instalada, no Brasil, em 1941, a Justiça do Trabalho



Documentos relacionados
Resumo Aula-tema 02: Fontes, princípios, renúncia e transação do Direito do Trabalho.

OS FUTUROS CONTRATOS DE TRABALHO.

A função organizadora das Leis Trabalhistas para o Capitalismo Brasileiro ( ) th_goethe@hotmail.com; joaoacpinto@yahoo.com.

PROJETO SEMPRE-VIVA Campanha de erradicação de violência Doméstica Ênfase Projeto Sempre-Viva.

Tecnologia sociais entrevista com Larissa Barros (RTS)

Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc

difusão de idéias AS ESCOLAS TÉCNICAS SE SALVARAM

"Brasil é um tipo de país menos centrado nos EUA"

DESIGN DE MOEDAS ENTREVISTA COM JOÃO DE SOUZA LEITE

Elaboração de Projetos

Colégio Ser! Sorocaba Sociologia Ensino Médio Profª. Marilia Coltri

Globalização e solidariedade Jean Louis Laville

FORMAÇÃO PLENA PARA OS PROFESSORES

INFORMAÇÃO PARA A PREVENÇÃO

DISCURSO SOBRE LEVANTAMENTO DA PASTORAL DO MIGRANTE FEITO NO ESTADO DO AMAZONAS REVELANDO QUE OS MIGRANTES PROCURAM O ESTADO DO AMAZONAS EM BUSCA DE

GRUPO IV 2 o BIMESTRE PROVA A

Resumo Aula-tema 07: Negociação coletiva e greve. Dissídio individual e coletivo.

Roteiro: Locke: contexto histórico, metodologia, natureza humana e estado de natureza

ENTREVISTA Coordenador do MBA do Norte quer. multiplicar parcerias internacionais

Cinco principais qualidades dos melhores professores de Escolas de Negócios

Avanços na transparência

John Locke ( ) Colégio Anglo de Sete Lagoas - Professor: Ronaldo - (31)

RESENHA. Desenvolvimento Sustentável: dimensões e desafios

RELAÇÕES DE TRABALHO DICIONÁRIO

Unidade II FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL. Prof. José Junior

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

1.3. Planejamento: concepções

PROBLEMA, MUDANÇA E VISÃO

FORMAÇÃO DE JOGADORES NO FUTEBOL BRASILEIRO PRECISAMOS MELHORAR O PROCESSO? OUTUBRO / 2013

Como participar pequenos negócios Os parceiros O consumidor

país. Ele quer educação, saúde e lazer. Surge então o sindicato cidadão que pensa o trabalhador como um ser integrado à sociedade.

Tribunal do Trabalho da Paraíba 13ª Região

Acerca da atividade sindical e das contribuições para o Sindicato

Quando as mudanças realmente acontecem - hora da verdade

Validade, Vigência, Eficácia e Vigor. 38. Validade, vigência, eficácia, vigor

AULA 04 CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES

Segurança no Trabalho

Sumário. (11)

SOCIEDADE VIRTUAL: UMA NOVA REALIDADE PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL

"O MEC não pretende abraçar todo o sistema"

A MULHER E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Roteiro VcPodMais#005

A IMPORTÂNCIA DAS DISCIPLINAS DE MATEMÁTICA E FÍSICA NO ENEM: PERCEPÇÃO DOS ALUNOS DO CURSO PRÉ- UNIVERSITÁRIO DA UFPB LITORAL NORTE

O INTELECTUAL/PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA FUNÇÃO SOCIAL 1

OLIMPÍADA BRASILEIRA DE MATEMÁTICA DAS ESCOLAS PÚBLICAS (OBMEP): EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS A PARTIR DO PIBID UEPB MONTEIRO

Gestão do Conhecimento A Chave para o Sucesso Empresarial. José Renato Sátiro Santiago Jr.

Movimentos sociais - tentando uma definição

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

GÍRIA, UMA ALIADA AO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA ESTRANGEIROS Emerson Salino (PUC-SP) João Hilton (PUC/SP)

SOB O DOMÍNIO DE NAPOLEÃO

"Só existem dois dias do ano em que não podemos fazer nada. O ontem e o amanhã."

Direito do Trabalho no Tempo

Geografia da Fome. Geopolítica da fome

Direito Humano à Alimentação Adequada: um tema fora de pauta no Parlamento?

Educação Patrimonial Centro de Memória

CIA. INDUSTRIAL VALE DO PARAÍBA S/A. UM CASO DE SUCESSO?

FACULDADE DE ENSINO SUPERIOR DE LINHARES FACELI DIREITO INGLÊS E O COMMUN LAW

CAPÍTULO 5 CONCLUSÕES, RECOMENDAÇÕES E LIMITAÇÕES. 1. Conclusões e Recomendações

Katia Luciana Sales Ribeiro Keila de Souza Almeida José Nailton Silveira de Pinho. Resenha: Marx (Um Toque de Clássicos)

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

RECURSOS HUMANOS MÓDULO PRÁTICA TRABALHISTA I

HEGEL: A NATUREZA DIALÉTICA DA HISTÓRIA E A CONSCIENTIZAÇÃO DA LIBERDADE

Ano 3 / N ª Convenção dos Lojistas do Estado de São Paulo reúne empresários lojistas.

UNVERSDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE GABINETE DO REITOR COMISSÃO DA VERDADE TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA

RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES DE RACIOCÍNIO LÓGICO-MATEMÁTICO

COMO PARTICIPAR EM UMA RODADA DE NEGÓCIOS: Sugestões para as comunidades e associações

Resgate histórico do processo de construção da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA)

ENTREVISTA Questões para Adauto José Gonçalves de Araújo, FIOCRUZ, em 12/11/2009

Getúlio Vargas e a Era Vargas

O TIGRE E A DEMOCRACIA: O CONTRATO SOCIAL HISTÓRICO

CÂMARA DOS DEPUTADOS CENTRO DE FORMAÇÃO, TREINAMENTO E APERFEIÇOAMENTO PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICA E REPRESENTAÇÃO PARLAMENTAR

1) TAMANHO DO CONTENCIOSO GERAL:

ATA DA SESSÃO ORDINÁRIA DO DIA 09 DE JUNHO DE 2014 Às vinte horas do dia nove de junho de dois mil e quatorze, na sede da Câmara Municipal, reuniu-se

OS SABERES DOS PROFESSORES

Processos Técnicos - Aulas 4 e 5

Os desafios do Bradesco nas redes sociais

Equações do segundo grau

TRATADOS INTERNACIONAIS E SUA INCORPORAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO 1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E TRATADOS INTERNACIONAIS

Em recente balanço feito nas negociações tidas em 2009, constatamos

Enquete. O líder e a liderança

COMO FAZER A TRANSIÇÃO

RELATÓRIO DE ATIVIDADE CURSO DE INICIAÇÃO POLÍTICA ETEC-CEPAM

CURSO E COLÉGIO ESPECÍFICO. Darcy Ribeiro e O povo brasileiro Disciplina: Sociologia Professor: Waldenir 2012

OS PROCESSOS DE TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL EM UM DESENHO CONTEMPORÂNEO

RELACIONAMENTO JURÍDICO DO ESTADO BRASILEIRO COM INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS, NO QUE CONCERNE À EDUCAÇÃO

PROJETO DE LEI N o, DE 2008.

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Europa no Século XIX FRANÇA RESTAURAÇÃO DA DINASTIA BOURBON LUÍS XVIII CARLOS X LUÍS FELIPE ( )

3 Dicas MATADORAS Para Escrever s Que VENDEM Imóveis

EXPEDIENTE RELIZAÇÃO: PREFEITURA DE SANTO ANDRÉ PREFEITO: JOÃO AVAMILENO VICE-PREFEITA: IVETE GARCIA

Jusnaturalismo ou Positivismo Jurídico:

Exacerbado, atual nacionalismo é pregado por quem veste Prada

O Dinheiro ou a Circulação das Mercadorias. O Capital Crítica da Economia Política Capítulo III

O Sindicato de trabalhadores rurais de Ubatã e sua contribuição para a defesa dos interesses da classe trabalhadora rural

Marcas do profissionalismo e eficiência

Como se livrar da humilhação

Necessita MISEREOR de Estudos de linhas de base? Um documento de informação para as organizações parceiras

ASSESSORIA DE IMPRENSA 1 Felipe Plá Bastos 2

Transcrição:

O século XX foi o século do trabalho. Foi o século em que este deixou de ser um fato entre outros da existência humana e se tornou seu aspecto central. O trabalho deixou de estar submetido aos tempos da natureza e às variáveis climáticas e passou, ele próprio, a reger o tempo dos homens. Deixou de ser apenas meio de subsistência e tornou-se, para um número cada vez maior de pessoas, elemento constitutivo de identidade. O século XX cristalizou mudanças radicais que se iniciaram pelo menos duzentos anos antes de 1901: nele é que se consagrou o trabalho como um criador permanente de riquezas e nele indivíduos foram transformados em trabalhadores 1. O século XX também foi o século em que o trabalho praticamente mudou de lugar: na esteira de movimento iniciado no XVIII, a dissolução (ora violenta, ora espontânea) das sociedades campesinas e atomizadas tradicionais, na maior parte do Globo, originou as grandes massas nas cidades e fez com que, nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, nada se tornasse mais inevitável do que o aparecimento 2 dos movimentos urbanos de trabalhadores. A novidade dos novecentos foi a frequência, cada vez maior, com que foram sequestrados esses movimentos, ora por ideologias de Direita, ora por ideologias de Esquerda, em um confronto que marcou dramaticamente essa Era dos Extremos. É exatamente em meio a esse embate de forças e mudanças estruturais em âmbito global que é instalada, no Brasil, em 1941, a Justiça do Trabalho. Lembremos que, naquele ano, o mundo estava em plena Segunda Guerra Mundial 3 que, antes de tudo, foi uma guerra civil ideológica internacional, como defende Hobsbawm. Isso porque suscitou as mesmas questões na maioria dos países ocidentais, ou seja: as linhas que separavam as forças pró e antifascistas cortavam cada sociedade, cada país envolvido - e o Brasil não era exceção 4. Também é nesse século de polarização ideológica e de mudanças radicais no mundo do trabalho que surge a Organização Internacional do Trabalho (1919) e tornase crescente o estabelecimento de ógãos jurisdicionais e a produção de normas de direito do trabalho pelos Estados, em países díspares como Sri Lanka, Inglaterra, Itália, Estados Unidos, França ou Austrália. Pode-se dizer que essas iniciativas, transcendendo a fonte ideológica de que derivaram em cada país, acabaram por se tornar, imediatamente ou depois, outra maneira de se resolver conflitos cada vez mais presentes nas grandes cidades: aqueles oriundos da questão social. 1 KRAWULSKI, E. (1998). A orientação profissional e o significado do trabalho. Revista da Associação Brasileira de Orientadores Profissionais, Florianópolis, 2(1), 5-19. 2 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções 1789 a 1848, 11ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1998.. 3 O Brasil começaria sua participação militar na guerra em 1942. 4 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

No Brasil, como já se aventou aqui, a produção de uma legislação social e a instalação da Justiça do Trabalho em 1941 foram influenciadas também por esse confronto de forças de que nos fala Hobsbawm, bem como pelo crescimento da classe média e do operariado urbano em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro. Isso a despeito do Estado Novo ter sido bem-sucedido no sentido de convencer a todos que essas iniciativas se deviam apenas à generosidade descompromissada de Getúlio Vargas e ela não era tão descompromissada assim: o trabalhismo de Vargas trazia vantagens reais e substanciais à crescente massa de trabalhadores urbanos, mas ele foi habilidoso em outorgar direitos que, na verdade, eram genuinamente reivindicados por essa classe. Conseguiu, assim, fazer dela sua principal aliada e base para sua permanência no poder. Arquivo Iconographia (Arquivo Nacional) No que tange especificamente à instalação da Justiça do Trabalho, podemos entrever traços desse confronto ideológico de forças quando é enviado ao Congresso, em 1935, o anteprojeto da lei que instituiu e organizou essa Especializada (Decreto n. 1.237/1939): sucedem-se as discussões entre Oliveira Viana (sociólogo e jurista, consultor do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, um dos autores do anteprojeto) e o Prof. Waldemar Ferreira (relator na Comissão de Constituição e Justiça) 5. Ferreira, como outros intelectuais na década de 1930, era desfavorável à implantação de uma Justiça do Trabalho no Brasil. Contrariamente a Viana, era partidário de um individualismo jurídico assentado na idéia de contrato do Código Civil. Não acreditava que os conflitos trabalhistas necessitassem de novos órgãos, 5 FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Breve História da Justiça do Trabalho. In: FERRARI, Irany et al. História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, 2ª ed. São Paulo: LTr, 2002.

novos processos, novos ritos ou nova jurisprudência. Chegou a chamar de fascista o projeto de Viana 6. Essa acusação de que a Justiça do Trabalho tem raízes fascistas repetiu-se com alguma frequência ao longo do tempo. Podemos fazer algumas observações quanto a ela: embora houvesse franca simpatia pelo fascismo em setores do governo de Getúlio Vargas, as normas de direito do trabalho (e consideramos a existência da Justiça do Trabalho como um direito do trabalhador) também surgiram em países de tradição liberal naquele período, como Estados Unidos e Inglaterra. Além disso, historicamente, leis/órgãos jurisdicionais trabalhistas antecederam em muito o fascismo do século XX: os primeiros organismos especializados na solução dos conflitos trabalhistas, os 7 Conseils de Prud hommes, surgiram na França em 1806. Ademais, como bem explicita o filósofo e professor da London School of Economics, John Gray, o mercado nascerá inevitavelmente sufocado por uma miríade de restrições e regulamentos. Elas surgirão espontaneamente, em resposta a problemas sociais específicos, não como elementos de qualquer grande projeto. Por isso, já no século XIV, havia grande número de regulamentos que, embora rudimentares e localizados, tentavam abrandar os custos sociais dos incipientes 8 mercados europeus, como a Lei dos Aprendizes na Inglaterra. Destarte, embora a ameaça comunista ou as forças fascistas tivessem pressionado a maior parte dos Estados a instituir órgãos jurisdicionais e leis trabalhistas, essas iniciativas estatais transcenderam as bases ideológicas dos respectivos Estados, até porque têm raízes históricas anteriores, sobretudo no que concerne ao direito individual do trabalho. De certa forma, essa conclusão está presente na Exposição de Motivos da Comissão Elaboradora do Projeto de Organização da Justiça do Trabalho, de 1938, que era composta por Oliveira Viana, Luiz Augusto de Rego Monteiro, Deodato Maia, Oscar Saraiva, Geraldo Faria Baptista e Helvecio Xavier Lopes: Este projeto não é uma cópia ou tradução desta ou daquela legislação estrangeira: foi concebido e executado, tendo os seus elaboradores a sua atenção voltada inteiramente para as condições da nossa sociedade, da sua estrutura social e econômica, principalmente. Os pontos de contato ou semelhança que a organização nele proposta para os nossos tribunais do trabalho possam ter, efetivamente, com a organização dos mesmos tribunais em outros povos, resultam não de uma imitação literal de textos legislativos, mas da identidade fundamental das causas e dos objetivos que, em todos estes povos, determinaram e justificaram o aparecimento destas novas instituições jurídicas. 9 6 CARVALHO, José Murilo de. A Utopia de Oliveira Viana. In: Revista estudos históricos, vol. 4, nº 07. Rio de Janeiro: 1991. 7 FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Op. cit.. 8 GRAY, John. Falso amanhecer. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1999. 9 A Exposição de Motivos pode ser encontrada na Terceira Parte do livro Problemas de Direito Corporativo, de Oliveira Viana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1938 (há edição mais recente, da Câmara dos Deputados, de 1983).

Por outro lado, no que diz respeito às relações coletivas de trabalho, não há como negar que o Estado Novo brasileiro tenha tentado anular ao invés de mediar os conflitos, incorporando e neutralizando totalmente os sindicatos, proibindo violentamente a greve, etc. As características de inspiração realmente corporativistas/fascistas do Trabalhismo de Vargas encontraram-se no âmbito do Direito Coletivo e no papel que a Justiça do Trabalho teve de desempenhar com relação a ele no auge da Ditadura. Contudo, mesmo aqui cabem algumas observações: Arnaldo Süssekind já explicitou que as principais fontes do Direitos do Trabalho no Brasil foram o Primeiro Congresso Brasileiro de Direito Social; as primeiras Convenções e Recomendações da OIT; a Encíclica Papal Rerum Novarum e os pareceres de juristas como Evaristo de Moraes, Oscar Saraiva e Oliveira Viana. 10 Pois bem, embora a ação política do Estado Novo, no que concerne às relações coletivas de trabalho, tenha tido características fascistas/ditatoriais, o corporativismo de homens como Oliveira Viana, que presidiu a citada Comissão Elaboradora do Projeto de Organização da Justiça do Trabalho, não tinha raízes fascistas, mas católicas. No primeiro caso, as corporações estão subordinadas ao Estado, são órgão do Estado. No segundo, as corporações se contrapõem ao Estado 11. Seja, como muitos intelectuais de sua época, Viana era um liberal conservador que não simpatizava, por exemplo, com a ideia de um culto ao líder (evitava comparecer às homenagens a Vargas), nem defendia a dissolução do indivíduo na política. Apenas preferia o conceito de pessoa, retirado da tradição católica, ao de indivíduo (a pessoa sendo o indivíduo inserido numa rede de relações, mas que ainda assim mantém sua identidade, que deve ter seus direitos respeitados 12 ). Ademais, para os primeiros defensores da Justiça do Trabalho, esta adquiria um caráter civilizatório no Brasil. Não se tratava de cinismo, mas de uma crença real. Viana defendia que essa Especializada era uma maneira de impedir que os 13 desfavorecidos dependessem unicamente da boa vontade dos mais abastados. Sobre o Poder Judiciário em geral, assim afirmou, quase duas décadas antes de se tornar consultor jurídico do antigo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio:... nem a generalização do sufrágio direto, nem o selfgovernement valerão nada sem o primado do Poder Judiciário sem que este poder tenha pelo Brasil todo a penetração, a segurança, a 10 SUSSEKIND, Arnaldo. Entrevista concedida à juíza Magda Biavaschi para subsidiar sua tese de doutoramento em Economia Aplicada na ÚNICAMP: O Direito do Trabalho no Brasil 1930/1942: A construção do sujeito de direitos trabalhistas. Disponível em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000385083 11 INCISA, Ludovico. Corporativismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, 5ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, vol. 1. 12 CARVALHO, José Murilo. Op. cit. 13 VIANA, Oliveira. Direito do trabalho e democracia social o problema da incorporação do trabalhador no Estado. Rio de Janeiro: José Olímpio 1951, p. 23.

acessibilidade que o ponha a toda hora ao alcance do mais humilde e desamparado... o sufrágio direto, sem a generalidade das garantias trazidas pelo Judiciário à liberdade civil do cidadão, principalmente do homem-massa do interior, de nada valerá... estes desamparados e relegados continuarão entregues aos caprichos dos mandões locais, dos senhores das aldeias e dos delegados cheios de arbítrios 14 Outra característica que deu à Justiça do Trabalho sua pecha de fascista foi seu poder normativo, defendido inicialmente por Oliveira Viana no anteprojeto da lei que a organizaria e, depois, em uma série de artigos publicados no Jornal do Commercio 15 (em que ele demonstrava grande conhecimento das discussões juslaborais em andamento nos Estados Unidos e na Europa, bem como da Justiça e do Direito norte-americanos, que, afirmava, eram suas reais inspirações nesse quesito). Sobre essa questão, assim já resumiu Arnaldo Süssekind: Por que criticam, por que chamam de corporativismo esse poder normativo? Porque a Magistratura del Lavoro, isto é, a Justiça do Trabalho da Itália, o adotou. Acontece que o poder normativo nasceu muito antes, numa época em que nem se falava em Mussolini. Nasceu na Nova Zelândia, no início do século, depois passou para a Austrália e está no México desde 1919. No México o poder normativo é muito mais amplo, inclusive, do que no Brasil. 16 Por fim, não há como se concordar com alguns intelectuais que, sobretudo nos primeiros anos da Justiça do Trabalho, a acusaram de ser mero instrumento de um governo autoritário para a domesticação dos operários. Se é verdade que a Justiça do Trabalho, em seus primórdios, foi incubida de substituir os atores dos conflitos coletivos, também é verdade que a relação dos trabalhadores com essa Especializada foi ambígua: alguns a enxergavam como estratégia de dominação do Estado, outros encontraram nela um recurso real para lutar por seus direitos. Exemplo disso é a história de um dos milhares de líderes operários existentes no Brasil, de nome João Dirceu Mota. Dele nos dá notícia o brasilianista John French 17. Nascido em 1916, Mota costumava dizer, quanto à Consolidação das Leis do Trabalho: Esta é minha Bíblia. Sob seu braço não havia nenhuma bomba anarquista, 18 nenhuma arma revolucionária, apenas um livro. Se esse livro possuía tamanha 14 VIANA, Oliveira. Populações meridionaes do Brasil, 2ª ed. São Paulo: Monteiro Lobato e Cia., 1922. 15 Estão reunidos no livro Problemas de Direito corporativo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1938. Também há edição mais recente, da Câmara dos Deputados, datada de 1983. 16 SUSSEKIND, A. Entrevista com Arnaldo Sussekind. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, p. 116-117. Entrevista concedida às historiadoras Ângela de Castro Gomes e Celina D Araujo. 17 FRENCH, John D. Afogados em leis a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros, 1ª ed. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001. 18 BAK, Joan. O homem do Livro: Esta é minha Bíblia. In: FRENCH, John D. Op. cit.

importância, é porque esse trabalhador sabia que podia contar com uma Justiça nova, composta por magistrados idealistas, cuja média etária não atingia os 30 anos 19. Esse idealismo também se evidencia em muitas decisões de processos que compõem o acervo histórico do Arquivo do Tribunal Superior do Trabalho. Setenta anos depois de sua instituição, percebe-se que Oliveira Viana e outros intelectuais foram os vencedores da discussão acerca da necessidade, ou não, da implantação de uma Justiça do Trabalho no Brasil. O Projeto de Organização que eles escreveram, fruto de muitos estudos que levaram em conta as realidades regionais do país, teve como corolário os Decretos 1.237/1939 e 1.346/1939, que organizaram a Especializada e lhe deram boa parte da estrutura que hoje nos é familiar. Também foram os esforços desses homens que possibilitaram sua instalação por Getúlio Vargas em 1941, em meio a várias festividades no estádio Vasco da Gama. Multidão celebra a instalação da Justiça do Trabalho no Vasco da Gama Apesar do início conturbado, o fato é que a Justiça do Trabalho, fruto indireto dos extremos que compuseram o século XX, conseguiu transcendê-los. Aproxima-se, cada vez mais, do que seus idealizadores vislumbraram para ela. (Raquel Veras Franco Analista Judiciária - CGED/TST) 19 FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Breve História da Justiça do Trabalho. In: FERRARI, Irany et al. História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, 2ª ed. São Paulo: LTr, 2002.