Leituras, notas, impressões e revelações



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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Gabriela Soares de Azevedo Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa Rio de Janeiro 2007

Gabriela Soares de Azevedo Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós- Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política. Orientadora: Profª. Drª. Lucia Maria Paschoal Guimarães Rio de Janeiro 2007

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/A S725l Azevedo, Gabriela Soares de. Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa. - Rio de Janeiro, 2007. 149f. Orientador: Lúcia Maria Paschoal Guimarães Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. 1. Sousa, Gabriel Soares de, 1540 1591 Teses. 2. Brasil História Tratado descritivo, 1587 - Teses. 3. Brasil Política e governo, 1587 Teses. I.Guimarães, Lúcia Maria Paschoal. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Graduação em História. III. Título. CDU- 981 1587 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. Assinatura Data

À memória das minhas avós, Maria Celeste da Silva Pereira e Margarida Soares de Sousa

RESUMO O Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa é uma das maiores referências escritas para a historiografia colonial brasileira. Rico em informações sobre a nova terra, a autoria do texto foi identificada por Francisco Adolpho de Varnhagen, em 1838, num exercício de crítica documental. O colono português chegou ao Brasil em 1569, tornou-se senhor de engenhos, foi explorador de riquezas pelo rio São Francisco e apresentou seus escritos à corte de Filipe II, no período da união das coroas. Mas além do conteúdo valioso do discurso, há uma biografia aventuresca a envolvê-lo, relacionando diversos aspectos presentes no processo de colonização e ainda a fascinante história da descoberta dos textos coloniais e de suas leituras. Palavras chave: Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares de Sousa, crítica documental, historiografia colonial.

ABSTRACT The text named Tratado Descritivo do Brasil em 1587, by Gabriel Soares de Sousa is one of the greatest written references for the brazilian colonial historiografy. Rich in information about the new land, the authorship of the text was identified by Francisco Adolpho de Varnhagen, in 1838, in an exercise of documental critic. The Portuguese colonist arrived in Brazil in 1569, and became gentleman of devices, explored all over San Francisco River and presented his writings to the court of Philippe II, during the period of the union of the crowns. But beyond the valuable content of the speech, there is an incredible biography involving it and relating diverse aspects presents in the process of settling; there is the fascinating history of the discovery of the colonial texts and its readings. Keywords: Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares de Sousa, documental critic, colonial historiografy.

LISTA DE QUADROS Quadro n 1: As edições impressas da obra de Gabriel Soares de Sousa... 60 Quadro n 2: Testemunhos de Gabriel Soares de Sousa... 65 Quadro n 3: Tratado Descritivo do Brasil em 1587 notas de Francisco Adolpho de Varnhagen... 70

LISTA DE REPRODUÇÕES ICONOGRÁFICAS Figura n 1: Selo comemorativo dos 400 anos do Tratado Descritivo do Brasil Gabriel Soares de Sousa... 48 Figura n 2: Gravura do Padre Antônio Vieira... 49 Figura n 3: Fac-símile da cópia manuscrita do Roteiro geral com largas informações de toda a costa que pertence ao Estado do Brasil etc., de Gabriel Soares de Sousa, do acervo da Biblioteca de Guita e José Mindlin (São Paulo)... 90

ÍNDICE Lista de Quadros Lista de reproduções iconográficas Introdução... 1 Capítulo 1. A historiografia e O Tratado Descritivo do Brasil em 1587... 4 1.1. Gabriel Soares de Sousa, um quase desconhecido... 4 1.2. Gabriel Soares revisitado... 37 1.3. Gabriel Soares contemporâneo... 43 Capítulo 2. A construção de uma obra: impressões, notas e edições... 50 2.1. A descoberta de Varnhagen... 50 2.2. Edições e notas do Tratado Descritivo do Brasil em 1587... 55 2.3. A redescoberta de Augusto Pirajá da Silva... 81 Capítulo 3. Com a palavra Gabriel Soares de Sousa: uma leitura a partir de seus textos... 88 3.1. O cortesão Gabriel Soares... 88 3.2. Literatura de viagem... 103 3.3. O texto e a História... 106 3.4. Um contexto a servir ao texto... 108 3.5. Gândavo, Cardim e Soares... 111 3.6. Gabriel Soares de Sousa, observador ou compilador?... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 133 FONTES e BIBLIOGRAFIA... 136

Nu`a mão livros, noutra ferro e aço, A uma rege e ensina, a outra fere, Mais co`o saber se vence que co`o braço. Luís de Camões

INTRODUÇÃO Esta dissertação pretende compreender a trama que encerra a escrita, a revelação e a repercussão historiográfica do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, atribuído ao colono português Gabriel Soares de Sousa. O texto que veio a constituir o Tratado permaneceu inédito durante mais de duzentos anos. Recuperado, tornou-se uma das fontes mais importantes da historiografia brasileira por constituir um verdadeiro inventário da colônia ultramarina na segunda metade do século XVI. Mas, além do conteúdo valioso do discurso, há uma biografia aventuresca a envolvê-lo, relacionando diversos aspectos presentes no processo de colonização e ainda a fascinante história da descoberta dos textos coloniais e de suas leituras a partir do século XIX. Enfim, uma trama de longa duração que circunscreve diversos personagens, contextos e acontecimentos fortuitos ou não. Remetemo-nos às palavras do historiador Paul Veyne que associa o tecido da história a uma intriga muito pouco científica, que o historiador recorta. Nossa intriga consiste em recontar a trajetória deste escrito do senhor de engenho português. A crítica histórica no Brasil se iniciou justamente com o exame do texto de Gabriel Soares, em 1838, através de um enfoque analítico até então inédito na pesquisa documental. Apresentado por Francisco Adolfo de Varnhagen à Academia das Ciências de Lisboa e, logo em seguida, ao recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o escrito ocuparia um local de destaque na construção da memória e da história nacional. E é precisamente na relação entre o texto, a imagem construída sobre o autor e os diferentes enfoques teóricos e metodológicos da pesquisa histórica dos séculos XIX e XX que buscaremos demonstrar como o discurso de Gabriel Soares oferece um leque multifacetado de interpretações possíveis. A análise ecdótica ou crítica textual tem como propósito a reconstituição de um texto original perdido com base numa tradição manuscrita ou impressa, segundo critérios científicos rigorosos. Suas origens remontam aos filólogos alexandrinos do século III a.c. e à

chamada questão homérica. Durante o período do Humanismo e da Renascença, a proliferação de obras gregas e latinas inaugurou uma nova fase da filologia clássica, trazendo à tona uma série de edições, denominadas vulgatas, que fundamentaram inúmeras impressões subseqüentes. Uma longa tradição de filólogos eruditos estabeleceu normas para a identificação da autoria e originalidade de um texto e as orientações básicas irromperam com maior ou menor ênfase em diversas épocas. Em inícios do século XIX, o filólogo alemão Karl Lachman e seus contemporâneos formularam regras sistemáticas que vieram a constituir um método de trabalho que certamente não era desconhecido de Varnhagen quando identificou a autoria do Tratado Descritivo de Gabriel Soares de Sousa. A ecdótica moderna possui inúmeras vertentes segundo as tradições consideradas em cada país. A abordagem escolhida nesta dissertação inspira-se na perspectiva ecdótica atual, que considera relevantes não apenas os aspectos filológicos, mas a história das reproduções e recepções de um códice, os aparatos críticos aglutinados ao texto, edições, notas, formatação, comentários e afins, além de perscrutar o texto pelo que ele mesmo diz e em seu contexto de produção. Ignácio Arellano descreve bem a questão em relação às crônicas da América Hispânica, destacando como a leitura de um documento histórico perdeu, durante um bom tempo, matizes de análise fundamentais por desconsiderar as características específicas das narrativas e do processo de fixação do texto. A interseção entre a análise ecdótica e a História é extremamente valorizada hoje em Portugal e na Espanha, em relação a toda produção textual contemporânea dos primeiros tempos da colonização ibérica do Novo Mundo. Seguindo esta direção, no primeiro capítulo, A historiografia e O Tratado Descritivo do Brasil em 1587, percorreremos a historiografia colonial brasileira nos séculos XIX e XX através de alguns autores representativos, observando o tratamento e a utilização dados à narrativa de Gabriel Soares. Acompanharemos

como seu escrito se insere nos estudos coloniais para analisarmos a formação da imagem do autor. No terceiro e último capítulo, Com a palavra Gabriel Soares de Sousa: uma leitura a partir de seus textos, apresentaremos novas possibilidades de interpretação do escrito do século XVI, relacionando aspectos que apontamos anteriormente como relevantes; a inserção do texto num contexto histórico específico; a aproximação com outros escritos coloniais; e a compreensão do texto como discurso que obedece a protocolos e normas para sua fixação. Como nossa pesquisa é eminentemente textual e historiográfica, nossas fontes primárias se subdividem em dois grupos. De um lado, os escritos de Gabriel Soares, especialmente o Tratado Descritivo e suas várias edições. De outro, seus comentadores, o que nos leva a um confronto comparativo, que privilegia uma seleção de obras da historiografia colonial brasileira, a serem analisadas no decorrer da nossa exposição.

CAPÍTULO 1 A historiografia e o Tratado Descritivo do Brasil em 1587 1.1. Gabriel Soares de Sousa, um quase desconhecido Quem visitar hoje a Bahia e percorrer a cidade de São Salvador, pode descer uma ladeira denominada Gabriel Soares, que liga o Largo dos Aflitos à Avenida Contorno, parar no meio do caminho e beber água fresca na Fonte do Gabriel e aproveitar para conhecer o Mosteiro de São Bento. Encontrará na capela interna uma lápide de mármore, altiva, porém simples e fria, com a seguinte inscrição: Aqui jaz um pecador. Tudo leva a crer que lá descansem os despojos do colono Gabriel Soares de Sousa. O epitáfio foi um pedido que deixou em seu testamento, lavrado em vinte e um de agosto de 1584. Mas poucas informações obterá, além de saber que se tratava de um vulto importante nos primeiros tempos da configuração da capital baiana. Qual seria sua aparência física? Gordo ou magro, alto ou baixo, como era seu corte de cabelo? Sem respostas ou imagens, talvez se suponha que fosse um homem pio e penitente ou, quem sabe, cometera muitos atos iníquos que justifiquem os termos tão incisivos em seu túmulo. O que podemos dizer é que este não era um pedido singular para as almas do século XVI e que sabemos, na verdade, muito pouco sobre quem de fato foi o autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Apresentemos então, sucintamente, os dados que marcam sua trajetória pessoal. É provável que tenha nascido, por volta de 1540, em Portugal. Embarcou, em 1569, em direção à Monomotapa, no atual Moçambique. Naquela ocasião, partiram do reino três naves com tal destino, mas somente uma chegou. Esta expedição, relatada por um contemporâneo, Diogo de

Couto, 1 arregimentou uma grande quantidade de fidalgos e nobres com interesses nas possíveis riquezas africanas. Gabriel Soares estava entre eles. As três naus que saíram de Lisboa logo se separaram. Uma retornou ao reino, não conseguindo ultrapassar as calmarias da região da linha do Equador; outra cumpriu seu trajeto e a terceira, a nau capitânia, em que embarcara se perdeu e foi dar na Bahia onde invernou. Refeita do erro de cálculo e reabastecida, ela retomou o rumo da África. Não sabemos se por ter gostado do que viu ou desconfiado da incerteza dos caminhos marítimos, o jovem Gabriel Soares preferiu ficar aonde chegou, e fez uma carreira próspera; tornou-se senhor de pelo menos dois engenhos na região do Recôncavo baiano, proprietário de éguas, bois de carros, escravos, móveis e índios forros, além de possuir grande quantidade de terras e casas na cidade de Salvador. Também participou da administração da capitania e, em 1582, assinou como vereador, o Auto de Aclamação e Juramento de Fidelidade, prestado pelo Senado da Câmara da Bahia a Filipe II da Espanha. Em 10 de agosto de 1584 redigiu o seu testamento, e no final do mesmo mês, partiu para a Europa com a finalidade de obter concessões para uma empresa em busca de riquezas pelo rio São Francisco após, portanto, uma vivência de cerca de quinze anos como morador da colônia. Mas parece que a sorte não o favorecia nas viagens. Um novo percalço no mar, obrigou-o a fundear em Pernambuco. Assim não se sabe ao certo a data em que partiu para o reino. Nem quando exatamente lá chegou. De qualquer modo, em 1587, Gabriel Soares estava em Madrid e ofereceu a D. Cristóvão de Moura, influente membro da corte de Filipe II, uma carta dedicatória de seus escritos. Apresentou um caderno contendo várias anotações e que veio a formar o Tratado Descritivo do Brasil em 1587 ou Notícia do Brasil, acompanhado, ao 1 Diogo de Couto (1542? - 1616), na Década IX, descreve que a notícia do empreendimento abalou toda Lisboa e acudiram muitos fidalgos pera se acharem nela, e tanta gente houve que sobejava pera outra armada. Gabriel Soares de Sousa, Notícia do Brasil. Comentários e notas de F. A. de Varnhagen, Manuel A. Pirajá da Silva e Frederico Edelweiss. São Paulo: Ed. Patrocinada pelo Departamento de Assuntos Culturais do M.E.C., 1974. A citação provém da Introdução elaborada por Augusto Pirajá da Silva, p.276. Todas as notas referentes ao Tratado Descritivo do Brasil em 1587 procedem desta edição.

que tudo indica, de um texto denunciador das ações da Companhia de Jesus no Brasil posteriormente denominado de Capítulos de Gabriel Soares de Sousa contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil. 2 Em dezembro de 1590, foram despachados os requerimentos de Gabriel Soares, conferindo-lhe uma série de concessões, como o título de Capitão - mor e Governador da conquista e descobrimento do rio São Francisco ; o direito de nomear, por seu falecimento, um sucessor, que gozaria dos mesmos títulos e poder; a permissão de prover todos os ofícios da justiça e da fazenda, no seu distrito; o direito de distribuir o foro de cavalheiros fidalgos a cem pessoas que o acompanhassem; e, além de vários outros itens, obteria o título de Marquês. As prerrogativas alcançadas evidenciam o êxito das negociações e articulações na corte, tanto assim que retornou à colônia em 1591, na urca flamenga Grifo Dourado, com cerca de trezentos e sessenta homens e armas. Mas, como de costume, os infortúnios no mar o acompanhavam. Ao se aproximarem da enseada de Vaza-Barris, no litoral de Sergipe, a embarcação tombou e muitos náufragos se lançaram ao mar, afogando-se nas ondas. O fôlego do fidalgo não cessou. Numa sétia, embarcação pequena da Ásia, remeteu os sobreviventes, inclusive os da fazenda real, para a Bahia, enquanto ele e outros oficiais seguiram a pé em cinco companhias. Lá chegando, o governador D. Francisco de Sousa recebeu ordens de auxiliá-lo na reorganização da conquista. Isto feito retornou ao seu engenho, no Jaguaribe. Os capitães Pedro da Cunha de Andrade e Gregório Pinheiro desistiram do empreendimento. Soares partiu com duas companhias em busca do que parece ter sido seu grande objetivo: a descoberta de minas e pedras preciosas, que naquele momento, tudo apontava se localizarem na direção das nascentes do rio São Francisco. 2 Gabriel Soares de Sousa, Capítulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao SR.D. Cristóvam de Moura contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil, com umas breves respostas dos mesmos padres que deles foram avisados por um seu parente a quem os ele mostrou. Introdução do Padre Serafim Leite. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 62: 340-381, 1942.

Contudo, dessa vez o destino lhe foi fatal: não se sabe se por doença ou por vingança - numa das versões os índios aprisionados se rebelaram e ele foi ferido - faleceu antes de ter visto a famosa Lagoa Dourada ou Eldorado, no mesmo lugar onde seu irmão João Coelho de Sousa, que passou três anos no sertão baiano, sucumbira tempos antes. 3 O caderno apresentado por Gabriel Soares em Madrid, que veio a constituir um dos registros mais importantes do primeiro século de colonização, requer duas considerações preliminares. Em primeiro lugar a questão da obra em seu contexto espaço-temporal de produção, em que se postulam as perguntas elementares de uma análise documental: a quem Gabriel Soares se dirigira, como se apresentou, quais foram seus pares nesta aventura da escrita? A historiografia recente articula estas perguntas a uma problemática em fase atual de aprofundamento, que diz respeito à abordagem do período da União Ibérica como específico na história das relações político-administrativas, entre metrópole e colônia. No outro encaminhamento persiste uma questão comum a maior parte dos relatos coloniais: a defasagem temporal entre o lugar de produção, descobrimento e valorização historiográfica. Esta vertente interpretativa se inicia no século XIX, com a historiografia da nação recém emancipada e segue até hoje, num refazer-se de concepções teóricas e metodológicas e conseqüente enfrentamento e absorção do documento original. A distância temporal que marca o momento da elaboração do texto do da sua recepção estabelece um vácuo, uma distensão para a compreensão do discurso colonial, que passa a ser instrumento na reconstrução ou reinterpretação de um tempo pretérito. Esta recuperação que transforma o testemunho em fonte histórica nos insere na relação entre história e memória. Relação sempre estreita que marca a leitura e o recorte que se fez sobre o texto e que permite percepções diversas tanto do período original em que foi elaborado quanto do próprio autor. 3 As informações biográficas de Gabriel Soares de Sousa provêm de F. A. de Varnhagen, Pirajá da Silva, Cláudio Ganns e José Honório Rodrigues.

Em 1914, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 4 publicou um número consagrado ao Primeiro Congresso de História Nacional, onde o Dr. Lúcio José dos Santos apresentou uma tese intitulada O Domínio Hespanhol. Com estilo personalista e aguerrido, o estudioso formado em Direito e especialista em diversos temas, além de profundo religioso, defende suas posições teóricas e metodológicas apresentando uma crítica ao que considerou uma antiga interpretação do período de união das coroas, um momento de obscurantismo, de trevas e de espera pela Restauração. Para ele, autores portugueses e protestantes possuíam uma visão sectária, uns pela tradição, outros pela oposição ao catolicismo exacerbado do monarca Filipe II. O Dr. Lúcio José considera o período como singular e que representara novos tempos promissores ao Brasil, na expansão territorial, na legislação e no culto ao patriotismo. A neutralidade científica com que pretendia abordar o tema estava longe de significar a anulação de suas posições políticas: Livres, igualmente dos ardores patrióticos dos historiadores portugueses, e dos ódios sectários dos protestantes, podemos julgar mais serenamente este passado remoto, considerando o domínio espanhol no Brasil como uma fase interessante de nossa vida colonial, que não reprimiu nem conteve, antes reforçou e acelerou a nossa marcha para a liberdade que a sete de setembro de 1822, devia coroar três séculos de lutas, de trabalhos e de sacrifícios. 5 O tom pessoal do autor não embaçou o pioneirismo e a pertinência de suas colocações. Tanto assim que uma perspectiva semelhante seria apresentada anos depois, na coleção organizada por Sérgio Buarque de Holanda, História geral da civilização brasileira. Um capítulo de poucas páginas, O Brasil no período dos Filipes (1580-1640), elaborado por Antonia Fernanda Pacca de Almeida e Astrogildo Rodrigues de Mello, dedicou-se à fase que 4 Doravante denominada apenas de Revista do IHGB. 5 Revista do IHGB. Tomo Especial. Consagrado ao Primeiro Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Parte I, 7-16 de setembro de 1914, p. 336.

os portugueses consideraram como melancólica tragédia. Os autores defenderam que Passados os 60 anos que marcaram o período dos Filipes no Brasil, transformou-se inteiramente a paisagem da colonização, como também o elemento humano da Colônia. 6 O artigo precursor indicava a época filipina como um terreno fértil em inovações, em problemáticas historiográficas e fontes a serem analisadas. Houve ausência de uma política colonial lusitana para a colônia ou uma mudança político-administrativa fundamental? Para responder a esta pergunta em aberto, o artigo apontava a necessidade de novas pesquisas. Na esteira da abordagem de Fernanda Pacca, Roseli Santaella Stella, sua orientanda no curso de Pós-graduação da Universidade de São Paulo, averiguou o que a mestra preconizara e analisou uma série de documentos no Arquivo Geral de Simancas. 7 Lá se encontram textos relativos ao período do Brasil filipino. Suas conclusões aferiram uma particularidade singular entre a autonomia portuguesa e a consciência do domínio imperial espanhol. A autora destaca a influência castelhana nas instituições, nas atividades econômicas e nas realizações culturais. A produção intelectual se evidencia também nesta fase. Os textos deixados por Gabriel Soares, Fernão Cardim, Ambrósio Fernandes Brandão, Frei Vicente de Salvador são exemplos de documentos deste período em que se esboçava a primeira escrita colonial. O período filipino vem sendo abordado como específico na historiografia colonial, o que redimensiona o escrito de Gabriel Soares bem como os de outros cronistas, situando-os num contexto administrativo, econômico, político e social de exclusivas relações de poder. O artigo O Estado no Brasil filipino - uma perspectiva de história institucional, 8 do historiador Arno Wehling aponta exatamente nessa direção. Considera o período inicial da União Ibérica, compreendendo os anos de 1580 a 1599, como a fase reativa ou preliminar do 6 Antonia Fernanda Pacca de Almeida e Mello Wright e Astrogildo Rodrigues de Wright, O Brasil no período dos Filipes ( 1580-1640). Org. de Sérgio Buarque de Holanda. História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, v.1, p.176-189, 1963, p. 187. 7 Roseli Santaella Stella, O Brasil durante el gobierno espanhol -1580-1640. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. 8 Arno Wehling, O Estado no Brasil filipino - uma perspectiva de história institucional. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 166 (426): 9-55, jan/mar. 2004.

novo governo, caracterizada pela resposta às ameaças estrangeiras e ao desregramento dos costumes. Daí a conquista do Rio Grande do Norte, os ataques a embarcações e o envio a Salvador da primeira visitação do Santo Ofício, em 1591, ano em que apareceriam as primeiras ações efetivas ou os esboços da fase proativa, quando a presença espanhola passaria a deixar sua marca peculiar de governo. Uma das ações seria, junto com a reorganização das finanças e o envio da Visitação, o apoio à expedição de Gabriel Soares em direção ao interior, devidamente incumbido de estabelecer marcos de reconhecimento e de posse nas áreas por ele exploradas. Esta política seria logo descartada em prol das áreas litorâneas e retomada apenas após a Restauração portuguesa. Ainda que o colono seja apenas tangenciado no artigo de Wehling, trata-se da primeira referência direta da relação entre os intuitos de Gabriel Soares e as especificidades de um novo período administrativo. O texto do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 foi publicado pela primeira vez pela Academia de Ciências de Lisboa em 1825. O padre Manuel Ayres de Cazal, o escritor francês Ferdinand Denis, bem como o médico e botânico Karl Friedrich Philipp von Martius atribuíram sua autoria a Francisco da Cunha, cujo nome foi encontrado gravado em uma das cópias manuscritas portuguesas. Entretanto, a inscrição é uma anotação posterior. Ademais, Francisco da Cunha foi oficial português que viveu no século XVII, quando Gabriel Soares já não mais vivia. A reconstituição da autoria e da autenticidade do documento só foi realizada por Francisco Adolpho de Varnhagen, em 1838, num estudo intitulado Reflexões críticas sobre um escrito do século XVI, 9 e significou um marco fundamental para a pesquisa histórica no Brasil. Capistrano de Abreu enfatizou a importância daquele primeiro estudo: Quando foram 9 F. A de Varnhagen, Reflexões criticas sobre o escripto do seculo XVI impresso com o título de Notícias do Brasil no tomo 3 º da Coll. De Not. Ultr. Acompanhadas de interessantes notícias bibliographicas e importantes investigações históricas. Lisboa, Typ. da Academia, 1839.

publicadas produziram o efeito de uma revelação, abriram um mundo novo às investigações de todos aqueles que se ocupavam de nossos annaes. 10 O comentário não foi excessivo, ainda eram rarefeitos os estudos documentais naquele momento. Isto sem falar do conteúdo valioso que estava a ser divulgado. O trabalho de Varnhagen representava, pois, um marco na aplicação do método crítico ao levantamento de fontes, contendo uma análise textual comparativa das cópias encontradas pelo estudioso na Europa com o texto publicado pela Academia. A apresentação das Reflexões críticas sobre um escrito do século XVI possibilitou um avanço na carreira do jovem Varnhagen. A partir dela abriram-se as portas da Academia das Ciências de Lisboa e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 11 onde seria aceito como sócio correspondente. O Parecer sobre as Reflexões foi publicado pela Revista do IHGB, em 1840, avaliando a atribuição de autoria ao apócrifo. A Comissão de Trabalhos Históricos do IHGB encarregada de examinar o estudo era composta por três membros: um sócio fundador do Instituto, Candido José de Araújo Vianna, formado em Direito por Coimbra, pertencente aos quadros dos políticos que participaram da fundação do IHGB, diretor da Comissão, futuro marquês de Sapucaí e posteriormente presidente do mesmo Instituto de 1847 até 1875; Rodrigo de Sousa da Silva Pontes, desembargador e diplomata, e o estudioso Thomaz José Pinto de Cerqueira. Eles analisaram cada argumento apresentado por Varnhagen e os julgaram concludentes. 12 Aceitaram a sugestão do futuro visconde de Porto Seguro acerca da necessidade de mudança do título de Notícia do Brasil, como fora publicado em Portugal, para Roteiro Geral e Memorial. A 10 Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Publicado no Jornal do Commercio, de 16 a 20 de dezembro de 1878. In: Ensaios e Estudos-(crítica e história). 1 ª série, Edição da Sociedade Capistrano de Abreu. Liv. Briguiet, 1931, p.127. José Honório Rodrigues afirma, na introdução que elabora para esta edição, esta importância, além de ressaltar o valor do artigo de Capistrano de Abreu que, segundo ele, por sua vez, representa o reconhecimento da importância histórica de Varnhagen. 11 A partir de então, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro será representado como IHGB. 12 Parecer acerca da obra intitulada Reflexões críticas sobre o escripto do século XVI impresso com o título de Notícia do Brasil do T.3 da Colleção de Notícias Ultramarinas por Francisco Adolpho de Varnhagen. RIHGB, Rio de Janeiro, 2: 109-112, 1840.

publicação portuguesa não estabelecia distinção ao que hoje é um consenso; o volume comporta dois textos distintos: um Roteiro Geral com largas informações de toda a Costa do Brasil e o Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua fertilidade e das notáveis partes que tem. A publicação organizada e comentada por Varnhagen, destacou cada uma das partes e apresentou como título geral o de Tratado Descritivo do Brasil em 1587. O Parecer, ao mesmo tempo em que elogiava as indicações de erros e alterações apontados na cópia ultramarina anteriormente publicada, não encerrava a discussão a respeito da autoria, pois afirmava: parece que se acha demonstrado tratar-se de Gabriel Soares. Revelava, por outro lado, certa condescendência com os erros da edição portuguesa, fazendo ressalvas de que não havia um consenso entre a ortografia e a pronúncia de diversos termos. O documento emitido pela Comissão de Trabalhos Históricos equilibra as duas partes e chega, em determinado momento, a "declarar que está mui longe de levantar querela ao ilustre autor". O que pode surpreender visto que as Reflexões marcavam a estréia de F.A. de Varnhagen nos meios de saber, aos vinte e dois anos de idade! Outros fatores deveriam determinar tal respeitabilidade, como sua filiação, os serviços já prestados na carreira das armas, além do reconhecimento obtido dentro da própria Academia das Ciências de Lisboa. Os pareceristas salientaram as citações que comprovavam o aprofundamento do estudo, elogiaram as informações sobre os manuscritos consultados, mas interpuseram também algumas observações. A primeira delas diz respeito à Varnhagen atribuir a um erro do copista o tratamento dispensado ao rei de Espanha, ora designado de Majestade, ora de Alteza. Segundo a Comissão, a confusão era própria de Soares por ser português e se encontrar em Madrid. Seguidamente, destacou que houve equívoco de Varnhagen ao aferir o local do padecimento do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, pois os autores citados em nota "são inexatos".

No mesmo ano em que Varnhagen apresentou as Reflexões críticas, 1838, o primeiro número da Revista do IHGB publicava o Extrato de um Manuscrito que se conserva na Biblioteca de S. M. o Imperador e que tem por título Descrição Geográfica da América Portuguesa, que veio a ser imediatamente identificado como referente aos capítulos 51 a 70 do Tratado de Gabriel Soares. 13 O texto fora apresentado como fonte preciosa, que fazia parte do arquivo real, mas sem identificação do respectivo autor. Coincidentemente Varnhagen se debruçava na Europa sobre o mesmo testemunho, prestando não só um serviço ao conhecimento histórico erudito, mas também à construção do jovem Império então em turbulenta afirmação. O Parecer do Instituto não deixou de distinguir divergências, embora evitasse qualquer confronto direto. É notavelmente conciliador. Não nega as afirmativas de Varnhagen ou fere os brios dos estudiosos do IHGB, nem tampouco depõe contra a edição portuguesa. Encontrava-se o sorocabano em Lisboa, não estando presente às periódicas seções do Instituto, mas desde então passou a participar ativamente das publicações da Revista, como sócio correspondente. 14 A averiguação de autoria realizada por Varnhagen constituiu, sobretudo, a efetivação do uso de um método crítico sobre um documento, enfatizando não apenas a necessidade de publicação das fontes coloniais, mas o trabalho criterioso e científico necessário para a confirmação de seu valor histórico. A autoria em si não era de todo desconhecida, mas nunca fora afirmada com tais argumentos. 15 Treze anos depois, a discussão levantada por 13 José Honório Rodrigues, História da História do Brasil. Brasiliana, Vol. 21, São Paulo: Ed. Nacional; INL, 1979, p.436. 14 Seguimos de perto o estudo sobre Varnhagem apresentado por Lucia M. P. Guimarães, História geral do Brasil in: Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, com organização de Lourenço Dantas Mota. São Paulo: Senac, 1999, págs. 77-96. José Gomes Bezerra Câmara acrescenta a descoberta do túmulo de Pedro Álvares Cabral, em Santarém, como fator a mais para o ingresso de Varnhagen no Instituto. Varnhagen: o homem e o historiador. RIHGB, Rio de Janeiro, 328:161-187, jul/set, 1980. 15 O nome de Gabriel Soares foi mencionado em algumas obras editadas em Portugal e Espanha. Uma relação destas se encontra no estudo de Cláudio Ganns, O Primeiro Historiador do Brasil em Espanhol. RIHGB. Rio de Janeiro: Dep. de Imprensa Nacional, 238: 144-168, jan/março, 1958. O levantamento de todos os testemunhos se encontra no Quadro n 2, desta dissertação, p.65.

Varnhagen resultou numa edição impressa sob sua supervisão, acompanhada de notas e comentários. Durante este período nenhuma contribuição contestou ou simplesmente comentou as investigações do jovem erudito. Em 1889, posteriormente inclusive ao próprio falecimento de Varnhagen, Guilherme Chambly Studart, Barão de Studart, estudioso da história brasileira, publicou no jornal Tribuna Commercial trechos de um livro que encontrara na Biblioteca de Lisboa denominado Descrição Geográfica da América portuguesa, que comparou com o de Gabriel Soares e concluiu que, devido a algumas diferenças, os textos seriam complementares. Em 1906, retornando a publicar o mesmo em ensaio na Revista do Instituto Histórico do Ceará, o Barão anunciou que enfim se convencera que se tratava do mesmo documento. 16 Este foi o único trabalho que manifestou dúvida consistente sobre a exegese do documento. E vale destacar que as divergências das cópias confundiram o especialista. Foi o próprio Varnhagen quem manteve acesa a pesquisa sobre a vida e a obra do colono português. Na primeira edição brasileira do Tratado, em 1851, já acrescentara ao texto uma informação biográfica do autor. Em 1858, ofereceu ao IHGB um artigo denominado Memória de Gabriel Soares de Sousa, no qual adicionava aspectos colhidos pelo jornalista e historiador João Francisco Lisboa, malgrado as divergências entre ambos, elucidando itens desconhecidos ou controversos da vida do colono português. Nele destacava que finalmente a importantíssima obra que Gabriel Soares de Sousa [...] ultimou em Madrid em 1587, é já felizmente conhecida no Universo, e o nome do seu autor, desde que com provas autênticas o restituímos à mesma obra [...]. 17 Este estudo não mereceu mais acréscimos ou revisões, sendo reimpresso em todas as edições do Tratado, com exceção apenas da de 1942, onde só estão presentes as notas elaboradas por Augusto Pirajá da Silva. 16 José Honório Rodrigues, História da História do Brasil, p.435. 17 F. A de Varnhagen, Memória de Gabriel Soares de Sousa. RIHGB. Rio de Janeiro, 21, 1858. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p.413-424, 1930, p.413.

Como a historiografia brasileira posterior abordou o período colonial e, especificamente, utilizou-se do texto então divulgado de Gabriel Soares de Sousa? O século XIX privilegiou a questão nacional como temática dos estudos históricos. Desde o concurso do IHGB, vencido por Karl Friedrich Philipp von Martius com a tese Como se deve escrever a história do Brasil, em 1847, o período colonial confirmou-se como principal objeto para a identificação da originalidade brasileira e em especial, destacando o papel das diversas etnias formadoras da nação. Assim como em outros países, o programa se materializou na busca das raízes, o que significava na perspectiva de uma história científica, a busca, a revelação e a crítica documental. Se as primeiras análises priorizavam os aspectos político-administrativos, durante o século XX, o foco se deslocou para a formação social. Entretanto, como a colônia permaneceu e permanece sendo um grande manancial para a busca das identidades ou idiossincrasias da composição nacional, os elementos formadores estiveram sempre em relevo, variando o modo como foram incorporados aos diferentes estudos. Capistrano de Abreu ainda dava os primeiros passos quando Varnhagen trazia à luz sua obra. O livro Capítulos de História colonial, publicado em 1907, marcou a historiografia brasileira como um primeiro sopro de questões que seriam valorizadas posteriormente, balançando entre o que fora e o que viria a ser a historiografia brasileira. 18 Superou a narrativa político-administrativa associada prioritariamente às análises historiográficas elaboradas no século XIX, revelando aspectos da economia e da sociedade. A tônica estava nos assuntos não enfocados pela geração predecessora, em especial, as características do povo brasileiro, dos elementos simples e do cotidiano. O livro obedeceu à cronologia, porém recortou temas e apresentou singulares reflexões. Sua análise da formação social brasileira não foi lá das mais positivas. Três séculos 18 Na véspera das comemorações dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil, o livro As identidades do Brasil (de Varnhagen a FHC), de José Carlos Reis, oferecia um balanço dos autores fundamentais do pensamento nacional. Entre eles constavam Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, entre outros. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

depois da descoberta, para Capistrano não havia, ainda, vida social no Brasil por um simples fato: porque não havia sociedade. 19 Capistrano não viu proximidade entre os elementos étnicos formadores da nação, assim como esteve atento aos conflitos sociais que permearam a história colonial. Segundo o historiador cearense, o interesse dos colonos em relação aos índios estava revelado nos atos: fornecer matéria-prima para a mestiçagem e para os trabalhos servis. Já os jesuítas possuíam outra visão da natureza humana e, portanto, procuravam ampará-los das violências dos colonos. Mas nem governo, nem jesuítas, nem colonos possuíam atitudes lineares e uma série de tumultos trágicos ou burlescos marcaram o primeiro século de colonização. 20 No capítulo destinado aos sertões, analisou o período que denomina da "invasão flamenga" destacando o tema das minas que encantaram tantos colonos: Pereceram por fim tais e tantos os vestígios de haveres a uma inteligência perspícua como a de Gabriel Soares, que abandonou o próspero engenho de Jequiriçá e perdeu anos com requerimentos junto às cortes de Lisboa e Madri para prestar à pátria o serviço de revelar-lhe as riquezas ocultas. 21 Para Capistrano, a tentativa em que se meteu não provou a verdade destes acertos, mas perpetuou-lhe o nome. Disse isto por considerar dever-se a Gabriel Soares o pioneirismo das grandes penetrações no interior. E não foi por menos, afinal, a expedição aguçara os interesses dos colonizadores como do próprio governador D. Francisco de Sousa e do sertanista Belchior Dias Moréia. Observamos que o termo pátria aparece tanto em F. A. de Varnhagen, quanto mais tarde em Capistrano de Abreu e em Lúcio José dos Santos. Podemos dizer que a terminologia 19 J. Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial. (1500-1800). Rio de Janeiro: Ed. de Sociedade Capistrano de Abreu, 1934, p.240. 20 Capistrano, Capítulos de História Colonial, p.131. 21 Capistrano, Capítulos de História Colonial, p.160.

nos indica uma visão retrospectiva e anacrônica uma vez que pátria referir-se-ia a um estágio posterior da construção da nacionalidade brasileira relativo à independência, e mais ainda, a uma concepção ideológica forjada no século XIX. Entretanto, os termos não possuem a mesma referência para os distintos autores. A pátria de Varnhagen é uma continuidade do Império lusitano; em Capistrano, trata-se de uma referencia à Coroa, segundo os colonos de um determinado período; para o Dr. Lúcio pátria é a extensão de uma visão nacionalista. Capistrano foi responsável, junto com o estudioso Rodolfo Garcia, pelas anotações à obra História geral do Brasil de Varnhagen. Conhecedor de perto de seus textos, ele apresentou, no entanto, uma referência muito lacônica a Gabriel Soares, valorizando-lhe o nome somente pela sua expedição, ainda que citasse também seu "monumental" Tratado. São nas notas à História geral que Capistrano exercitou uma de suas atividades mais efetivas e que lhe conferiu semelhança com o mestre antecessor; a exegese documental. O conhecimento de Capistrano sobre Gabriel Soares se dilui na obra, quase não há referências diretas. Segundo José Honório Rodrigues: A pressa da encomenda, a rapidez com que teve de elaborar em um ano estes Capítulos e especialmente o limite de cento e vinte páginas imposto pelo editor - e Capistrano escreveu trezentas o impediram de cumprir uma obrigação a que se sentia consciente e moralmente ligado. Só isto explica a falta das citações. 22 Discípulo de Capistrano de Abreu, Paulo Prado teve a infeliz sorte de terminar seu Retrato do Brasil pouco tempo após o falecimento do mestre que lhe havia ensinado não só o amor pela História, mas, acima de tudo, seus métodos. Seu ensaio, publicado em 1928, teve ampla discussão na época, porém não alcançou o espaço que outros membros da sua geração obtiveram na historiografia brasileira. Talvez isto se dê pelo teor singular da sua obra: um retrato triste da nação. 22 J. C. de Abreu, Capítulos de História colonial. Anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Publifolha, 2000, p.2.

Aristocrata, empresário, intelectual, mecenas e historiador, para P. Prado era necessário chafurdar nos equívocos do passado para que uma percepção realista deste permitisse a libertação de uma política torpe de sua época. Era de um nacionalismo prático e poético. Seu pequeno ensaio avaliou a chegada dos portugueses ao mundo novo a partir de preceitos nietzschinianos, a Vontade individual suplantando a Obediência cristã, 23 além de enfatizar aspectos ignóbeis da natureza humana, como a cobiça e a luxúria, como motores da história. Esta vontade de poder nos imigrantes ingleses que chegaram no Mayflower estaria aliada ao utilitarismo, 24 contrariamente ao que aconteceu no trópico. O olhar de Gabriel Soares foi extremamente útil na afirmação das teses de Paulo Prado, visto que seus relatos evidenciam pormenores da estranheza dos conquistadores e da luxúria a que se entregaram na Terra de Vera Cruz. Segundo P. Prado, Gabriel Soares foi um dos mais sagazes observadores do século. 25 Dele obtêm subsídios como os que dizem respeito ao Caramuru, por exemplo, evidenciando a transformação que se dava com os primeiros homens brancos aqui advindos e como se mesclavam culturalmente. Cita partes em que o cronista relata os costumes dos tupinambás, para ressaltar o ambiente que era encontrado: Do contato dessa sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu surgiram as nossas primitivas populações mestiças. 26 Retira de Gabriel Soares, ainda, o termo para definir as ações dos colonizadores com suas múltiplas variações sexuais descritas pelas Ordenações do Santo Ofício, a pedofilia, o pecado nefando, as homilias, enfim, tudo sujidades. 27 Por outro lado, para Paulo Prado, Gabriel Soares também era protagonista da história da cobiça, ao lado de Francisco Bruza de Espinhosa (que acompanhou João de Aspicuelta 23 Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Carlos Augusto Calil (org.). 8 a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.54. 24 P. Prado, Retrato do Brasil, p.132. 25 P. Prado, Retrato do Brasil, p.74. 26 P. Prado, Retrato do Brasil, p.76. 27 P. Prado, Retrato do Brasil, p.81.

Navarro), de Vasco Rodrigues, de Sebastião Fernandes Tourinho e Antonio Dias Adorno, todos homens que partiram atrás de riquezas. 28 Porém, P. Prado identificou neles o mérito de um povoamento e exploração organizados, diferentemente dos castelhanos em suas entradas sangrentas pelo continente. Propôs, inclusive, uma divisão das bandeiras na ótica de Capistrano, organizando-as e esquematizando-as. No pandemônio dos primeiros momentos da colonização, escapavam aos vícios, duas categorias: os jesuítas e os burocratas. Os primeiros pelo mérito que lhes era imbuído e por representarem o que denominou de poder moderador afirmando que a influência dos jesuítas foi sempre ativa, direta, constante, exercendo-se em cada família e cada indivíduo para ser eficaz sobre a coletividade. 29 Os burocratas, que seriam aqueles que atuavam em órgãos oficiais, não seriam contaminados pelo desregramento geral devido à apatia administrativa. É extremamente imprecisa esta aferição, pois as esferas do público e do privado estão imbricadas, como destacou Fernando A. Novais. 30 De qualquer modo, a análise de Paulo Prado enfatiza a existência de uma clara distinção entre a atuação dos religiosos e aquela empreendida pelos colonos. Segundo P. Prado, como conseqüência da luxúria e da cobiça, viria a tristeza ou melancolia, e seguindo este encadeamento lógico, existiriam povos alegres e povos tristes. No Brasil, ao contrário da geografia humanista que associa clima quente à alegria, teríamos em todo o território a tristeza, à exceção do carioca marítimo e globalizado e do cavalheirismo gaúcho. Admira-nos sua posição contrária ao senso comum atual, pois considerava que o alemão era jovial e o inglês alegre, frente ao brasileiro, taciturno e submisso. 31 Seja como for 28 Para maiores detalhes de cada expedição o organizador oferece notas explicativas, p. 98. 29 P. Prado, Retrato do Brasil, p.107. 30 Fernando A. Novais, Condições de privacidade na colônia, p.13-39. In: Laura de Mello e Souza (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 31 Interessante notar que aparece em Varnhagen o tema da tristeza de Paulo Prado: Apesar de tanta vida e variedade de matas-virgens, apresentam elas um aspecto sombrio, ante o qual o homem se contrista, sentindo que

P. Prado valorizou o Tratado de Gabriel Soares como fonte, certamente sempre para reforçar sua singular interpretação o que não deixa de ser importante, pois revela uma leitura específica que destaca os aspectos da estranheza conquistadora nas palavras do cronista. No mesmo ano do lançamento da obra de Paulo Prado, 1928, o jornal O Brasiliense de Salvador publicou um pequenino artigo de uma lauda, anônimo, intitulado O jazigo de Gabriel Soares de Sousa. 32 O texto era direto, contundente e seu objetivo consistia em confirmar o fato de que fora encontrado na catedral baiana o túmulo do mallogrado avoengo autor do Tratado Descritivo do Brasil pelo Dr. Guilherme Foeppell. A contribuição não assinada, confirmava o falecimento de Gabriel Soares de Sousa longe da capital baiana, em lugar desconhecido e longínquo e o translado dos seus despojos em 1596. Declarava ainda que seu objetivo fora alimentar a investigação histórica que pouco chamava a atenção naquele período e afirmava que nutria a persuasão de haver deparado com o determinado local do falecimento de Gabriel Soares. Assim, estavam sendo retificadas as verificações de Varnhagen setenta anos após aquela breve biografia. Naquela ocasião, apesar de não haver assinado o artigo, seu autor prontificava-se a prestar as informações que lhe fossem solicitadas por estudiosos competentes, já que alguns pontos da biografia de Soares permaneciam obscuros e controversos. Tratava-se de um exemplo de valorização da pesquisa histórica aglutinando uma série de procedimentos como a erudição, o cotejamento de fontes, a descoberta destas em arquivos e coleções e a verificação física e pessoal. O pesquisador anônimo foi revelado, em 1958, pelo estudioso Claudio Ganns: tratava-se de Teófilo Azevedo, que publicara o mesmo texto na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. A investigação realizada por Teófilo de Azevedo tanto o coração se lhe aperta, como no meio dos mares, ante a imensidade do oceano. História geral do Brasil. 4 ª ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d., Tomo 1, p.143. 32 Teófilo Azevedo, O jazigo de Gabriel Soares de Sousa. RIHGB da Bahia. Salvador, 54(2): 257-261, 1928.

tempo decorrido da Memória de Varnhagen, enfatizava uma concepção da pesquisa histórica predominante no século antecedente. O século XIX é, sobretudo, o século do início da historiografia narrativa ou moderna, seus antecedentes se encontram num amálgama de tendências que remetem ao Renascimento. No alvorecer da Idade Moderna, o interesse pela Antiguidade Clássica conduz à investigação crítica dos documentos antigos. A obra De re diplomatica, de 1681, do beneditino francês Jean Mabillon representa uma referência histórica na genealogia do método erudito. Entretanto, o interesse pela reconstituição do passado remonta aos próprios tempos antigos quando já se distinguem os itens que diferenciam a História da obra dos antiquários, amadores ou cronistas. Como expõe Arnaldo Momigliano, 33 a História serve à cronologia, apresenta fatos e dados numa argumentação explicativa em vista de um problema e, sobretudo responde a uma finalidade contemporânea. Os segundos utilizam um plano lógico e sistemático para apresentar os materiais reunidos sobre um tema ou sujeito e a pesquisa possui um fim em si mesma. A história produzida no século XIX herda concepções da antiga história erudita e dos antiquários, provenientes de séculos anteriores. Porém, novas questões se impõem: como a integração do conhecimento a um sentido e papel público. O estabelecimento da História como disciplina ainda requer que se considere a disputa de poder sobre o passado. 34 33 Arnaldo Momigliano, L histoire ancienne et l Antiquaire in: Problèmes d`historiographie. Ancienne et Moderne. Paris: Éditions Gallimard, p. 244-293, 1983. 34 A complexidade deste período é ressaltada em diversos autores como Francisco Iglesias em História e Ideologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 90. Arno Wehling em A invenção da História: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: UFF-UGF, 1994. Na tese de Lucia M. Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, Rio de Janeiro, 156 (380), jul./set, 1995. Manuel Luis Salgado Guimarães analisando A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os temas de sua historiografia: fazendo a história nacional, na publicação organizada por Arno Wehling, Origens do IHGB. Rio de Janeiro: 21-42, 1989. E no artigo Entre amadorismo e profissionalismo: as tensões da prática histórica no século XIX, publicado pela Revista Topoi, Rio de Janeiro, v.3, p.184-200, 2002. Para a parte historiográfica, nos baseamos, entre outros, em Georges Le Fevre, El nascimento de la historiografia moderna. Costa Roca: Barcelona, 1974; e ainda em Guy Bourdé & Herve Martin, As Escolas históricas. Lisboa: Publicações Europa América, 1996.