A legitimidade entre os cativos da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Franca - Século XIX



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A legitimidade entre os cativos da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Franca - Século XIX Maísa Faleiros da Cunha* Introdução1 Com a expansão das áreas de agro-exportação no Sudeste, aumenta a necessidade de mão-de-obra na região. Durante o século XIX, o Brasil importa levas de africanos e mesmo após a proibição formal do tráfico em 1830, o comércio transatlântico não cessa, ao contrário, a partir da segunda metade desta década o número de escravos entrados no Brasil se eleva consideravelmente2. Com a abolição do tráfico em 1850, as províncias do Sudeste passam a adquirir escravos, principalmente, via o tráfico interprovincial e intraprovincial, apesar da entrada ilegal de escravos ter persistido alguns anos após 1850. Neste contexto mais amplo, procuramos verificar o comportamento sóciodemográfico da população escrava na Capitania/Província de São Paulo, em particular, em uma localidade do norte paulista, Franca. Os estudos sobre a população escrava em São Paulo concentram-se, em sua maioria, nas plantations localizadas no Vale do Paraíba e no Velho Oeste Paulista. Portanto, é nas localidades em que a produção é voltada para a exportação que mais se conhece as características e modos de vida da população escrava. Neste sentido, Franca apresenta especificidades: mesmo não estando inserido na grande lavoura de exportação, esse município possuía uma economia dinâmica voltada para o mercado interno - produção de bens alimentícios e pecuários e a posição como entreposto comercial, além de uma população considerável, tanto de livres quanto de escravos3. Em 1824, a população total da Vila Franca era de 2.849 habitantes, dos quais 1.892 livres, 954 escravos, 2 libertos e um em que não consta a condição social. A população escrava chegava a 33,5% da população total e apresentava razão de sexo de 138 homens para 100 mulheres (Rocha, 2002: 25). Segundo a Lista Nominativa de 1829, a população total da Vila era de 3.962 habitantes, sendo 2.485 livres, 1.471 escravos e 6 libertos. A * Mestranda em Demografia (IFCH/INICAMP). 1 Trabalho originalmente submetido ao XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, a ser realizado em Caxambu - MG Brasil, de 20-24 de Setembro de 2004. 2 Segundo David Eltis (Apud Fragoso e Florentino, 1987: 158) entraram no Brasil 482.439 escravos africanos entre 1831-1850. 3 Sobre a evolução histórica e econômica de Franca e sua população escrava ver Cunha, M. F. A população escrava no município de Franca. In XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Ouro Preto MG, 2002.

2 população escrava elevou sua participação no total da população para 37,2% e apresentou razão de sexo de 135 (Rocha, 2002: 30). Em 1836, o município de Franca4 apresentava 3.440 cativos (32,3%), num total de 10.664 habitantes. Como era de se esperar, havia no município muito mais homens (55,73%) que mulheres (44,27%) na população escrava. A razão de sexo entre os escravos chegava à cifra de 126. Cerca de 71,2% da população escrava tinha idade inferior a 30 anos, a faixa etária de 0 a 9 anos representava 25,1% da população cativa. Nesse período, Franca ainda não se enquadrava como um município agro exportador como os do Vale do Paraíba vinculados à cafeicultura ou os do quadrilátero do açúcar. As atividades desenvolvidas na região, nas primeiras décadas do século XIX, eram a pecuária e a produção de gêneros (arroz, milho, feijão, mamona, cana, algodão, dentre outros)5. Além destas, destacavam-se também a produção têxtil (tecelagem de algodão e tear) e o comércio do sal. Os gêneros alimentícios produzidos na localidade abasteciam viandantes que percorriam a Estrada dos Goyases, uma vez que a região de Franca exerceu a posição de entreposto comercial ao interligar Minas Gerais e São Paulo a Goiás e Mato Grosso. O gado era destinado ao comércio e consumo em Minas Gerais, à Corte, e ao Vale do Paraíba paulista. De acordo com os dados do Censo de 1872, no município de Franca6 havia 3.398 escravos, dos quais 1.809 homens (53,2%) e 1.589 mulheres (46,8%) com razão de sexo igual a 114. As crianças de 3 a 10 anos7 correspondiam a 16,54% da população escrava no município de Franca e os menores de 30 anos, 57,56%. A participação de cativos no total da população declinou de 32,30% em 1836 para 16% em 1872 e em 1887 chega a 9,5%. A Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Franca, em 1887, apresentava 1.283 escravos 685 homens (53,40%) e 598 mulheres (46,60%) e razão de sexo 115. A malha ferroviária da Mogiana atingiu primeiro Batatais, município vizinho, em 1886 e, um ano depois, Franca. A chegada da ferrovia e da nova ordem econômica agroexportadora, com a formação das grandes lavouras de café em Franca e nos 4 Em 1836, o município de Franca compreendia, além do distrito da Vila, os distritos de Santa Bárbara, do Chapadão, do Carmo, de Cana Verde e de Cajuru. 5 MÜLLER, Daniel Pedro (org.). Ensaio d um Quadro Estatístico da Província de São Paulo - 1836. São Paulo, reedição Literal Secção de Obras d O Estado de São Paulo, 1923. 6 Em 1872, o município de Franca era formado pelas Paróquias de N.S. do Carmo da Franca, Santa Bárbara de Macaúbas, Santa Rita do Paraíso e Santo Antonio da Rifaina. 7 A idade das crianças no Recenseamento de 1872 iniciam-se a partir dos 3 anos - já que os dados do Recenseamento foram recolhidos em 1874 e ao que tudo indica não se considerou a data de referência do Recenseamento (1872) após a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871).

3 municípios circunvizinhos contribuíram para o declínio do comércio de sal e da pecuária no final do século XIX, num momento em que a escravidão já estava com seus dias contados. Neste trabalho, busca-se verificar que papel desempenhou o contexto sócioeconômico local e provincial no comportamento demográfico da população escrava - especificamente na legitimidade dos filhos de cativos - e num sentido mais amplo, na formação da família escrava. A Legitimidade entre os Cativos da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Franca: 1805-1888 A legitimidade entre os cativos da Paróquia N. S. Conceição de Franca é analisada a partir dos registros paroquiais, num total de 4.760 batizados8 para o período entre 1805 e 1888. Consideramos os registros referentes aos escravos adultos, aos filhos de escravos e de ex-escravos9. Como legítimas, consideram-se as crianças nascidas após o casamento de seus pais perante a Igreja Católica, e ilegítimas - classificadas pela documentação eclesiástica de naturais - as crianças filhas de mães solteiras. Para a presente análise, dividimos os batizados em 3 sub-períodos: 1805-1850 (compreende o início dos registros no livro de batizados até o fim do tráfico externo de escravos); 1851 1871 (momento posterior ao encerramento do tráfico à promulgação da Lei do Ventre Livre); 1872-1888 (período pós Lei do Ventre Livre e os últimos anos da escravidão). Os períodos considerados levam em conta o contexto sócio-econômico local e provincial, o conjunto de leis promulgado pelo Estado concernente ao elemento cativo, e, como esses fatores afetaram os interesses dos senhores e as possibilidades permitidas aos escravos. Como podemos verificar na tabela 1, os resultados indicam que, num contexto de economia voltada para a produção interna como o verificado em Franca, a legitimidade entre os escravos da paróquia N. Senhora da Conceição são expressivos, se aproximando mais de valores de legitimidade referentes às áreas de plantations no Rio de Janeiro e São Paulo do que em áreas como a localidade mineira de Montes Claros que apresenta um contexto econômico semelhante ao francano. 8 Não havia livros separados para escravos e livres. 9 Durante todo o período analisado, encontramos 30 escravos adultos e 55 registros referentes a pais exescravos (30 registros de filhos legítimos de forros/libertos e 25 registros de filhos naturais de mães forras/libertas).

4 Tabela 1 Proporção de legitimidade entre os filhos de escravos. Franca, 1805-1888. Períodos Legítimos (%) Ilegítimos (%) Não consta* (%) Total N. registros 1805-1850 44,9 52,7 2,4 100,0 2270 1851-1871 51 48,5 0,5 100,0 1489 1872-1888 37,1 62,9 0 100,0 1001 Total 45,1 53,6 1,3 100,0 4760 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livros de Batizados 1-12. (*) Não consta = escravos adultos e crianças sem filiação. 1805-1850 A primeira metade do século XIX é o período em que ocorre a formação e povoamento efetivos da localidade estudada. A pecuária, o comércio do sal e a produção de gêneros alimentícios são as suas principais atividades econômicas. Os escravos, acompanhando seus senhores mineiros, passam a fazer parte do cenário local, e é neste momento que se formam as primeiras escravarias em Franca. A proporção de 44,9% de filhos legítimos de escravos, nesse período, é relativamente alta quando comparada com os resultados apresentados por Botelho (1999: 144) para Montes Claros, no qual 16,4% das crianças escravas eram legítimas entre 1815-1819 e 11,3% entre 1840-1844, e com os de Faria (1994) para algumas freguesias do Rio de Janeiro. Para este intervalo temporal, as localidades que mais se aproximaram de Franca segundo o estudo de Faria são Marapicu (Nova Iguaçu) e São Salvador, ambas áreas rurais fluminenses, com os respectivos valores de legitimidade, 32,7% para os anos 1834-1840 e 40,8% para o ano de 1830 (p. 338). Quais são as explicações possíveis para tais resultados? A localização geográfica de Franca como área fronteiriça com Minas Gerais, não teria estimulado o casamento de escravos em virtude da necessidade de povoamento do norte paulista? Segundo Chiachiri (1986), os limites entre São Paulo e Minas Gerais no norte paulista nem sempre foram claros. Na segunda metade do século XVIII, a descoberta de veios auríferos no Descoberto do Rio Pardo suscitou pedidos de anexação da área à Capitania de Minas Gerais. São Paulo tinha dificuldades em defender o sertão do rio Pardo por falta de população. No século XIX, os mineiros afluíram para a região de Franca em busca de novas terras para as atividades agropecuárias. E foram os mineiros, então moradores na Capitania paulista, que resistiram às investidas dos moradores de Jacuí para anexar o território francano a Minas Gerais. Em 1805, os moradores do arraial se empenharam em elevá-lo a freguesia, sendo necessária a intervenção do presidente da Província de São Paulo, Franca e Horta, homenageado através da nomeação da Freguesia com o seu nome.

5 O embate sobre as fronteiras entre o lado paulista e mineiro perdurou por longos anos. Em 1866, Franca perdeu uma parte de seu território para Jacuí. Somente no século XX os limites de São Paulo e Minas Gerais nessa região foram delimitados. Outro fator relevante para os casamentos entre os cativos é a razão de sexo. As escravarias nas áreas de plantation apresentavam elevado número de escravos e considerável desequilíbrio entre os sexos - com razões de masculinidade que se aproximavam de 200 - o que possibilitou a formação de um mercado matrimonial mais amplo para as mulheres escravas em razão da predominância masculina (e, conseqüentemente, muitos escravos não conseguiam arranjar parceiras). Já no município de Franca, segundo dados do Censo de 1836, a razão de masculinidade entre os escravos não era das mais altas, 126. Levando em conta que a grande maioria dos casamentos se realizavam entre os cativos de um mesmo proprietário10, as opções matrimoniais para os escravos não parecem ter sido tão restritas - apesar de Franca se caracterizar pela predominância de pequenas e médias escravarias11. Devemos considerar que fatores como a presença de párocos nas igrejas locais, assim como o zelo em anotar os registros, também contribuem para a proporção de legítimos entre os escravos. Há registros paroquiais de batismo para todo o período analisado, com exceção de 1831, o que indica a permanência de párocos em Franca. Neste período, acreditamos que houve interesse por parte dos senhores em promover o casamento de seus escravos, em parte para povoar a região e como forma de garantir a ampliação de suas posses, mesmo que isso não fosse uma preocupação, uma vez que o tráfico externo garantia a reposição de mão de obra. 1851-1871 Este período é peculiar na história da escravidão no Brasil por ser posterior ao fim do tráfico transatlântico de escravos. São também neste momento, que algumas leis passam a interferir na relação senhor-escravo, quais sejam, a Lei de 1869 que proibia a separação de famílias escravas perante venda ou doação, ou seja, a separação de escravos casados e de crianças pequenas de seus pais (esta lei impedia a separação de um pai ou uma mãe escravos de seus filhos menores de 15 anos, idade que caiu para 12 anos em 1872) e a Lei de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, que considerava livre toda criança nascida de mãe escrava. 10 Verificamos a elevada freqüência dos casamentos endogâmicos ao analisar os registros paroquiais de batismo que anotam ambos os pais da criança. 11 Oliveira (1997: 107), ao analisar os inventários post-mortem entre 1875/1885, demonstra que 61,6% dos escravos estavam em plantéis de 1 a 10 escravos.

6 Entre 1851-1871 que vislumbramos a maior proporção de filhos legítimos de escravos na Paróquia de Franca (51%), sendo superior ao conjunto dos anos anteriores (1805-1850) e posteriores (1872-1888). Na segunda metade do século XIX, Franca já ocupa a posição consolidada de entreposto comercial (comércio do sal e gado), com sua economia voltada para o mercado interno. De acordo com Faria (1994: 338), a única localidade fluminense que apresentou aumento da legitimidade entre 1860-1870 foi São Salvador (de 18,9% em 1860 para 29,1% em 1870). A explicação para tal fato se encontra na concorrência de áreas açucareiras próximas, que devem ter contribuído para que a legalidade e estabilidade dos casamentos de escravos fossem permitidas, a fim de ampliar as posses de escravos. As áreas que produziam café no Velho Oeste paulista e no Vale do Paraíba concorriam para a compra de escravos de Franca? Ao que parece, os interesses dos senhores em ampliar suas posses parece ter estimulado o casamento de escravos tanto em São Salvador quanto em Franca. O estímulo aos casamentos pode ter diminuído com a lei de 1869, pois o tráfico inter e intraprovinciais seria prejudicado ao impedir a separação de casais escravos e de pais de seus filhos pequenos. No entanto, o efeito dessa lei será sentido no próximo período, 1872-1888. 1872-1888 Entre 1872-1888 observamos uma considerável queda (13,9%) na proporção de legítimos entre os filhos de escravos em relação ao período anterior (1851-1871). As crianças nascidas após a Lei do Ventre Livre (1871) eram consideradas livres. Neste período, levantamos a hipótese de que as leis sobre o elemento servil lei de 1869 e de 1871 influenciaram a postura senhorial e afetaram a vida dos escravos. A proporção de filhos legítimos de escravos em Franca (37,1%) é superior à encontrada em Montes Claros (16,7% entre 1872-1876) (Botelho, 1994: 144). Em Montes Claros, a proporção de legítimos entre os filhos de escravos se eleva entre 1840-44 e 1872-1876, de 11,3% para 16,7%, ao contrário de Franca, que apresenta declínio entre 1805-1850 e 1872-1888, respectivamente de 44,9% para 37,1%. Segundo pesquisa feita por Faria (1994), os valores mais baixos de legitimidade no século XIX são os verificados na década de 1870. Santa Rita (cidade carioca), por exemplo, em 1875, não apresenta sequer uma criança filha de escravos legítima. Campinas, em 1872, tem um dos mais altos valores de legitimidade, cerca de 80% das crianças de 1 a 9 anos presentes nas posses médias e grandes são legítimas (Slenes, 1999: 102). No entanto, se o valor de legitimidade fosse revisto alguns anos depois, poderia

7 declinar, uma vez que Slenes observa queda na proporção de escravos casados e viúvos entre 1872-1887. De acordo com a análise das fontes, no período entre 1872-1888 o casamento de escravos sacramentado pela Igreja não foi estimulado. Aparentemente, as leis de 1869 e 1871 diminuíram o interesse dos senhores de escravos em unir formalmente seus cativos, sem, no entanto, desestimulá-los a batizarem as crianças filhas de suas escravas. Os resultados para a Paróquia de Franca nos levam a concordar com Botelho (1994) sobre o fato de que a família escrava em Franca (assim como em Montes Claros) deve ser entendida desvinculada do casamento formal especialmente no último período analisado (1872-1888). Concluímos que em Franca se corrobora o que Slenes (1999) e Rocha (2004) encontraram para Campinas, de que as mudanças na legitimidade escrava ocorreram no controlar branco e não no lar negro, ou seja, as mudanças estão mais ligadas à postura senhorial perante a oficialização das uniões cativas do que ao caráter passageiro de tais relacionamentos. Considerações Finais Franca apresenta uma economia voltada para o mercado interno nos períodos considerados. No entanto, ao contrastar a proporção de filhos legítimos de escravos com regiões que apresentam uma economia aparentemente semelhante, como Montes Claros, verificamos que as proporções são significativamente diferenciadas. Os valores apresentados pela legitimidade cativa na Paróquia de Franca se aproximam daqueles apresentados pelas áreas de plantation de São Paulo e Rio de Janeiro. O contexto econômico é um fator relevante para a compreensão da família escrava, entretanto, não é o único capaz de explicá-la. Desta forma, a localização geográfica de Franca região limítrofe com Minas Gerais, as leis que interfiram na relação senhor - escravo, destacando-se as de 1869 e 1871, assim como e a postura senhorial ou o controlar branco são importantes fatores explicativos dos resultados referentes à legitimidade entre os escravos da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Franca. Bibliografia: Almanak da Província de São Paulo para 1873. Organizado e publicado por Antônio José Baptista de Lune e Paulo Delfino da Fonseca. Edição Fac-similar, Imprensa Oficial do Estado S. A. IESP, 1985. Almanaque Histórico da Franca - Obra de Compilação Histórica do Município em seus Vários Aspectos. Hygino Antônio do Nascimento e Eufrásio Moreira (orgs). Franca (SP): Tipografia Renascença, 1943.

8 AISSAR, A. G. Natalidade e Mortalidade em Franca: Estudo de Demografia Histórica (1800-1850). Tese de Doutoramento, São Paulo: FLCH/USP, 1980. BACELLAR, C. A. & SCOTT, A. S. V. Sobreviver na Senzala: Estudo da Composição e Continuidade das Grandes Escravarias Paulistas, 1798-1818. História e População - Estudos sobre a América Latina. São Paulo, 1990. P. 213-217. BASSANEZI, M. S. C. B. (org.). São Paulo do Passado: Dados Demográficos. Nepo/Unicamp, 1998. BATISTA, D. J. Cativos e Libertos: A Escravidão em Franca entre 1825-1888. Dissertação de Mestrado, Franca: UNESP-FHDSS, 1998. BOTELHO, T. R. Famílias e escravarias: demogragfia e família escrava no Norte de Minas Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, São Paulo, 1994. CHIACHIRI FILHO, J. Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do Imperador. Gráfica e Editora Ribeirão: Ribeirão Preto, 1986. FARIA, S. S. C. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Tese de Doutoramento, Niterói: UFF, 1994. FRAGOSO, J. L. R e FLORENTINO, M. G. Marcelino, Filho de Inocência Crioula, Neto de Joana Cabinda: Um Estudo sobre Famílias Negras em Paraíba do Sul (1835-1872). In Estudos Econômicos 17 (2), Maio/Ago. 1987, Pp. 151-173. MOTTA, J. F. Corpos Escravos, Vontades Livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999. OLIVEIRA, L. L. Economia e História: Franca - Século XIX. Franca: UNESP-FHDSS: Amazonas Prod. Calçados S\A, 1997. Série História Local 7. ROCHA, I. P. Demografia Escrava em Franca: 1824-1829. Trabalho de Conclusão do Curso de História, Franca: UNESP/FHDSS, 2002. ROCHA,C. M. Gerações da Senzala: Famílias e Estratégias no contexto dos tráficos africano e interno. Campinas, Século XIX. Tese de Doutoramento, Campinas: Unicamp, 2004. SLENES, R. W. Na Senzala Uma Flor: Esperanças e Recordações na Formação da Família Escrava. 1ª edição. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1999. TOSI, P. G. Capitais no Interior: Franca e a História da indústria coureiro-calçadista (1860-1945). Tese de Doutoramento, Campinas: Unicamp/IE, 1998. Capítulos 1, 2, 3 e 4.