QUAL O GRAU DE EXCEPCIONALIDADE DAS CHEIAS OCORRIDAS NO INÍCIO DO ANO HIDROLÓGICO DE 1997/98?



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Transcrição:

QUAL O GRAU DE EXCEPCIONALIDADE DAS CHEIAS OCORRIDAS NO INÍCIO DO ANO HIDROLÓGICO DE 1997/98? RODRIGUES, Rui ( 1 ); BRANDÃO, Cláudia ( 2 )e ÁLVARES, Teresa ( 2 ) RESUMO O território português testemunhou no início do ano hidrológico de 1997/98 a ocorrência de sucessivos episódios de cheia, alguns associáveis a períodos de retorno pluricentenários. Dado o carácter generalizado da incidência das precipitações intensas no território ao longo dos meses de Outubro e Novembro, houve diferentes tipos de bacias hidrográficas afectadas reflectindo-se, nas diferentes respostas hidrológicas, os diferentes graus de modificação humana e as diferentes extensões superficiais drenantes (grandes bacias nacionais e transnacionais). A presente comunicação sintetiza os estudos realizados na Direcção de Serviços de Recursos Hídricos do INAG no domínio da caracterização das situações de cheia mais graves e, dentro destas, aquelas ocorridas apenas no território continental. Os períodos de retorno associados às cheias de Monchique, em Outubro, foram os mais excepcionais ainda que o controlo de cheias na barragem de Alcantara, na parte espanhola da bacia do Tejo, tenha contribuido muito para diminuir a magnitude da cheia natural que afluiria a Portugal (atenuação para cerca de 1/5 da ponta). Palavras chave: Curvas de intensidade-duração-frequência, cheias, período de retorno 1 Chefe da Divisão de Recursos Superficiais, INAG 2 Técnica Superior da Direcção de Serviços de Recursos Hídricos, INAG 1

1 - INTRODUÇÃO Pode-se considerar que o ano hidrológico de 1997/98 teve início com as chuvadas intensas que se abateram sobre o território continental português, com maior incidência sobre Lisboa, no dia 18 de Outubro de 1997. Também na ilha da Madeira houve cheias intensas (de 19 para 20 de Outubro) descritas num relatório do IGA da Madeira (TEIXEIRA e PEREIRA, 1997), bem como em S. Miguel, nos Açores, com consequências trágicas na Ribeira Quente. Porém, só serão aqui descritas as cheias ocorridas no território continental. Esta abertura retumbante da estação das chuvas seguia-se a um ano hidrológico médio mas incaracterístico (já que havia chovido no verão de 1997 depois de um mês de Março muito seco) o qual, por sua vez, havida sido precedido pelo ano muito húmido de 1995/96. Depois das secas do início da década de 90 instalou-se um pouco o hábito de ver a ocorrência de um ano húmido como algo de excepcionalmente isolado. Quatro meses do corrente ano hidrológico vieram demostrar que os episódios pluviosos extremos são fenómenos de ocorrência aleatória (ainda que com maior probabilidade de ocorrência em determinadas épocas do ano) e, como a experiência deste ano o demonstrou, podem ocorrer em diversas sucessões dentro de um curto período de tempo. É importante ressalvar este aspecto pois um conceito empírico que ficou altamente enraizado nos regantes portugueses, e na sequência do ano hidrológico de 1989/90 (onde choveu torrencialmente mas apenas nos três primeiros meses do ano hidrológico tendo-se, aliás, praticamente iniciado aí a seca dos anos 90), foi o de que a estação das chuvas ficou reduzida e antecipada nestes últimos anos. Ainda aqui, o presente ano hidrológico, com as chuvadas do final de Janeiro/princípio de Fevereiro (quando foi galgada a ensecadeira de Alqueva e alagado o cais de Alcoutim), veio demonstrar que isso não pode ser entendido como uma tendência estatisticamente demonstrável. Se alguma estatística descritiva poderia ser feita (e tomando em conta também as cheias de Lisboa de 1967 e 1983), é a de que as cheias extremas ocorrem com maior probabilidade ao fim-de-semana, e de noite 2 - AS CHEIAS DE OUTUBRO DE 1997 No presente capítulo só serão referidas aquelas cheias mais extraordinárias, ou seja, apesar da definição crua de cheia fazer corresponder esse fenómeno a toda e qualquer subida dos níveis no leito de um rio, não será assim tratada neste artigo, como é evidente. 2.1 - Situação em Lisboa Como foi já referido, as precipitações intensas do dia 18 de Outubro deram origem às primeiras cheias do ano hidrológico no território continental português. A situação meteorológica que lhe esteve associada foi uma depressão instalada a NO da península Ibérica, da qual se mostra a sua evolução entre as 12:00 e as 18:00 horas na Figura 1. 2

Figura 1 - Situação meteorológica sinóptica do dia 18 de Outubro de 1997. As previsões existentes para 5 dias na Europa (Figura 2) apontavam para dois núcleos de alta pluviometria, ambos na fronteira oceâno/continente: um em Portugal, que acabou mais centrado em Lisboa, e; outro em Israel, sendo que Tel-Aviv também foi palco de grandes cheias. Figura 2 - Previsão da precipitação para a Europa no período 18 a 23 de Outubro de 1997 emitida por National Centers for Environmental Prediction (NCEP/NOOA). As máximas intensidades de precipitação do dia 18 de Outubro tiveram um grau de localização muito concentrado, sendo que nos arredores de Lisboa (Cascais e Loures) os totais precipitados foram inferiores a metade daqueles verificados no centro de Lisboa (92.6 mm). 3

A Figura 3 apresenta os valores disponibilizados pelo Sistema de Vigilância e Alerta de Cheias do INAG em duas ribeiras da bacia do Trancão, onde fica evidenciada a forma como a subida dos níveis na ribeira da Póvoa (em Ponte Resinga) foi mais estimulada (por maior precipitação já que se encontra mais próxima do centro de Lisboa) do que a subida dos níveis na ribeira de Loures (na Ponte do Pinhal). A mesma Figura 3 é útil para demonstrar como o fenómeno pluvioso do dia 20 de Outubro, apesar de ter tido menor intensidade, beneficiou de uma maior humidade dos solos para provocar maiores subidas limnimétricas na ribeira do Pinhal do que no episódio de 18 de Outubro, e subidas também substanciais na ribeira da Póvoa, ainda que esta esteja mais urbanizada. 0 tempo (horas) 0 12 24 36 48 60 72 15 30 45 i (mm/h) Precipitação em Lisboa de 18 a 20 de Outubro Figura 3 - Precipitação em Lisboa e níveis registados na bacia do Trancão entre 18 e 21 de Outubro de 1997. 4

A excepcionalidade das intensidades de precipitação em Lisboa correspondeu, para as durações de 1 a 3 horas, a períodos de retorno entre os 100 e os 115 anos, se usado como instrumento de avaliação a curva de intensidade-duraçãofrequência estabelecida com base na série de 120 anos que aglomera leituras discretas suplementadas por digitalização nos últimos anos (MATOS e SILVA, 1986). Se utilizada a curva estabelecida por BRANDÃO (1995) e recentemente actualizada, os períodos de retorno obtidos para o fenómeno pluviométrico de dia 18 são ligeiramente superiores. 2.2 - Situação em Monchique Outro local onde os montantes de precipitação provocaram estragos consideráveis foi em Monchique, na serra do Barlavento Algarvio. Aí, após um dia de precipitação 110 mm no dia 20 de Outubro (valor normal para este local) ocorreu na madrugada de 26 de Outubro, uma queda pluviométrica histórica de 274,7 mm totalizada num dia mas ocorrida praticamente em 5 horas. A Figura 4 mostra a excepcionalidade do fenómeno de dia 26 de Outubro, onde se ultrapassou frequentemente o período de retorno de 100 anos (dos 40 min aos 2 dias). De 2 horas a cerca de 1 dia os valores foram sempre superiores aos esperados para um período de retorno de 500 anos (valor admitido como de referência para o fenómeno diário dado que este correspondeu a um período de retorno de 456 anos). Como já foi referido, o fenómeno foi muito intenso entre as 2:30 e as 10 horas de duração, quando foi ultrapassado o período de retorno de 1000 anos. Ainda que estes valores já correspondam a grandes extrapolações da série registada (66 anos), a fundamentação de uma periodicidade milenar para as intensidade ocorridas parece muito sólida face à Figura 4. P (mm) 1000 100 26/10/97 T = 1000 anos T = 500 anos T = 100 anos 10 0.1 1 10 100 1000 duração (horas) Figura 4 - Excepcionalidade das precipitações ocorridas em Monchique de 20 a 26/10/97. 5

3 - AS CHEIAS DE NOVEMBRO DE 1997 3.1 - Situação em Lisboa Lisboa experimentou novo fenómeno pluvioso extremo na madrugada do dia 2 de Novembro. Apesar dos efeitos em termos de cheias urbanas terem sido menores do que em Outubro, as intensidades de precipitação para algumas horas chegaram a ser superiores às do episódio anterior (Figura 5). i (mm/h) 1000 LISBOA (IGIDL- Instituto Geofísico Infante D. Luís) T= 100 anos T= 50 anos T= 20 anos T= 10 anos 100 T= 5 anos (18/10/97) ( 2/11/97) 10 1 10 100 1000 D (min) Figura 5 - Excepcionalidade das intensidades de precipitação em Outubro e Novembro para Lisboa. Em ambos os episódios foram atingidos períodos de retorno iguais ou superiores aos 100 anos entre 1 e 3 horas de máxima intensidade. O episódio de 2 de Novembro apresentou ainda intensidades de periodicidade elevada para as durações 10 e 30 minutos. A região urbana de Lisboa sofreu nova queda pluviométrica significativa no dia 24/11, tendo sido atingido o nível hidrométrico de 3,7 m na Ponte do Pinhal (ribª Loures). 3.2 - Situação no Alentejo Onde os fenómenos de cheia tiveram maior impacto foi no Alentejo, na transição da noite do dia 5 para a madrugado do dia 6 de Novembro, dado o carácter trágico de que se revestiram. A Figura 6 mostra a distribuição espacial dos locais onde se atingiram valores superiores aos 100 mm, de uma forma geral segundo um alinhamento Barragem de Sta. Clara (rio Mira) Barrancos, com as intensificações em Salvada e Sobral da Adiça. 6

Figura 6 - Precipitação das 9 h do dia 5 às 9 h do dia 6 de Novembro de 1997 no Alentejo. Apesar de muitos dos valores da Figura 6 apresentados provirem de udómetros, a maioria da precipitação ocorreu durante cerca de 7 horas, com picos de intensidade superiores a 15 mm em 10 minutos. A Figura 7 visa mostrar a excepcionalidade dos fenómenos na região 7

do Alto Sado a Beja, sendo que no Alto Sado (Relíquias e Monte da Rocha) o episódio pluvioso foi quase todo de periodicidade igual ou superior ao centenário, enquanto que, em Beja, os máximos de intensidade centenários só ocorreram entre as 4 e 7 horas de duração. i (mm/h) 100 Curva IDF de ÉVORA-CEMITÉRIO admitida como regional T= 100 anos T= 50 anos T= 20 anos T= 10 anos T= 5 anos BEJA Relíquias Monte da Rocha 10 10 100 1000 D (min) Figura 7 - Períodos de retorno associados às precipitações observadas na região próxima ao Garvão e Funcheira (locais mais assolados pelas cheias). Em Sobral da Adiça, no Guadiana, já proximo à fronteira espanhola, os valores udométricos foram superiores a 120 mm, ainda que não se tenham conseguido obter hietogramas do fenómeno pluvioso. 3.3 - Situação no Tejo e Guadiana A progressão para Espanha da perturbação meteorológica que se abateu sobre o Alentejo produziu quedas pluviométricas significativas também na Extremadura espanhola (INAG, 1997) com precipitações em 24 horas entre 100 e 150 mm em grandes extensões superficiais. Uma vez que esta região abrange áreas das bacias hidrográficas do Guadiana e do Tejo, os fortes volumes de precipitação acabaram por se traduzir em elevados valores dos caudais afluentes ao território português. No caso do rio Guadiana, o aumento de caudal foi sensível na secção junto ao Caia e nos principais afluentes desde as 7:00 do dia 6 (Figura 8). incremento de caudal verificado ficou apenas a dever-se à contribuição das áreas não controladas por albufeiras, já que não houve qualquer descarga das principais albufeiras espanholas da bacia do Guadiana a montante do Caia. Houve descargas apenas da barragem do 8

Chança (já a jusante de Alqueva e do Pulo do Lobo) para aproveitar a baixa mar no estuário do Guadiana, descargas essas que chegaram a atingir 1000 m 3 /s das 14:30 às 17:00 do dia 6 de Novembro. Q (m3/s) 5000 Evolução do caudal no Guadiana à entrada em Portugal no dia 6/11/97 4000 3000 2000 1000 0 0 6 12 18 24 30 36 tempo (horas) Figura 8 - Caudal afluente a Portugal no açude de Badajoz. Idêntica situação se verificou na bacia do Tejo. De facto a última albufeira espanhola junto à fronteira com capacidade de regularização (a albufeira de Alcântara), não só não lançou (por turbinamento ou descarregadores) qualquer caudal no rio Tejo, como ainda teve a capacidade para encaixar uma ponta de cheia de cerca de 15 000m 3 /s (Figura 9), com reflexos no aumento dos volumes armazenados de cerca de 500 hm 3 em 24 horas. O volume total encaixado em Espanha muito amenizou as proporções que as cheias poderiam ter tomado nas bacias do Tejo e Guadiana. Na área da margem esquerda do Tejo entre Alcantara e Cedilho, no prolongamento da região da bacia do Guadiana onde se verificaram precipitações intensas, também foi gerada uma onda de cheia que, por ausência de capacidade de encaixe, passou pelos aproveitamentos a fio de água de Cedilho (na fronteira) e Fratel, já em Portugal. Neste último a ponta ocorreu entre as 10:00 e as 11:00. Foi essa onda de cheia que se propagou pelo rio Tejo (Figura 10), tendo atingido o Baixo Tejo na madrugada de dia 7, provocando inundações na planície. 9

Q (m3/s) 20000 Volume de cheia que poderia ter atingido a fronteira portuguesa em 6/11/97 5 Nov 6 Nov 15000 10000 5000 volume encaixado em Alcantara 0 1 12:00 24:00 volume que passou em Cedilho tempo (horas: início 12:00 5/11/97) 24:00 Figura 9 - Encaixe da cheia afluente à albufeira de Alcantara (Espanha). Q (m3/s) 5000 4000 Propagação dos caudais no Tejo na cheia de 6/11/97 Cedilho Fratel Almourol Ómnias 3000 2000 1000 0 4,5 5 5,5 6 6,5 7 tempo (dias) Figura 10 - Propagação desde a fronteira até Santarém da onda de cheia gerada apenas no troço internacional do rio Tejo. 10

3.4 - Situação em Águeda Devido à precipitação intensa que se fez sentir em toda a região centro, não só no litoral mas também no interior, entre as 12:00 e as 24:00, houve a concentração de uma cheia cujo pico atingiu, na cidade de Águeda, o valor de 9,2 m cerca das 2:00 já do dia 9 (Fig. 11). Esta situação repetida mais duas vezes até ao final do ano veio demonstrar a necessidade de intensificação dos mecanismos de aviso e alerta de cheias numa bacia sem capacidade de regularização a montante. Neste sentido foram já instalados pela DRA Centro três tele-udómetros na bacia. 9,2m Figura 11 - Cheia na cidade de Águeda e na Ponte Ribeiro, a montante. 4 - AS CHEIAS DE DEZEMBRO DE 1997 Com a progressão do ano hidrológico para Dezembro os teores de humidade do solo atingiram valores tais que qualquer ocorrência pluviosa era eficazmente transformada em escoamento. As chuvadas de Dezembro, mais distribuídas por todo o País, ainda que menos intensas, provocaram cheias significativas, principalmente nas grandes bacias onde as áreas drenantes envolvidas mobilizavam volumes de cheia com prolongadas recessões. 11

4.1 - Situação em Lisboa Em Lisboa, no espaço de três dias, ocorreram sete episódios pluviosos de média magnitude que provocaram, na bacia hidrográfica do rio Trancão, idêntico número de cheias com tempos de resposta muito condicionados pelo excessivo grau de humidade dos solos. A Figura 12, retirada do Sistema de Vigilância e Alerta de Cheias (SVAC) do INAG para as três estações-base no rio Trancão, revela a sucessão de cheias verificada. Figura 12 - Sucessão de cheias na bacia do Trancão. 4.2 - Situação na bacia do Tejo As precipitações ocorridas em Lisboa tiveram desencadeamentos semelhantes em toda a bacia do Tejo, incluindo a parte espanhola. Basicamente houve duas grandes cheias no espaço de uma semana: as de dia 17/18 e as de dia 21/22, como se exemplifica na Figura 13 que resume as afluências e lançamentos de Alcantara e a progressão do seu armazenamento para valores superiores aos 2750 hm 3. Os dois picos de cheia afluentes foram, respectivamente, de cerca de 6500 e 3000 m 3 /s nesses dois episódios. 12

Qe(m3/s) Qs(m3/s) Vol (hm3) 7000 3250 6000 3000 5000 2750 4000 2500 3000 2250 2000 2000 1000 1750 17/12 18/12 19/12 20/12 21/12 22/12 23/12 24/12 25/12 26/12 0 0 48 96 144 192 240 1500 tempo (horas) Figura 13 - Laminação das cheias efectuadas em Alcântara. Apesar da cheia afluente a Alcantara no dia 17 de Dezembro ter sido superior à de dia 21 de Dezembro, e da contribuição da parte portuguesa da bacia neste último dia ter sido muito semelhante, os valores afluentes a Almourol foram superiores no segundo episódio, mercê não só do maior teor de humidade nos solos como, também da maior contribuição do Zêzere, cuja máxima capacidade de encaixe se viu entretanto atingida. Em suma, os caudais de ponta em Almourol, e para comparação com os da cheia de 5/6 de Novembro, atingiram valores de 3700 m 3 /s, no dia 18 de Dezembro, e 4500 m 3 /s no dia 22 de Dezembro. 4.3 - Situação a norte da bacia do Tejo As cheias verificadas no Douro, ainda que não tenha assumido proporções alarmantes no Porto, levaram a algum alagamento no cais da Régua. Novas cheias em Águeda no dia 22 de Dezembro, tendo sido ultrapassados os níveis de Novembro. 4.4 - Situação a sul da bacia do Tejo As cheias no rio Sado neste período coincidiram com níveis de armazenamento elevado das barragens hidroagrícolas ainda que, também aqui, tenham sido mitigados os valores dos caudais de ponta naturais pela gestão dos armazenamentos e descargas das albufeiras, gestão 13

essa efectuada pelo INAG em estreita colaboração com as Associações de Regantes como forma de se criar alguma capacidade de encaixe nas albufeiras para fins de laminação. 5 - OBSERVAÇÕES FINAIS O ano hidrológico de 1997/98 decerto ficará na história das cheias em portugal não só em termos quer de magnitudes atingidas e perdas de vida mas também como um ano de grande número de réplicas pluviosas sucessivas. Esteve-se perante fenómenos que, em alguns casos, como o de Monchique, se excedeu francamente a periodicidade de fenómenos pentacentenários. Em Lisboa atingiram-se valores centenários, enquanto que no Alto Sado, região de Garvão, apesar dos valores diários serem centenários, as intensidades de curta duração ultrapassaram-nos inequivocamente. Mais ainda, a diferença de intensidades verificadas entre Relíquias e Monte da Ponte na madrugada do dia 6 de Novembro (localidades afastadas apenas algumas dezenas de kilómetros) indicou tratar-se de um fenómeno com fortes intensificações muito localizadas. Tomando ainda como assunto os valores udométricos de Relíquias, refere-se que em Setembro de 1949 houve uma situação muito semelhante, relatada em SANTOS et al. (1988), que vem refrear alguma tentativa de explicação tendencialmente agravada para este tipo de fenómenos, sendo que então o total udométrico diário não foi 105 mm, como agora, mas sim 226 mm. Por último algumas das cheias de génese mais complexa, onde influi o armazenamento e capacidade de laminação de albufeiras, foram muito aliviadas pela gestão efectuada, sendo neste caso de ressalvar a estreita colaboração entre o INAG, a CPPE, as Associações de Regantes e as Confederações espanholas, bem como com os agentes da Protecção Civil. BIBLIOGRAFIA BRANDÃO, C. (1995) - Análise de Precipitações Intensas, Tese de Mestrado, IST, Outubro. INAG (1997) - Relatório da Situação Hidrometeorológica do dia 6 de Novembro de 1997. MATOS, R. e SILVA, M. (1986) - Estudos de Precipitação com Aplicação no Projecto de Sistemas de Drenagem Pluvial. ITH 24 do LNEC. SANTOS, M.; CORREIA, F.N.; RODRIGUES, R. (1988) - Risk Assessment of Regional Droughts. In Natural Disasters in European Mediterranean Countries, pp. 333-350. TEIXEIRA, J. e PEREIRA, A. J. (1997) - Relatório à Precipitação Verificada nos dias 19 e 20 de outubro de 1997 na Madeira. IGA, Instituto de Gestão da Água. 14