As desigualdades sociais e a criminalização do abortamento induzido agravam os riscos de Mortalidade Materna no Brasil. Mario Francisco Giani Monteiro UERJ Airton Fischmann Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul
RESUMO A mortalidade materna é elevada em populações com condições socioeconômicas desfavoráveis. Estes riscos são agravados pela criminalização do abortamento induzido. Objetivo: Produzir evidências que a criminalização do aborto induzido agrava os riscos de complicações em consequência de abortamentos realizados em condições inseguras, sem atenção médica e hospitalar adequados em populações com condições socioeconômicas desfavoráveis. Método: para medir os diferenciais foram estimadas Taxas de Mortalidade Materna em Consequência de Abortamento /1.000.000 de mulheres de 15 a 49 ano nas Brandes Regiões do brasil, e a Mortalidade Materna Proporcional dos óbitos em consequência de abortamentos sobre o total das causas de Mortalidade Materna, foram utilizadas as seguintes fontes de dados: IBGE Estimativas populacionais estratificadas por idade e sexo pelo MS/SGEP/Datasus, e o MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM para os dados de óbitos maternos. Resultados. No período 2011 a 2013, as Taxas de Mortalidade Materna em consequência de abortamento foram estimadas em 3,8/1.000.000 na Região Norte e em 1,1/1.000.000 na Região Sul No período 2011-2013, na Região Norte, a proporção da mortalidade em consequência de abortamento sobre o total de óbitos maternos para mulheres brancas foi de 4,2% e para mulheres negras foi de 4,9%.
1 - INTRODUÇÃO A mortalidade materna pode ser considerada um excelente indicador de saúde, não apenas da mulher, mas da população como um todo. Por outro lado, é também um indicador de iniquidades, pois não somente é elevada em áreas subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, quando comparada aos valores de áreas desenvolvidas, quanto, mesmo nestas, existem diferenças entre os diferentes estratos socioeconômicos (LAURENTI et al. 2004). Melhorar a saúde materna é o desafio contido no objetivo 5 de desenvolvimento do milênio: Metas para o Objetivo 5 - Reduzir em três quartos, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade materna. - Alcançar, até 2015, o acesso universal à saúde reprodutiva. - Promover, na Rede do Sistema Único de Saúde (SUS), cobertura universal por ações de saúde sexual e reprodutiva até 2015 (PNUD, 2015). Na sua maioria, as mortes maternas são evitáveis. Mais de 80% das mortes maternas são causadas por hemorragias, sépsis, aborto em condições de risco, obstrução do parto e doenças hipertensivas da gravidez. A grande maioria destas mortes poderia ser evitada, se as mulheres tivessem acesso a serviços de saúde, equipamento e material adequados bem como a pessoal de saúde qualificado (ONU, 2010). Mulheres sem condições de acesso a serviços médicos e hospitalares (em clínicas particulares clandestinas de boa qualidade, de elevado custos, porém de risco de complicações e morte bem mais reduzidas, recorrem a práticas domésticas de alto risco. Algumas dessas práticas de maior risco são: traumas voluntários (quedas, socos, atividade físicas excessivas), substâncias cáusticas inseridas na vagina (cloro, cal, sais de potássio), objetos físicos inseridos no útero (cateteres e objetos pontiagudos, como arame, agulhas de tecer e cabides), entre outras práticas, que causam infeções e hemorragias graves, perfuração do útero e até mesmo o óbito materno (FEBRASGO, 2009).
O Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em sua 11ª sessão ordinária, aprovou no dia 17 de junho de 2009, por consenso, uma resolução que reconhece a morbi-mortalidade materna evitável como uma questão de direitos humanos. Mais de 79 Estados Membros das Nações Unidas reconhecem que a questão da saúde materna é um desafio para o exercício dos direitos humanos e que os governos devem intensificar esforços para diminuir as altas e inaceitáveis taxas globais (MELLO e GALLI, 2009). No entanto a diminuição da taxa de mortalidade materna em consequência de abortamento pode estar associada a diversos fatores, como o aumento da escolaridade da população feminina, a redução da taxa de fecundidade total e a maior cobertura das medidas anticoncepcionais, que diminuíram o número de gravidezes indesejadas (ver Tabelas 1 e 2). Tabela 1 Escolaridade da população de 18 a 24 anos Brasil, Censo 2000 e Censo 2010 Escolaridade 2000 2010 Sem instrução/1º ciclo fundamental incompleto 1496439 717480 1º ciclo fundamental completo/2º ciclo incompleto 3301826 1230157 2º ciclo fundamental completo ou mais 6784381 9174124 Fonte: : IBGE. Censos Demográficos, 2000 e 2010 Pode-se ver na TABELA 2, a seguir, que a cobertura de utilização de anticoncepcionais pela população feminina foi ampliada entre 1996 e 2006, como demonstra a PNDS 2006: a proporção de mulheres unidas que não usavam nenhum método passou de 23% para 19%, e a proporção de mulheres sexualmente ativas não unidas que não usavam nenhum método passou de 45% para 25%, diminuindo o número de gravidezes indesejadas (PNDS, 2006).
TABELA 2 - Porcentagem de uso atual de métodos anticoncepcionais USO ATUAL * Todas as mulheres Mulheres unidas Sexualmente ativas não unidas* 1996 55% 77% 55% 2006 68% 81% 75% *Nos últimos 12 meses. Fonte: Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher 1996 e 2006. Deve-se destacar também um aumento significativo na utilização do misoprostol (Cytotec) na indução do abortamento, que permite uma interrupção de gravidez mais segura, com menos complicações como infecções e hemorragias graves, perfurações do útero e riscos menores de mortalidade materna. 2 OBJETIVO Produzir estimativas de taxas de Mortalidade Materna em consequência de abortamento em mulheres de 15 a 49 anos, e da mortalidade proporcional em consequência de abortamento sobre o total de óbitos maternos para mulheres brancas e mulheres negras nos triênios 2003-2005 e 2011-2013, e assim demonstrar que a criminalização do abortamento induzido agrava os riscos de complicações em consequência de abortamentos realizados em condições inseguras, sem atenção médica e hospitalar adequadas.
3 - METODOLOGIA 3.1 - As Taxas de Mortalidade Materna Anual em consequência de abortamento foram estimadas pelo número médio anual dos óbitos maternos em consequência de abortamento x 1.000.000 mulheres de 15 a 49 anos nos triênios 2003-2005 e 2011-2013 para as cinco Grandes Regiões do Brasil. 3.2 - As fontes de dados utilizadas são descritas a seguir. 3.2.1 - Para dados de população a fonte é o IBGE - Estimativas preliminares para os anos intercensitários dos totais populacionais, estratificadas por idade e sexo pelo MS/SGEP/Datasus. Os dados de população para 2013 foram estimados a partir das estimativas para 2011 e 2012. 3.2.2 - Para os dados de óbitos maternos a fonte é MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM. 3.2.3 - Para as estimativas da Mortalidade Proporcional (%) dos óbitos em consequência de abortamentos sobre o total de óbitos maternos de mulheres de 15 a 49 anos a fonte é o MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM.
4 - RESULTADOS 4.1 Taxas de Mortalidade Materna em consequência de abortamento em mulheres de 15 a 49 anos. O Gráfico 1 mostra as altas taxas de mortalidade materna em consequência de abortamento em 2003-2005 na Região Norte (4,2 óbitos/1.000.000 de mulheres) e Região Nordeste (3,6 /1.000.000), contrastando com riscos mais baixos na Região Sudeste (2,2 óbitos maternos/1.000.000 de mulheres). Já no triênio 2011-2013, estas taxas são bem mais baixas em todas as Grandes Regiões do Brasil. Mas esta redução de risco é menor na Região Norte, que diminui pouco, de 4,2/1.000.000 para 3,8 óbitos/1.000.000 de mulheres. Neste triênio de 2011-2013, dois fatos chamam a atenção: - As Regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste apresentam o mesmo risco de mortalidade materna em consequência de abortamento, de 2,2 óbitos/1.000.000 de mulheres. - De 2003-2005 para 2011-2013, a Região Sul diminui para quase um terço o risco de mortalidade materna em consequência de abortamento, de 3,0/1.000.000 para 1,1 óbitos/1.000.000 de mulheres. GRÁFICO 1 5.0 4.0 3.0 2.0 1.0 Taxas de mortalidade materna anual em consequência de abortamento x 1.000.000 mulheres de 15 a 49 anos. Brasil e Grandes Regiões, 2003 a 2005 e 2011 a 2013 4.2 3.8 3.6 3.0 2.5 2.6 2.2 2.2 1.1 2.2 0.0 1 Região Norte 2 Região Nordeste 3 Região Sudeste 4 Região Sul 5 Região Centro- Oeste 2003-2005 2011-2013 Fonte dos dados: MS/SVS/CGIAE - SIM e IBGE - Censos Demográficos de 2000 e 2010.
4.2 Mortalidade proporcional da mortalidade em consequência de abortamento sobre o total de óbitos maternos para mulheres brancas e para mulheres negras. Triênios 2003-2005 e 2011-2013. São altamente relevantes as mudanças do triênio 2003-2005 para o triênio 2011-2013, tendo havido uma redução da participação proporcional da mortalidade em consequência de abortamento sobre o total de óbitos maternos, para mulheres brancas e para mulheres negras. Há, no entanto, uma desigualdade nesta redução: enquanto as mulheres brancas diminuíram sua participação da mortalidade em consequência de abortamento sobre o total de óbitos maternos de 6,1% em 2003-2005 para 4,2% em 2011-2013, as mulheres negras diminuíram neste mesmo período de 5,9% para 4,9%. Com isso as mulheres negras passaram a apresentar sua participação da mortalidade em consequência de abortamento sobre o total de óbitos maternos numa proporção maior que as mulheres brancas, já que a redução desta participação foi de 31% entre as mulheres brancas e de apenas 17% para mulheres negras. GRÁFICO 2 Mortalidade proporcional (%) dos óbitos em consequência de abortamentos sobre o total de óbitos maternos de mulheres de 15 a 49 anos. Brasil, 2003 a 2005 e 2011 a 2013 7.0% 6.0% 5.0% 4.0% 3.0% 2.0% 1.0% 0.0% 6.1% 5.9% 4.9% 4.2% 2003-2005 2011-2013 Brancas Negras Fonte dos dados primários: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM
5 - DISCUSSÃO E CONCLUSÃO. O quinto Objetivo do Milênio é melhorar a saúde materna, reduzindo a mortalidade materna em 75% até 2015. Entretanto, o ritmo das medidas adotadas pelos países latino-americanos mostra que esse objetivo não foi atingido. É uma hipótese razoável, admitir que a penalização do aborto aumenta os riscos de mortalidade materna, mas não de maneira igual para todas as mulheres: a lei penaliza mais duramente as mulheres das Regiões Norte e Nordeste e as mulheres negras, que precisam recorrer ao aborto inseguro. O abortamento induzido é aceito apenas em casos restritos no Brasil, e o resultado é que mais de 600.000 abortamentos foram induzidos anualmente entre 2011 e 21013 (segundo a estimativa mais conservadora, representada por valores mínimos), demonstrando que a ameaça de serem presas pela lei que as transforma em criminosas, a interrupção voluntária da gravidez ainda é largamente praticada em nosso país. Assim, este estudo sugere que a descriminalização do abortamento induzido permitiria a redução de riscos de complicações e mortalidade materna por gravidez que termina em aborto, principalmente entre a população feminina que vive em condições socioeconômicas insatisfatórias. 6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. LAURENTI, R. et al. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Rev. bras. epidemiol., São Paulo, v. 7, n. 4, p. 449-460, 2004. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/s1415-790x2004000400008. PNUD. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Metas do ODM 5. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 2015. Disponível em http://www.pnud.org.br/odm5.aspx
ONU - Objectivo de Desenvolvimento do Milénio 5. Melhorar a Saúde Materna. Publicado pelo Departamento de Informação Pública da ONU DPI/2517E setembro de 2010. Disponível em https://www.unric.org/pt/objectivos-de-desenvolvimento-do-milenio-actualidade/27669 FEBRASGO. Análise Situacional do Aborto Inseguro no Brasil. Documento coordenado pela FEBRASGO em parceria com o IPAS/Brasil, CEMICAMP, BEMFAM, CCR e Católicas pelo Direito de Decidir. 2009. Disponível em http://www.febrasgo.org.br/site/?p=567 MELLO, M. E. V. e GALLI, B. Mortalidade Materna e Aborto Inseguro: uma questão de direitos humanos das mulheres. IPAS Brasil, Rio de Janeiro. 2009. Disponível em http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/660_781_mortalidadematernadh.pdf