo os rituais e celebrações fúnebres uma continuidade na preocupação com o além-túmulo. Segundo as doutrinas católicas, religião aceita como oficial no período tratado deveria haver uma preocupação com os ritos funerais, deveria o crente ter uma boa morte seguindo tais doutrinas. A morte não tinha necessariamente uma conotação negativa, segundo João José Reis a morte era vista como uma passagem para uma nova vida, um novo mundo, dai ela poder ser encarada até com júbilo (REIS, 1997: 96). A preocupação com o além-túmulo gerou um padrão de atitudes e rituais que visavam um bem-morrer. Segundo João José Reis, muitas são as sociedades nas quais prevalece a noção de que a realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segurança de mortos e vivos (REIS, 1991: 89). A exteriorização da morte, a prática testamentária, a realização dos sacramentos são alguns destes elementos que proporcionavam uma morte

3 segura. Para Cláudia Rodrigues, essas preocupações já estavam presentes na Europa desde a Idade Média, quando a Igreja Católica passa a ser a mediadora entre o mundo dos vivos e dos mortos, deixando a cargo da Igreja a ritualística em torno da morte (RODRIGUES, 2005: 40). Ao longo da Idade Moderna, esta ritualização da morte produzida pela Igreja Católica foi perdendo espaço, sobretudo nos países onde a Reforma Protestante teve grande repercussão. Ao longo do século XIX, as práticas higienistas ganham cada vez mais espaço na sociedade brasileira, diminuindo o campo de ação das concepções religiosas sobre a morte. Na tentativa de regulamentar a salubridade pública, os cemitérios e rituais funerários começam a passar das autoridades eclesiásticas para as autoridades seculares. O cemitério sai do território da Igreja Católica apenas em 1890, com a proclamação da República. Mesmo com o declínio das práticas religiosas perante a morte durante o século XIX, pode-se perceber continuidades destas concepções e rituais na região de Itacurussá, situada no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Para entender essas continuidades, faz-se necessário entender mais sobre a história da região e da atuação da Igreja Católica. Em 1557, Christovão Monteiro ganhou uma sesmaria, na costa do mar na proximidade com Guaratiba, concessão devida ao auxílio de Monteiro à expulsão dos franceses. A área integrava o território da capitania de São Vicente 2. A viúva de Monteiro doou metade das terras para a Companhia de Jesus, o que deu origem à Fazenda Santa Cruz. Esta fazenda estava na área em que atualmente estão situados os municípios de Itaguaí e Mangaratiba e parte da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro (Santa Cruz). A presença jesuítica disseminou ainda mais a religião católica nessa região, catequizando índios, controlando a posse da terra e a produção agropecuária. A paisagem, urbana e rural, teve especialmente a marca dos religiosos. Além disso, é importante destacar que o Rio de Janeiro apresentava-se como uma cidade predominantemente religiosa, jesuítica. Os incentivos recebidos por estes como isenção dos pagamentos do dízimo sobre suas terras contribuiu para essa formação. 2 Documento da petição foi transcrito e publicado em José de Saldanha da Gama. História da Imperial Fazenda de Santa Cruz. RIHGB, vol. XXXVIII-2, 1875, pp. 167-170.

4 Com a expulsão dos jesuítas em 1759, ocorreu a transferência do patrimônio para a Coroa, a região passou a ser denominada Freguesia de São Francisco Xavier de Itaguaí. Em 1832, parte do território da Freguesia foi desmembrada e passa a ser Vila de Mangaratiba, onde estava situada Itacurussá. É importante ressaltar que esta região está situada entre as regiões agro-produtoras do interior e a região central da Província, o que possibilitou a circulação de pessoas, mercadorias, e podemos ainda acrescentar, de ideias e informações. Além disso, a região possuía pequenos portos que escoava a produção e recebia escravos. Ao longo da análise de registros paroquiais de óbito de escravos em Itacurussá no período de 1828 e 1841, podemos perceber que alguns rituais católicos foram mantidos e documentados, por exemplo, os sacramentos, encomenda da alma e a utilização de mortalhas (inclusive mortalhas coloridas). Procuraremos, a partir de agora, nos centrar na análise do uso dessas mortalhas nos registros que se referem a inocentes. Os registros de óbito estavam sob o controle da Igreja Católica até a Proclamação da República. Deste modo, nos assentos constavam dados considerados importantes pela Igreja. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia 3 tinham como objetivo regulamentar a organização e atuação eclesiástica no Brasil, inclusive no que tange aos rituais funerários e modelos de registros de óbito. No modelo de registro de óbito, deveria constar informações referentes aos rituais católicos: se a alma foi encomendada, se os sacramentos foram realizados e informações sobre a mortalha. No entanto, a partir da leitura de outros livros da Cúria de Itaguaí, podemos perceber que, na prática, muitos párocos omitiam esses dados nos assentos, não respeitando as normas das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Os assentos analisados estão em um livro que era destinado aos registros de óbito de escravos. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, não existiam termos que tratassem da diferenciação dos rituais e práticas para os escravos, ao contrário, existia a crítica aos 3 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia criada em 1707 e publicadas em 1719 em Lisboa.

Senhores que não fornecessem cerimônias católicas adequadas aos seus escravos mortos, como neste trecho: 5 E porque na visita, que temos feito de todo nosso Arcebispado, achamos, (com muito grande magoa de nosso coração) que algumas pessoas esquecidas não só da alheia, mas da propria humanidade, mandão enterrar os seus escravos no campo, e matto, como se forão brutos animaes. (VIDE, 2007: 295-296) Dos registros analisados no período de 1828 e 1841, pode-se notar que em quase 70% dos assentos existe menção a mortalhas. Comparando o Livro 1 de óbitos de escravos de Itaguay (1828-1872) com o Livro I de óbitos de livres de Itacurussá (1828-1875), ocorre uma diferença significativa nos registros paroquiais, entre a população escrava de Itaguaí desse período, simplesmente não há menção sobre o uso de mortalhas. Já entre a população livre de Itacurussá foi constatado o uso de mortalha em 95% dos casos (314 assentos), tendo, portanto, apenas 15 assentos sem nenhuma referência ao seu uso. (RODRIGUES, GONÇALVES, 2010: 9) Para Luiz Lima Vailati, a importância dada às mortalhas no imaginário religioso teve: (...) origem em tempos em que a crença na separação entre corpo e alma após a morte não era algo bem definido, a idéia de ser a forma como se era enterrado a mesma como se entraria no Além chegou até o século XIX no Brasil. Em suma, um defunto adequadamente vestido poderia beneficiar-se disso no tocante ao destino que as potências celestiais lhe reservariam.(vailati, 2006: 58) Neste contexto, as cerimônias funerárias de inocentes assumiam um caráter diferenciado, tendo em vista que as crianças poderiam interceder pelos vivos perante as autoridades celestiais, logo, existia uma preocupação ainda maior com as mortalhas e cerimônias funerárias no caso dos inocentes. Com as particularidades na concepção da criança (como ser puro, inocente e, em alguns momentos, até mesmo mártir), a igreja Católica restringia alguns ritos fúnebres destinados a adultos, não havendo esta mesma particularidade com crianças. Como ressalta Vailati,

6 Por sinal, entre as práticas rituais efetivas levantadas para o Rio de Janeiro (auferidas nas denúncias e proibições constantes dos livros eclesiásticos, nos livros de registro de óbito e nos relatos dos viajantes), ficou evidenciada, em primeiro lugar, a identificação feita entre os três crianças, moças virgens e solteiros, sugerindo que, por parte da população leiga, é forte a associação entre infância e ausência de prática sexual. (VAILATI, 2012: 212) Além disso, a preparação pré-ritual fúnebre do corpo infantil não recebe o mesmo destinado a adultos, pois a importância simbólica da criança está voltada para o bom encaminhamento da alma, enquanto que em adultos a importância volta-se para a glorificação e purificação do corpo. No período estudado (1828 e 1841), nos livros de óbito de Itacurussá, as mortalhas mais comuns eram em tecido branco. João José Reis também aponta que o branco era o traje mais usual na Bahia em 1835-6 (REIS, 1997: 111). Luiz Vailati destaca que em sua pesquisa sobre a cidade de São Paulo, o branco era a cor mais utilizada, aparecendo em 65% dos registros de óbito de inocentes (VAILATI, 2006: 58). A mortalha de cor branca costumava representar a pureza e a inocência ou, ainda, a ausência de recursos para adquirir outro tipo de mortalha. Além disto, o branco era a cor fúnebre de alguns grupos étnicos africanos, o que pode ter contribuído para a grande quantidade de mortalhas desta cor. A segunda mortalha mais empregada nesta região era em tecido encarnado (1,18%), utilizada nos registros somente para inocentes. No cristianismo, o vermelho é a cor dos mártires da Igreja. A partir disto pode se perceber a identificação dos inocentes com os mártires, atribuindo à criança elementos de santidade. No caso dos inocentes, era bastante frequente atribuir-lhes elementos de santidade e inocência, por isso a ampla utilização dessas mortalhas. No entanto, consideramos importante destacar que a utilização das mortalhas estava caindo em desuso no século XIX ou, pelo menos, os párocos consideravam cada vez menos importante registrar esta informação nos assento. Pode-se perceber isso nos assentos no Livro 3 de óbito de livres de Bananal de Itaguaí (1848-1862), onde existe poucas ocorrências de mortalhas brancas e nenhuma ocorrência de mortalhas coloridas.

7 Diante disso, podemos concluir que os rituais funerários infantis do século XIX em Itacurussá mantiveram fortes elementos da cultura católica que estavam presentes na sociedade brasileira desde o período colonial. O trabalho de levantamento de dados e processamento destes, ainda está sendo realizado pelo grupo PET-História, na busca de novos referenciais de pesquisa. No entanto, os dados já recolhidos e processados têm sido de grande ajuda a pesquisadores que se dedicam à região bem como para estudos mais abrangentes. Referências GINZBURG, C.; PONI, C. O Nome e o Como. In: Ginzburg, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. REIS, João José. O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista. In: Alencastro, L. F. História da vida Privada no Brasil. v. II. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.. A morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. REVEL, J. Microanálise e construção do social. In: Jogos de Escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. RODRIGUES, Claudia. Nas Fronteiras do Além: a secularização da morte no Rio de janeiro séculos XVIII e XIX. Rio de janeiro: Arquivo Nacional, 2005. RODRIGUES, Ana Claudia da Silva; GONÇALVES, Natália Coelho. O momento derradeiro e a preocupação com o além-túmulo: a Boa Morte católica entre a população de Itaguaí (século XIX). XIV Encontro Regional da Anpuh-Rio. Rio de Janeiro, 2010. VAILATI, Luiz Lima. As fotografias de anjos no Brasil do século XIX. Anais do Museu Paulista. São Paulo. v.14, n.2, p. 51-71, jul- dez 2006.

8. Representações da morte infantil durante o século XIX no Rio de Janeiro e na Inglaterra: Um esboço comparativo preliminar. Revista de História. São Paulo. n. 167, p. 261-294, jul dez 2012. VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007. vol. 79.