PALAVRAS-CHAVE: democracia; liberalismo; povo.



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Transcrição:

QUAL DEMOCRACIA? Daury César Fabriz 1 RESUMO O presente estudo centra-se na análise da democracia moderna, tendo por base, as críticas à Democracia Liberal realizada por Schimit, confrontando essa análise com a idéia de Democracia que hoje vem sendo construída no mundo contemporâneo. A partir da compreensão de povo formulada por Müller, busca-se verificar as novas tendências do direito político no âmbito do Estado Democrático de Direito. PALAVRAS-CHAVE: democracia; liberalismo; povo. 1 INTRODUÇÃO Aquestão da democracia tem sido, na atualidade, retomada com vigor, pois vem sendo alvo de atenções e estudos de vários segmentos da sociedade que têm se mobilizado em torno dessa idéia, na busca por direitos, por maior participação na vida pública e por justiça social. A expansão dos direitos de cidadania e as novas exigências do mundo moderno obrigam-nos a uma avaliação das reais dimensões que toma hoje o regime democrático no âmbito do Estado nacional. Conforme indica José Luiz Quadros de Magalhães, 2 a idéia de democracia vincula-se à idéia de democratização do Estado, implicando a idéia de representação em alguns órgãos estatais. No entan- 1 Advogado, Mestre e Doutor em Direito Constitucional e Professor da FDV e da UFES. 2 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder municipal: paradigmas para o Estado constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 39. revista_depoimentos_07_revisao.p65 57

DAURY CÉSAR FABRIZ to a democracia direta, segundo alguns autores, torna-se, até certo ponto, inviável, na medida em que as populações nas grandes cidades contemporâneas apresentam-se em grandes proporções. Por outro lado, a adoção de mecanismos de democracia semidireta, como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de leis e o veto popular, muitas vezes são utilizados como formas de manutenção de governos autoritários no poder. A palavra democracia pertence ao vocabulário ideológico, mas tem também um conteúdo analítico atestado pelo lugar que ocupa no vocabulário dos filósofos, dos politicólogos, dos sociólogos e dos juristas, principalmente os constitucionalistas. Assim, uma primeira questão, a ser inserida na fase introdutória deste estudo é saber se se utiliza a palavra no mesmo sentido quando se diz que a Atenas do século V era uma democracia e quando se fala hoje das grandes democracias ocidentais. As diferenças saltam aos olhos. O regime ateniense distinguia-se pelo caráter direto do governo popular. Era a assembléia dos cidadãos, cujo número nunca excedeu 20 mil pessoas, que decidia diretamente pela pluralidade dos sufrágios sobre os negócios públicos. 3 Na clássica Atenas, a cidadania era restrita aos homens livres, que eram minoria, com a exclusão dos escravos e metecos. É verdade que os magistrados exerciam uma influência maior sobre a direção do Estado. Não eram, como Rousseau procurou por vezes nos fazer crer, simples empregados, mas sim, muitos deles, demagogos, isto é, empresários políticos. No entanto, ressalvadas algumas situações, Atenas era uma democracia direta, onde o conjunto dos cidadãos, que constituíam apenas uma minoria da população, exercia a soberania. Benjamin Constant opôs radicalmente essa forma de democracia à que se observa nas instituições políticas da Europa moderna, caracterizada por uma forma representativa e pluralista. Tal forma democrática presta-se menos a instituir o reino de uma muito hipotética vontade geral, do que a agenciar ou tramar mecanismos de controle pelos quais os governantes são mantidos com réde- 3 BOUDON. R; BOURRICAUD. F. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993, p. 129. 58 revista_depoimentos_07_revisao.p65 58

Qual democracia? as mais ou menos curtas pelos governados. Esse regime político associa-se a um Estado social caracterizado por uma divisão social do trabalho muito desenvolvida pela existência de uma sociedade civil, em que os burgueses dão expressão legítima à diversidade de seus interesses e de suas opiniões. 4 Com essa distinção entre democracia direta e democracia representativa, Benjamin Constant visou desqualificar o absolutismo que ele detectava na concepção russoniana da vontade geral, com suas reminiscências romanas e espartanas, e opor a essa concepção uma outra prática, sensata, da democracia à inglesa. Podese chamar liberal a concepção defendida por Benjamin Constant, que toma como referência os modelos inglês e americano, e radical a que ele atribui a Rousseau. Esse conflito diz respeito tanto aos princípios da organização política quanto às modalidades da ordem institucional. As democracias são levadas a arbitrar, do ponto de vista da hierarquia dos valores cuja realização elas propõem, entre os três termos da divisão francesa liberdade, igualdade, fraternidade. A democracia liberal dá prioridade à liberdade, entendida como independência, e não interferência, da autoridade na esfera dos interesses privados salvo por motivo de utilidade pública devida e contraditoriamente reconhecida. A igualdade, entendida como ausência de privilégios, é valorizada na medida em que aparece como condição favorável à realização da independência e da autonomia pessoais. No que se refere à fraternidade, exige uma comunidade politicamente solidária, resultante mais do respeito e da consideração que se atribuem aos indivíduos iguais e livres do que de sua fusão ou de sua assimilação, tidas como suspeitas e ilusórias. De acordo com a hierarquia dos valores característicos de uma democracia radical, é a igualdade que tem prioridade. A liberdade é considerada suspeita em razão de suas origens aristocráticas. A fraternidade, em lugar de ser aproximada à cooperação e ao contrato, é tida como sinônimo de civismo; é a unidade de um organismo 4 Ibidem, p. 128. 59 revista_depoimentos_07_revisao.p65 59

DAURY CÉSAR FABRIZ político, em que as diferenças são toleradas somente se não colocarem em perigo a solidez de um tecido social homogêneo. Chantal Mouff, 5 em relação à democracia radical, nos coloca a seguinte questão: a democracia radical é moderna ou pós-moderna? Nos desdobramentos argumentativos, em busca de uma solução à proposição, especula a citada autora se, nos anos crepusculares do século XX, será de alguma forma significativo invocar os ideais do Iluminismo que subjazem ao projeto de transformação da sociedade. Em resposta, diz que, sem dúvida, estamos a viver a crise do imaginário jacobino que, de diversas formas, caracterizou a política revolucionária dos últimos duzentos anos. No entendimento de Chantal Mouff, no centro do conceito de modernidade política, é importante distinguir duas tradições, a liberal e a democrática, as quais só foram articuladas no século XIX e, portanto, não estão necessariamente relacionadas sob qualquer forma. Ainda segundo Mouff, seria um erro confundir modernidade política com modernidade social no processo de modernização levado a cabo sob o crescente domínio das relações de produção capitalistas. Nas palavras da autora: Se não conseguimos traçar esta distinção entre democracia e liberalismo, entre liberalismo político e liberalismo econômico; se misturamos todas estas noções sob a designação de liberalismo, então, sob o pretexto de defendermos a modernidade, seremos levados a uma apologia pura e simples das instituições e práticas das democracias ricas do Atlântico Norte que não deixa espaço para uma crítica que nos permita transformá-las. 6 Chantal Mouff 7 propõe um confronto com o liberalismo burguês pós-modernista, lançando, então, em perspectiva um projeto de uma democracia radical e plural, propugnando uma reformulação do projeto socialista que evite simultaneamente as armadilhas do socialismo marxista e da social-democracia. Nesses termos, um tal projeto, segundo a citada autora, poderia ser definido simultaneamente como moderno e pós-moderno, perseguindo o não proje- 5 MOUFF, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 21. 6 MOUFF, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 22-23. 7 Ibidem, p. 23. 60 revista_depoimentos_07_revisao.p65 60

Qual democracia? to realizado pela modernidade e, ao contrário de Habermas, verificando que as searas epistemológicas do Iluminismo já não têm qualquer papel a desempenhar no âmbito deste projeto. Em seu artigo Teoria Política, 8 ao estabelecer uma análise da democracia contemporânea, com e contra Carl Shmitt, Chantal Mouff indaga sobre a natureza da democracia pluralista, ao mesmo tempo em que investe na propalada vitória definitiva da democracia liberal, entendendo que foi no ocidente que se realizou a articulação entre liberalismo e democracia, que deu origem à democracia pluralista. É o produto de uma história, de uma cultura e de toda uma série de condições que não são fáceis de reproduzir. Ela segue afirmando que Um tal modelo é certamente universal, mas sua universalidade reside no fato de que ele pode ser universalizado, o que não significa autorizar a sua instauração pela força. É necessário desconfiar da sua instauração pela força. É necessário desconfiar de um universalismo que seria a negação do pluralismo e que, em nome de valores universais, objetivasse, de fato, impor sua própria visão particular. 9 Carl Schmitt 10 estabelece que, com a crise do Estado liberal burguês, ocorrem, no fluxo, três crises: a crise do Estado moderno, a crise da democracia e a crise do parlamentarismo. Observa-se, através da leitura de Teoria de la Constitucion, de Carl Schmitt, que o Estado liberal burguês traz na sua essência uma contradição entre o princípio democrático e o princípio liberal, à qual já nos referimos através das indicações de Chantal Mouff. Esta contradição é melhor compreendida a partir da Primeira Grande Guerra Mundial. Como veremos em capítulo dedicado às suas análises, Schmitt destaca constantemente esta contradição, realizando, a partir desta brecha, uma crítica ao Estado liberal burguês. O núcleo essencial do liberalismo é a defesa da pessoa humana e seus direitos fundamentais frente ao Estado. A liberdade do indivíduo é, em princípio e por natureza, ilimitada. O poder do 8 Idem. Teoria política. In: Caderno da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 2, p. 87-107, jul.-dez. 1994. 9 MOUFF, Chantal. Teoria política. In: Caderno da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 2, p. 87-107, jul.-dez. 1994. p. 97-98. 10 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1927. 61 revista_depoimentos_07_revisao.p65 61

DAURY CÉSAR FABRIZ Estado é, em contrapartida, limitado. Por esta razão, é preciso dividi-lo em uma série de poderes, de competências circunscritas, de modo que uns e outros estabeleçam freios e contrapesos, garantindo, assim, a liberdade individual. Já a democracia, por sua vez, não repousa na liberdade individual, mas no pensamento de igualdade. Não se trata de igualdade humana de maneira geral, uma vez que esta também corresponde ao princípio da liberdade, na medida em que a afirmação de que todos os homens são iguais não se pode induzir a qualquer forma política. A igualdade democrática não é, portanto, uma igualdade geral humana, mas uma igualdade baseada no sentido de pertencer a um povo determinado. Na democracia clássica, os gregos não eram iguais aos bárbaros. Dessa forma, o elemento que determina que um indivíduo pertence a um determinado povo também é o elemento que determina a homogeneidade substancial desse povo. Tal elemento pode ser de índoles diversas raça, religião, cultura, tradições comuns, classe econômica e, ao alcançar um nível tal de densidade e intensidade, determina ao agrupamento os amigos e os inimigos. 11 Assim, a partir da Revolução Francesa, o elemento que motiva a homogeneidade substancial do povo é o fato de os indivíduos pertencerem a uma mesma nação. Sua igualdade democrática se funda, assim, na homogeneidade nacional, logo nação francesa é uma criação dos revolucionários franceses. No curso da história constitucional européia, a democracia demonstra uma especial característica para unir-se com tendências políticas mais diversas e heterogêneas, por exemplo: com o socialismo, formou a social-democracia; com o liberalismo, confundiu o Estado liberal; Napoleão III foi confundido com uma monarquia conservadora e racionária. Isto leva Schmitt a compreender a democracia como um regime sem conteúdo político algum, sendo tão só uma forma de organização. 12 Identifica-se, assim, um dos motivos da crise do Estado moderno: a democracia de massa não pode realizar qualquer forma estatal, 11 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Direito Privado, p. 263. 12 SCHMITT, Carl. apud CAAMAÑO MARTINEZ, José. El pensamiento jurídico-político de Carl Schmitt. La Coruña: Moret, 1950. p. 72. 62 revista_depoimentos_07_revisao.p65 62

Qual democracia? tampouco qualquer Estado democrático. Outro motivo, que anteriormente já mencionamos, é a antítese entre liberalismo e democracia. O contraste insuperável entre democracia e liberalismo é, em última instância, segundo este autor, um contraste insuperável de consciência humana individual e homogeneidade democrática. Este contraste manifesta-se em múltiplos e importantes atos da vida política estatal. O voto secreto é, por exemplo, uma garantia da liberdade da pessoa humana que advém do princípio liberal, mas que se encontra em contradição com o princípio democrático, na medida em que o liberalismo dissolve a vontade pública em uma soma de vontades privadas. Mas a vontade política é a vontade pública. O povo, dessa maneira, torna-se um conceito de direito público, e o público somente se realiza na esfera da publicidade. Por isso, a aclamação, e não a votação secreta, é um procedimento autenticamente democrático. 13 Em Schmitt, a democracia se define como a identidade de governantes e governados. A democracia consiste no fato de que os que mandam são os mesmos que obedecem. Assim, a democracia apóia-se numa série de identidades: identidade de governantes e governados, de dominados e dominadores, de povo e parlamento, de maioria e minoria, de Estado e povo, de quantitativo (maioria) e qualitativo (justiça e lei). No entanto adverte Schmitt que estas identidades não são mais que presunções que têm maior ou menor realidade, sem alcançar a realidade completa. 14 Assim, põe-se em relevo a questão da formação da vontade do povo, ou seja, da formação da opinião pública que se encontra nesta vontade. Do até aqui exposto, verifica-se que a questão da democracia possibilita uma multiplicidade de análises, a partir das quais podemos traçar um perfil da democracia contemporânea, circunscrita nos limites do paradigma do Estado Democrático de Direito, propugnado por algumas soluções, a fim de viabilizar uma real democracia pluralista. A perspectiva de José Luiz Quadros de Maga- 13 CAAMAÑO MARTINEZ, José. El pensamiento jurídico-político de Carl Schmitt. La Coruña: Moret, 1950. p. 73. 14 CAAMAÑO MARTINEZ, José. El pensamiento jurídico-político de Carl Schmitt. La Coruña: Moret, 1950. p. 74. 63 revista_depoimentos_07_revisao.p65 63

DAURY CÉSAR FABRIZ lhães propõe uma nova visão de Estado como um espaço efetivamente democrático, onde possamos pensar a democracia não apenas como voto para a representação do Estado, mas também como construção de canais de comunicação da sociedade organizada. Todo o espaço existente dentro do Estado deve estar organizado de forma a permitir que a sociedade se manifeste. 15 Para tais objetivos, trabalharemos, no plano do presente artigo, basicamente com dois autores que examinaram o fenômeno da democracia, quais sejam: Carl Schmitt e Friedrich Müller. A partir de tais incursões pelas obras dos citados autores-base, buscaremos, na medida do possível, questionar a democracia hoje no sentido de concluir com algumas reflexões acerca da democracia no Estado democrático de Direito e a democracia que queremos, em toda sua amplitude. 2 A QUESTÃO DA DEMOCRACIA EM CARL SCHMITT Schmitt visualiza a democracia como uma forma política que compreende o princípio da identidade entre povos em sua existência concreta consigo mesmos, como unidade política. 16 Conforme Schmitt, o povo é portador do poder constituinte, outorgando-se a si mesmo uma constituição. Nesse sentido, a palavra democracia pode indicar um método para o exercício de certas atividades estatais. Em decorrência, designa uma forma de governo e de legislação, significando, ainda, que, no sistema de distinção de poderes, o legislativo ou o executivo organizam-se segundo princípios democráticos com uma participação o mais ampla possível dos cidadãos. 17 Para aqueles que defendem a democracia como o império da maioria, essa maioria é composta pelos cidadãos ativos, ou seja, com direito a voto, de tal maneira que não há necessidade dessa maioria compreender a maioria dos súditos do Estado, tampouco a maioria dos habitantes do seu território. Nessa perspectiva, ao se falar em maioria, pode-se fazer referência a muitas distintas classes de maio- 15 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder municipal: paradigmas para o Estado constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1997., p. 39. 16 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1927, p. 259. 17 Ibidem, p. 259. 64 revista_depoimentos_07_revisao.p65 64

Qual democracia? ria, quais sejam: a maioria dos cidadãos ativos participantes do sufrágio, a maioria de todos os cidadãos ativos sem atender a participação no sufrágio, a maioria dos súditos do Estado, ou, ainda, a maioria da população de um país. 18 De outro modo, os princípios da igualdade e da liberdade são citados ou ligados ao conceito de democracia. Para Schmitt, os mesmos são instâncias distintas, na medida em que os mesmos são contrapostos, tanto nos seus conteúdos, quanto nos seus efeitos. A palavra liberdade, segundo Schmitt, é empregada no sentido de uma liberdade individual, que corresponde por natureza a todo homem. No entanto, no âmbito do Estado de direito, da Constituição moderna, o elemento liberdade surge como um princípio formal. Nessa perspectiva, todos são iguais, igualmente livres. 19 No que se refere à questão da igualdade, a esta não basta, para o conceito de democracia, qualquer igualdade geral ou indiferente que se encontre dada. Faz-se necessário atentar para a sua substância, para o valor inserido na mesma. Nesse sentido, a forma política específica da democracia somente pode basear-se num conceito específico e substancial de igualdade. Schmitt argumenta que a igualdade de todos aqueles que detêm uma figura humana não pode oferecer fundamento nem a um Estado, nem a uma forma política, nem a uma forma de governo. O conceito democrático deve relacionar-se com a possibilidade de uma distinção. 20 Eis aí o cerne da questão da democracia em Schmitt. A igualdade a partir da diferenciação. Para Schmitt, o conceito democrático de igualdade é um conceito político e, como todo conceito político autêntico, deve se relacionar com a possibilidade de uma distinção. Por isso a democracia política não pode se basear na distinção de todos os homens, mas na distinção de um determinado povo, ou seja, a igualdade que corresponde à essência da democracia se dirige ao interior de um determinado Estado. Dentro de um Estado democrático, são iguais 18 Ibidem, p. 260. 19 Ibidem, p. 261. 20 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1927, p. 263. 65 revista_depoimentos_07_revisao.p65 65

DAURY CÉSAR FABRIZ todos os súditos. Nessa perspectiva, deduzem-se os efeitos jurídicos e políticos, ou seja, quem não é súdito do Estado não pode ingressar no jogo para essa igualdade democrática. 21 Esta igualdade democrática, segundo Schmitt, constitui-se no pressuposto de todas as outras igualdades, quais sejam: igualdade diante da lei, voto igual, sufrágio universal, serviço militar obrigatório, igualdade para o acesso aos cargos públicos. A igualdade democrática torna-se, assim, uma igualdade substancial. Nessa medida, todos os cidadãos podem desfrutar da igualdade e ser tratados como iguais, uma vez que têm igualdade ante o sufrágio, ante da lei, etc., quer dizer, participam da substância dessa igualdade. Em conseqüência, a igualdade democrática é, em essência, homogeneidade e, por certo, homogeneidade do povo. Assim, o conceito central de democracia é povo, e não humanidade. Se a democracia há de ser uma forma política, há somente democracia do povo e não democracia da humanidade. Nesse contexto, democracia, segundo Schmitt, é a identidade de dominadores e dominados, de governantes e governados, dos que mandam e dos que obedecem. 22 Essa definição resulta da substância da igualdade, que é o suposto essencial da democracia. Em uma democracia, a inevitável diferença prática entre governante e governados não pode passar a ser uma distinção e singularização qualitativa das pessoas que governam. Quem governa em uma democracia não o faz porque é superior a uma massa inferior e menos valiosa. Certamente isto suprimiria a homogeneidade e a identidade democrática. Uma maior virtude e maior capacidade podem induzir de modo razoável o povo a imputar a direção ou governo àqueles de seus membros que pareçam virtuosos e capacitados. Mas, em tal situação, governa-se somente porque há a confiança do povo. Não há nenhuma autoridade nata ou advinda de uma natureza especial. Se o povo elege os melhores e mais virtuosos, tanto melhor, escreve Schmitt. Em decorrência, aqueles que governam são dife- 21 Ibidem, p. 264. 22 Ibidem, p. 272. 66 revista_depoimentos_07_revisao.p65 66

Qual democracia? renciados pelo povo e se autodiferenciam frente a este mesmo povo, mas não porque estão acima dele. 23 O povo, no âmbito da democracia, é o sujeito do poder constituinte. Toda constituição, segundo a concepção democrática, se baseia na decisão política concreta do povo dotado de capacidade política. O conceito de decisão é utilizado por Schmitt como crítica ao Estado liberal. Conforme analisa José Caamaño Martinez, as construções da teoria liberal não passaram de intentos na substituição pelo império das normas, do mando e do poder de homens concretos. Por outro lado, conforme o mesmo autor, as circunstâncias históricas se alteraram profundamente, sendo muito diferentes das que presidiram ao nascimento das instituições liberais, de maneira que estas perderam o sentido e se desnaturalizaram. 24 Assim, os primeiros liberais falavam em soberania da Constituição; mas, na realidade, o motivo era que, em França, no tempo da restauração, com essa afirmação, queriam iludir o povo de que este era o soberano e de que frente a ele se elevava a Constituição soberana que continha as garantias dos direitos individuais. Nessa perspectiva, o Estado de direito burguês tratou de substituir o império dos homens concretos pelo império das normas. 25 O princípio liberal apega-se à tese de que os direitos do indivíduo são anteriores e superiores ao Estado. Nesse contexto, busca-se evitar que o Estado possa invadir ou desconhecer os mesmos. Trata de garantir a máxima esfera de liberdade de uma pessoa. O sistema político verdadeiramente representativo do Estado liberal burguês é o parlamentarismo, o qual é uma combinação relativizada e combinada de distintos elementos políticos formais. O sistema parlamentar, para Schmitt, constitui-se em uma forma de aristocracia e de oligarquia, tendo-se em conta que a aristocracia já é em si mesma um status misto. 26 23 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1927, p. 274. 24 CAAMAÑO MARTINEZ, José. El pensamiento jurídico-político de Carl Schmitt. La Coruña: Moret, 1950. p. 63-64 25 Ibidem, p. 64. 26 CAAMAÑO MARTINEZ, José. El pensamiento jurídico-político de Carl Schmitt. La Coruña: Moret, 1950. p. 67. 67 revista_depoimentos_07_revisao.p65 67

DAURY CÉSAR FABRIZ A forma política da aristocracia se fundamenta no pensamento da representação, cujo princípio se baseia não em uma única pessoa, mas sim em uma pluralidade de pessoas. Conforme Schmitt 27 a constituição moderna do Estado burguês de direito emprega de dois modos os elementos formais do princípio aristocrático. Primeiro, o império do parlamento é um sistema que, quando não é aristocrático, é oligárquico. Segundo, pode utilizar-se de elementos formais e estruturais como meios de organização de contrapesos de poderes, nivelando, por exemplo, elementos democráticos e monárquicos. O elemento monárquico é especialmente adequado à constituição do Executivo e a tal fim se emprega, intercalando-se o elemento aristocrático em uma organização de divisão de poderes no Legislativo, contrapondo-se dentro deste poder uma Câmara Alta, mais ou menos aristocrática, à câmara baixa, concebida democraticamente. Assim surge, segundo Schmitt, o sistema bicameral da moderna constituição do Estado de direito. Conforme Schmitt, na introdução do sistema bicameral na maior parte dos Estados do continente europeu, foi decisivo o modelo inglês, uma vez que esse sistema tinha uma especial evidência para as idéias liberais do século XIX, ou seja, estava em consonância com o princípio da distinção de poderes, oferecendo, ainda, a possibilidade de proteger o poder social de certos estamentos e classes contra uma democracia radical. Por isso se opuseram, em igual maneira, pretensões tanto liberais como conservadoras. Isso explica, segundo Schmitt, a grande difusão do sistema em países como Alemanha e França, que consideraram prudente um sistema bicameral, construindo-o de diversas maneiras. Conforme este autor, a lógica política de uma democracia há de contradizer o sistema bicameral, pois a democracia se baseia no suposto da identidade do povo em sua unidade. Uma segunda câmara, independente de toda significação política, colocaria em perigo o caráter unitário do povo em sua totalidade, introduzindo um 27 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1927, p. 340. 68 revista_depoimentos_07_revisao.p65 68

Qual democracia? dualismo precisamente para o legislativo, que passa a ser expressão da vontade geral, em um sentido especial. Quando uma constituição quer acentuar bem a soberania de uma nação una e indivisível, e ainda que porventura demonstre receios políticos ante o poder social de uma aristocracia, o sistema unilateral deverá ser praticado com rigor. Afirma Schmitt que, para uma constituição democrática, a questão do sistema bicameral se reduz a uma clara alternativa: ou se encontra nessa segunda câmara uma expressão digna de apreciação pelo povo através de uma especial formação, de uma especial experiência, idade, riqueza ou propriedade ou então não se vê o porquê na formação de uma câmara especial. Quanto aos tipos históricos do sistema bicameral, Schmitt indica inicialmente o sistema inglês. De acordo com ele, a maior parte dos países do continente europeu introduziu o sistema Bicameral, imitando o modelo inglês e sofrendo ainda forte influência das idéias de Montesquieu, que preconizava que Há sempre em um estado homens que se distinguem por seu nascimento, riqueza e posição, que acabam por determinar a legislação, tendo em conta os seus especiais interesses. Dessas idéias, resultou uma câmara de pares aristocrática, um corpo de nobres, ou câmara de senhores, colocada junto a uma representação popular propriamente dita. Assim se deu com a Carta francesa de 1814 e a Constituição Prussiana de 1850, nas quais o poder legislativo era exercido em comum pelo rei e pelas câmaras. No âmbito das várias possibilidades para a formação de uma instituição independente com significação política, Schmitt comenta sobre uma estrutura bicameral, baseada na união de uma câmara econômica com outra câmara política, ou de um parlamento econômico com um parlamento puramente político, o que introduz no âmbito institucional parlamentar a contradição entre capital e trabalho. Significa uma contraposição de classes. No entanto, conforme Schmitt, a decisão sempre pertencerá ao político, qualquer que seja a decisão. Lembra ele, que a Constituição de Weimar introduziu em seu artigo 165 um Conselho Econômico do Reich, concebido como a organização destinada a compendiar um sistema de representações de 69 revista_depoimentos_07_revisao.p65 69

DAURY CÉSAR FABRIZ 70 trabalhadores e empregados em relação com os Conselhos Econômicos representados por patrões e empregados, de maneira paritária. No entanto o Conselho Econômico de 1919, com base no ponto de vista da divisão de poderes, não constituía uma câmara especial, uma vez que seus representantes não estavam ligados a mandatos. Também não constituía um parlamento econômico independente, uma vez que não tinha independência para ditar normas econômicas. Esse conselho econômico funcionava apenas como um órgão opinativo. Conforme Schmitt, o conselho econômico do Reich, instituído pela Constituição de Weimar, não foi nem uma segunda câmara, nem um parlamento econômico. No tocante às competências e faculdades da Câmara Alta, encontram-se estas no terreno da legislação. O modelo inglês transferiu também à Câmara Alta outras competências, em particular a administração da justiça, principalmente a justiça política. No que se refere à participação da Câmara Alta na elaboração das leis, têm-se o seguinte: segundo o sentido originário do sistema bicameral, a lei surge por acordo entre ambas as câmaras, que detêm iguais direitos relativos à iniciativa das leis, ressalvando as singularidades de cada sistema, cuja iniciativa de algumas leis específicas resguarda-se a uma determinada câmara. Uma outra atribuição da Câmara Alta está na sua constituição como Tribunal de Justiça Política. Em algumas leis constitucionais, se atribui uma competência peculiar para a Câmara Alta para processos políticos, segundo o método inglês. A constituição de Weimar não conheceu esta espécie de justiça política a cargo de um corpo legislativo. Também a Câmara Alta é protetora da constituição, ou seja, tribunal para conflitos constitucionais de leis e decretos. Como exemplo clássico, fornecido por Schmitt, temos a instituição do Senado Conservador, que podia declarar a inconstitucionalidade das leis, uma das características das constituições do Império Francês. As Câmaras do sistema bicameral formam, juntas, o parlamento. O caso de responsabilidade política do governo frente ao parlamento exige uma resolução conjunta das duas câmaras. O Parlamento apóia-se no aproveitamento e na mesclagem de elementos políticos distintos, inclusive contrapostos, ou seja, utiliza construções monárquicas para robustecer o Poder Executivo (goverrevista_depoimentos_07_revisao.p65 70

Qual democracia? no), para colocar-se em posição de equilíbrio frente ao parlamento. Aplica as idéias aristocráticas para um corpo representativo, sendo que, em alguns países, aplicam-se também ao sistema bicameral as concepções democráticas, segundo as quais o poder de decisão cabe ao povo. Através do voto direto, o povo apresenta-se entre o parlamento e o governo como um terceiro superior. O sistema Parlamentarista 28 leva à mescla típica, conforme Schmitt, que caracteriza o Estado de direito burguês, ou seja, princípios políticos-formais intercalados aos elementos monárquicos, aristocráticos e democráticos, a serviço de um equilíbrio delicado. Em outras palavras, este sistema não se caracteriza por uma forma política independente, nem mesmo uma forma especial de governo, mas por um sistema de utilização e mescla de distintas formas de governo (elemento político) e legislação (elemento formal). Conforme Schmitt, este sistema de equilíbrio delicado de formas políticas, em que se aproveitam uns juntos aos outros, sob o ponto de vista da identidade como o da representação, alinhado a elementos estruturais tanto monárquicos como aristocráticos e democráticos, corresponde a um modo singular das tendências políticas da burguesia liberal e do estado burguês de direito, ou seja, mediante a mescla e o equilíbrio de forças, evita-se todo absolutismo, seja da monarquia, da democracia ou do parlamento misto, isto é, de uma aristocracia ou oligarquia. Em relação ao aproveitamento dos diversos elementos políticosformais que o parlamentarismo possa vir a adotar, são várias as espécies de direção política e conseqüências, quais sejam: a) quando predomina o elemento monárquico e o pensamento da representação da unidade política passa por um único homem, pode o sistema parlamentar deixar aberta a possibilidade do sistema presidencial, em que o chefe do executivo participa com independência em relação à direção política; 28 Vale ressaltar o fato de que Schmitt usa o termo parlamentarismo não como o conhecemos hoje, isto é, no sentido de sistema de governo. O termo é utilizado pelo autor em estudo como uma configuração caracterizadora do Estado de direito burguês. (Cf. SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho privado, 1927, p. 52 et. segs.). 71 revista_depoimentos_07_revisao.p65 71

DAURY CÉSAR FABRIZ b) quando predomina o sistema aristocrático ou oligárquico, no domínio do parlamento, este se apresenta como sistema parlamentar em sentido estrito, em que a maioria do corpo legislativo tem a direção política e determina a linha e diretrizes políticas; c) quando o chefe dessa maioria parlamentar tem direção política, nos encontramos ante um sistema de premier, o qual envolve uma forma forte de representação; d) quando o chefe do partido e presidente do Conselho de Ministros que tem a direção política, há um ministério de coligação formado por distintos partidos. Deve-se designar essa última forma de sistema de gabinete. Conforme salienta Schmitt, os Estados do continente europeu, sobretudo a França e a Alemanha, estabeleceram partidos democráticos em contraposição aos governos monárquicos, preconizando a parlamentarização do governo como programa. Já na Inglaterra, o Governo parlamentarista de gabinete desenvolveu-se paulatinamente em transformações suaves, com base em diversos precedentes, sem um plano consciente, mediante a relação do parlamento com uma dinastia que aquele parlamento havia chamado ao trono. Na Alemanha, por exemplo, o governo monárquico, no século XIX, detinha um poder independente, fundado no exército e na burocracia, o que requeria ser obrigado, por uma revolução da burguesia, a limitar e, por último, declinar de seus domínios. Por isso houve necessidade de um programa de princípios e de uma teoria política do sistema parlamentarista. O denominado parlamentarismo não era, assim, algo baseado em práticas ou antecedentes, mas era uma doutrina, uma idéia. A burguesia francesa ou alemã, de 1815 a 1870, tomou a sério o parlamentarismo como sistema político e deu uma fundamentação ideal, sem a qual não seria compreensível em sua totalidade. A fundamentação sistemática independente se desenvolveu, tanto na Alemanha como na França, no período de 1815 a 1848. Este período deve ser considerado como a época clássica da idéia parlamentar. 72 revista_depoimentos_07_revisao.p65 72

Qual democracia? Na França, a burguesia liberal possuidora e instruída se via obrigada com base nas experiências revolucionárias e napoleônicas, de 1815 a 1830 a uma luta contra o princípio monárquico, contra a restauração de velhas idéias e instituições. De 1830 a 1848, se realizou na França, debaixo da monarquia de Luís Felipe, e na Bélgica, com a Constituição de 1831, um sistema político que, para muitos, segundo Schmitt, constituiu-se no Estado ideal burguês, ou seja, um sistema no qual ocorria a peculiar situação intermediária entre burguesia liberal/monarquia vencida e a pujante democracia radical, em parte proletária, refletindo um ideal de moderação política. Dessa forma, a burguesia liberal encontrava-se entre a monarquia absoluta e a pujante democracia proletária, ou seja, numa posição intermediária. Em França, o ano crítico de 1848 mostrou a seguinte situação: frente às pretensões políticas de uma monarquia forte, a burguesia fazia valer os direitos do parlamento, da representação popular, ou seja, era suporte às reclamações democráticas; frente a uma democracia proletária, buscou proteção num forte governo monárquico para salvar a liberdade burguesa e a propriedade privada; frente à monarquia e à aristocracia, apelava para os princípios de liberdade e igualdade; frente a uma democracia de massas pequeno-burguesa ou proletária preconizava o caráter sagrado da propriedade privada e o conceito de lei, próprio do Estado de direito. Essa posição intermediária da burguesia liberal respaldava-se em dois pressupostos distintos: a instrução e a propriedade. Juntos, esses pressupostos tornaram possível o sistema parlamentar. A instrução constitui, no âmbito do Estado de direito burguês, uma qualidade pessoal e por isso suscetível de ser utilizada em um sistema de representação. O parlamento burguês do século XIX é, pela idéia a que responde, uma assembléia de homens cultos, que representam ilustração e razão da nação inteira. O conceito de nação é também, por sua vez, um conceito de instrução. Somente um povo instruído, no sentido de qualidade como vontade humana e consciência de si mesmo, constitui uma nação. O parlamento tornase, então, uma representação geral da nação. Assim, punha-se em 73 revista_depoimentos_07_revisao.p65 73

DAURY CÉSAR FABRIZ perspectiva que o requisito mais importante para todos os representantes é a formação do espírito, pois somente um homem instruído é capaz de distinguir cuidadosamente entre seus interesses pessoais e entre os interesses da coletividade, subordinando-se a estes. 29 Quanto à questão da propriedade, esta não é uma qualidade que pode ser representada, mas pode representar os interesses dos proprietários. O voto censitário cuidou para que essa representação de interesses tivesse efetividade. Mas, com isso, o parlamento recebeu, junto com uma qualidade de representação nacional, um caráter de uma comissão dos que têm um determinado interesse. Nesta condição, o parlamento, como titular do direito de criar ou constituir tributos, atua como representação de interesses e não só como representação nacional. A burguesia proprietária apelava ao postulado de que quem paga tributos deve também consenti-lo e controlar a sua aplicação. Daí o suposto de que quem paga tributos deve estar representado no parlamento. 30 O parlamento no Estado de direito burguês é, segundo a idéia que estabelece sua forma, um lugar onde se realiza uma discussão pública das opiniões políticas. Maioria e minoria, partido do governo e partido de oposição, todos procuram acordar, fazer acertos, discutir argumentos e contra-argumentos. Deste modo, o parlamento representa a instrução e a razão nacional, reunindo em si a intelectualidade de todo o povo. Mas o povo mesmo não pode discutir, somente pode o povo aclamar, eleger e dizer sim ou não às questões que lhe são propostas, ou seja, o povo é fundamental para a democracia, na medida em que possibilita a legitimidade das decisões tomadas no âmbito do parlamento. Na visão de Schmitt, o parlamento burguês se destaca justamente por ser um lugar onde se desenrola uma discussão razoável. O absolutismo monárquico, ao contrário, constituía simples poder de mando, arbítrio e despotismo. A democracia direta, por sua vez, constitui o domínio de uma massa impulsionada por paixões e interesses. Entre o arbítrio despótico e a irracionalidade das massas, surge o parlamen- 29 SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucion. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1927, p. 360. 30 Ibidem, p. 361. 74 revista_depoimentos_07_revisao.p65 74

Qual democracia? to como um ponto médio, que se destaca pela discussão pública, razoável, baseado em normas justas. A discussão no parlamento, desse modo, apresenta-se como pacífica e progressiva, ao contrário de toda espécie de ditadura ou poder absoluto. Nesse plano, Schmitt traça algumas conseqüências do pensamento fundamental do sistema de representação parlamentar, no âmbito do Estado burguês de direito, quais sejam: representar toda a nação; emitir, através de discussões e acordos públicos, leis (normas gerais) razoáveis, justas, que determinam e regulam toda a vida estatal; dar publicidade de todas as deliberações. Todas essas conseqüências constituem o cerne desse sistema. Todas as deliberações devem ser impressas e publicadas, porque são públicas. As comissões do parlamento servem somente a uma preparação técnica exterior, visto que as discussões e deliberações devem se manifestar publicamente e a subrepresentação não é possível. No entanto, ao criticar a democracia burguesa, Schmitt atenta para o fato de que o parlamento, na maioria dos Estados, não se apresenta como um lugar de controvérsia racional onde exista a possibilidade de que uma parte dos deputados convença a outra como resultado de um debate razoável. Assim, as organizações sólidas de partidos formam uma representação, sempre presente, de certos setores das massas eleitorais que fixam a posição do deputado, de forma que a coação de grupos é uma prática parlamentar. As facções enfrentam-se umas com as outras com uma força rigorosamente calculada pelo número de mandatos. Esses aspectos descaracterizam a liberdade de discurso. O plenário da assembléia pública é o lugar onde se realizam as discussões públicas, surgindo as decisões. O parlamento convertese, desse modo, em uma espécie de autoridade que decide em deliberações secretas e anuncia o resultado do acordo em forma de uma seção pública. As resoluções são sempre decisões tomadas em conferências de chefes de partidos. Por todos esses aspectos, segundo argumenta Schmitt, o parlamento não é lugar em que recaem as verdadeiras decisões políticas. As decisões essenciais são adotadas fora do parlamento. Este atua, pois, como uma oficina para uma transformação técnica no aparato de autoridade do Estado. 75 revista_depoimentos_07_revisao.p65 75

DAURY CÉSAR FABRIZ Ante o exposto, Schmitt faz uma crítica à tradição liberal por ser ela justamente uma tradição não liberal, na qual a sociedade política é a melhor sociedade, ao Estado cabendo conceder cidadania às massas, uma vez que o Estado se afirma na medida em que exclui. Democracia é igualdade, mas não uma igualdade universal, uma igualdade entre os iguais, na dimensão de amigos versos inimigos. Em decorrência, a homogeneidade assenta-se na diferença. Nesse sentido, a articulação entre a democracia e o liberalismo, efetuada no século XIX, deu lugar a um regime inviável já que era caracterizado pela união de dois princípios políticos absolutamente heterogêneos, ou seja, a democracia parlamentar faz coexistir o princípio da identidade, próprio da forma democrática de governo, com o princípio da representação, que, por sua vez, é específico da monarquia. 31 Com efeito, o aspecto representativo não provém da lógica democrática, mas sim da metafísica liberal, isto é, a representação é um elemento não democrático da democracia parlamentar. Daí é ele que torna possível a identidade entre governantes e governados, que é, para Schmitt, o que, em última instância, define a democracia. Nesse sentido ele é uma insuperável contradição, uma vez que o liberalismo nega a democracia e a democracia nega o liberalismo. Em outras palavras, democracia, na ordem liberal, é tudo aquilo que não é realmente democracia. Povo é tudo aquilo que verdadeiramente não participa das decisões políticas. 3 O POVO E A DEMOCRACIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO A democracia, ou governo do povo, apresenta raízes históricas, conforme já salientamos em tópico anterior, entre os gregos. Portanto é conhecida desde longa data pela humanidade. Em Müller, vamos encontrar a análise do ressurgimento da idéia de democracia na era moderna, quando o povo passa a ter importância decisiva. 31 MOUFF, Chantal. Teoria política. In: Caderno da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 2, p. 87-107, jul.-dez. 1994. p. 92. 76 revista_depoimentos_07_revisao.p65 76