Palavras-chaves: identidade; alteridade; reserva indígena de Dourados, cultura e terra.

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Revista Geográfica de América Central Número Especial EGAL, 2011- Costa Rica II Semestre 2011 pp. 1-12 O ESPAÇO NA COMUNIDADE INDÍGENA DE DOURADOS IDENTIDADE E ALTERIDADE Resumo Marina Evaristo Wenceslau 1 Walter Guedes da Silva 2 A Reserva Indígena de Dourados RID é composta pelas aldeias Bororó e Jaguapiru, que estão situadas no município de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Nesta RID temos que considerar questões da identidade, alteridade e o confronto num mesmo espaço. As questões ligadas a identidade e a alteridade passam por situações de confrontos e conflitos, ora pela imposição de algumas lideranças, ora pela comunidade envolvente e até mesmo pela necessidade do trabalho fora da RID, tendo em vista o aumento populacional e concomitante a esta situação temos que considerar a diminuição do tamanho do espaço territorial para a produção, sustentação familiar e cultural. Isso é fundamental para a existência do Guarani. Assim, o objetivo principal é o de dar vóz aos indígenas da RID, tendo como procedimento metodológico o levantamento bibliográfico, documental e a história oral de vida que fundamentaram nossa pesquisa. Com relação a base teórica, tomamos as questões da organização interna do espaço e os reflexos da falta dos mesmos para a sustentação da cultura étnica ou a exclusão destes do seu próprio habitat. Assim, podemos verificar que a história oral de vida fundamentou o trabalho na RID e registrou mudanças das famílias para a periferia da cidade de Dourados. Palavras-chaves: identidade; alteridade; reserva indígena de Dourados, cultura e terra. 1 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: mwencelau_2005@hotmail.com 2 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: guedes@uems.br Presentado en el XIII Encuentro de Geógrafos de América Latina, 25 al 29 de Julio del 2011 Universidad de Costa Rica - Universidad Nacional, Costa Rica

2 Introdução Existe uma subjetividade quando falamos dos territórios indígenas, pois são marcas fundamentais quando do reconhecimento do espaço territorial indígena Guarani. Neste caso temos que considerar as emoções e a organização do espaço, pré estabelecida, no espaço familiar, tanto da extensa quanto a nuclear, através da história vivida, podendo ser observada na Reserva Indígena de Dourados RID, principalmente entre os Kayowá, localizados na cidade de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Portanto, quando observamos as questões territoriais podemos destacar os três espaços formados pela casa e terra ao redor da casa; a roça e a mata para a perambulação. A consciência cognitiva e física relativa ao território que traduz o sentimento da tradição, da organização, da espiritualidade, da produção de subsistência que estabelece o sentimento de pertença e o espaço que garante a identidade e a alteridade. O passado histórico dos Kayowá, na RID, é determinado pelo seu confinamento, no entanto, a sociedade circunvizinha dificulta toda e qualquer possibilidade de crescimento sócio-espacial. Destacamos o isolamento estabelecido pela sociedade envolvente tanto pela área urbana quanto pela rural. Mesmo assim, a questão cultural e identitária são consideradas como mecanismos de fortalecimento e reforçadas através de gerações através das danças, rezas e cantos. O que se espera com o presente artigo é refletir a respeito do espaço territorial, tendo em vista sua exigüidade, a super população, os saberes dos Kayowá e as transformações sofridas através do tempo. O espaço e os conflitos A RID é composta por duas aldeias: a Bororó e a Jaguapiru, que estão situadas no município de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Assim, temos questões ligadas a identidade cultural, onde a alteridade deste povo estabelece o confronto ora pela imposição de algumas lideranças, ora pela comunidade envolvente e até mesmo pela necessidade do trabalho fora da RID. Tais fatos nos leva a refletir o direito de preservar sua cultura no seu modo de ser indígena, unindo o que era antes e o que é agora. 2

3 Cantar, dançar e bater o umbaraca leva os Kayowá aos deuses tanto para agradecer o dia vivido, como mostrar a forma de caminhar e ver as possibilidades de viver e reviver a tradição. No entanto, o aumento populacional e concomitante a esta situação, temos que considerar a diminuição do espaço territorial para a produção, sustentação familiar e cultural, elemento fundamental para a existência do Kayowá. A diminuição do espaço se deu através do aumento populacional e a diminuição da terra recebida através da doação e também na demarcação. O espaço original doado era de 3.600ha, quando foi feita a demarcação território perdeu-se 61ha o que demonstra que o território efetivamente ficou em 3.539ha. Destacamos que os 3.600ha foram destinados para 300 pessoas, apenas. Hoje, o espaço de 3.539ha possui cerca de 11.000 pessoas (FUNASA), desta forma estes indígenas possui 0,3217272727ha por pessoa, se a terra fosse dividida proporcionalmente, é importante dizer que esta divisão não é aplicada para doação de terra nos assentamentos. Com toda esta complicação é importante dar vóz aos indígenas da RID através da história oral de vida, tendo o espaço desta comunidade demonstrando a identidade e sua alteridade, sendo este o objetivo principal, neste artigo. Na fala de cada entrevistado ficam registrados seus pensamentos, seus cantos, seu comportamento e o acreditar nos fatos determinado pelos deuses que sustentam suas vidas. Nestes procedimentos metodológicos temos determinado por cada depoente e sua visão de mundo através da entrevista, e também o levantamento bibliográfico e documental, em nossa pesquisa. Na base teórica fica a organização interna do espaço e os reflexos para a sustentação da cultura étnica ou a exclusão destes do seu próprio habitat. A história oral de vida fundamentou o trabalho de pesquisa na RID, e registrou mudanças de muitas famílias para a periferia da cidade de Dourados, em função da diminuição do espaço interno da RID. Segundo Santos, incorporando a concepção territorial à relação com identidade que, no caso, facilita o entendimento das relações indígenas, observando que: O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de 3

4 pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da resistência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2002, p. 9-10). Assim a identidade e a alteridade está relacionada com a cultura que se difunde quando os que dela compartilham se deslocam, ou quando sua comunicação e símbolos incluídos prevalecem sobre outras culturas. Segundo Faria (2003, p. 04): A terra indígena, na visão do Estado, é um espaço homogêneo, meio de produção onde estão distribuídos recursos naturais. Na concepção indígena, terra é um mosaico de recursos naturais, morais e espirituais; seu território, além de conter dimensões cosmológicas, o que não ocorre na concepção de território do Estado. No entanto, território para o Estado é tão somente suporte material onde exerce seu poder e soberania. Um dos aspectos marcantes das transformações nos territórios indígenas está projetado para a abertura de novas oportunidades pela agricultura de subsistência, pela educação ou pela manifestação cultural através da dança, artesanato, música, reza, indumentária, entre outros elementos culturais. Passado e presente identidade e alteridade A transmissão cultural entre o Guarani, principalmente para os Kayowá, quer seja de natureza espiritual ou material é feita de pai para filho, tendo como base o contar e recontar histórias, transmitindo conjuntos de idéias, usos, costumes e símbolos conservados através do tempo mesmo com todas as ações feitas pelo governo brasileiro que agiu e provocou mudanças quando da demarcação do território indígena transformando todo o espaço territorial antigo em territórios demarcados em aldeias e/ou reservas. A organização político-administrativa autoritaria sobre os indígenas, principalmente a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios SPI e depois com a Fundação Nacional do Índio - FUNAI impuseram o confinamento, dos Kayowá e todos os indígenas no Brasil, que passaram a viver em pequenas áreas, sem levar em 4

5 consideração a essência das diferenças de cada povo e cada comunidade. Este fato interferiu diretamente na organização das famílias extensas ou nucleares, ou seja, muitas aldeias foram tranformadas em um único espaço. O território que antes formava um tekohá, considerando que o espaço territorial (Tetã) é elemento vital para sua existência enquanto organização familiar e social. Segundo Mangolim (1993, p. 21): Como o Guarani situa sua vida num espaço essencialmente mítico-religioso, absorveu estes elementos com uma passividade difícil de ser entendido pelo não índio. Mas tratou de se defender como pode: escondeu os seus rituais, camuflou o prestígio visível do Ñande Ru e submete-se às formas de organização impostas de fora para sobreviver. Taylor trabalha a identidade como política de reconhecimento e Castells (1999, p.231) tem uma construção identitária por um viés sócio-cultural, entendendo como processo de construção do significado com base em um atributo cultural ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Estabelecendo o elo do passado com o presente, assim, os significados são identificados pelas manifestações culturais materiais e imateriais. Assegurando que a identidade é construída por meio da história, da geografia, da biologia e da memória coletiva, formando o conteúdo simbólico no particular e no plural. O Kayowá hoje reconstroe sua identidade fazendo valer a diversidade e a alteridade, apesar de ser coagido ao trabalho fora da RID, através da changa, com o gato ou o contrato direto com o usineiro ou fazendeiro. Segundo Suess (1995, p.71) alteridade é a Diferença e diversidade constitutivas de identidade. É a arma de resistência mais eficaz... A alteridade é o muro que separa o colonizador do santíssimo dos povos colonizados. A comunidade Kayowá, da RID, tem como fronteira as desigualdades dentro e fora da reserva. Hoje enfrentam a crise da super população, no entanto, compõe o grupo que colabora na formação tanto fora da reserva, quanto nas favelas e vilas na área urbana do município de Dourados. Toda esta situação provoca transformações sociais, econômicas e culturais vivenciadas hoje pelo Kayowá, que são obrigados a se 5

6 submeterem as mudanças que estabelece o distanciamento de seus familiares, o afastamento de sua cultura e a religiosidade. Hoje, identificam-se na RID muitas dificuldades sendo enfrentadas pela falta de possibilidades de produção alimentar, pois a população está alijada de um espaço para o cultivo. Em função disso um grande número de famílias se desloca para a área urbana buscando emprego para sua subsistência. Para os Kayowá, a terra, através do tekohá, é responsável pela formação das relações sociais e das festas religiosas que dão significado a vida política, social, cultural e econômica. Assim, sem terra o tekohá não é possível existir, desta forma a conservação cultural dos Kayowá passa por dificuldades, pois é o tekohá que estabelece a inter-relação com a vida, observando: o espaço para perambulação, o da roça e o mais importante, a aldeia. Desta forma o aumento populacional faz existir um espaço reduzido e a área de perambulação na RID inexiste. Para o Capitão Ireno Isnard apud Meihy (1991, p. 41), a terra é o que sustenta sua comunidade. Segundo ele: Antigamente a vida também era difícil... mas para o índio a vida nunca foi fácil... antes não tinha todas essas coisas do branco que tem hoje... índio plantava para comer... e conseguia as coisas que precisava por aí... A terra era grande... tudo isto aí era do índio e ele podia pegar o que quisesse dela... Com a chegada dos primeiros fazendeiros os índios começaram a aprender o gosto de outras coisas: sal, café, carne, sabão... estas coisas nós aprendemos depressa, coisas boas, não é?!... Havia uns poucos fazendeiros por perto e a gente se dava bem... eles davam alguma coisa que a gente precisa... foi bom enquanto eles ficaram para lá, e nós para cá... mas, tenho que dizer que com os brancos vieram muitos problemas... não foram só coisas boas que aconteceram, não!... Como existia muita terra, nós índios podíamos viver mais livres... ah!... aqui era uma mata só... e nós um punhadinho de famílias... Naquele tempo o índio podia ir solto por aí... andar de lá para cá... era tão diferente!... Tinha coisa boa, apesar da gente não ter o sal, o sabão... mas a comida 6

7 não faltava enquanto a gente estivesse trabalhando na terra... Índio precisa de terra... de terra grande, viu? Assim, a terra é para o Kayowá suporte de sua identidade, o uso da terra tem sentido comunitário, justificando o sistema de cultivo antigo, que era o sistema rotativo, que permitia a permanência do povo por várias gerações em um perímetro reduzido. Estas dificuldades ferem visivelmente a alteridade e dificultam a identidade, já percebida visivelmente entre os Kayowá, no que diz respeito ao direito a cidadania e não tendo direitos básicos como é o caso da moradia, da saúde, da educação, da cultura, da dança, das festas e do lazer. Tais fatos são evidenciados permitindo que cada vez mais estes indígenas sofram mudanças. Seja de ordem interna ou da responsabilidade da sociedade envolvente promovidos pelo meio em que estão inseridos. As danças e as festas fazem parte da cultura do Kayowá, onde suas manifestações são evocadas para o ser e o modo de viver na sua essência. Os Kayowá acreditam que a terra foi dada a eles por Deus. Segundo o capitão Ireno apud Meihy (1991, p. 44): Nós kaiowá acreditamos que a terra foi dada por Deus para nós e agradecemos a ele... para isso dançamos a chicha... antes a chicha era um jeito de rezar, de falar com Deus...hoje não é mais assim...agora a chicha é uma dança igual à dos brancos...tem até pinga quando se dança a chicha de agora... Um pouco mais adiante do depoimento do capitão Ireno apud Meihy (1991, p.46) ele diz: Hoje nós não vamos muito nas festas porque se passa a noite e perde o sono e depois não dá para trabalhar no dia seguinte...também agora nas festas tem muita pinga e índio bêbado é uma coisa triste demais...a festa de agora é só para bebedeira e sai muita briga, não dá mais para a gente ir... As festas continuam porem algumas vezes mantém o sentido original e outras vezes não e em menor quantidade. O sistema religioso dos Kayowá tem uma estrutura de prestígio, o grande objetivo deste Kayowá é ser um Ñande Ru, ou seja, um rezador, um líder religioso, o que conseqüentemente lhe confere uma posição de prestígio e de governo sobre a comunidade que tem o poder de decisão democrática. Nas grandes 7

8 reuniões, chamadas de Aty Guassu,, onde todos os kayowá têm o direito de expressar suas opiniões, os rezadores têm papel importante, porque toda decisão são tomadas através de discussões e rezas. Destacamos que a identidade dos Kayowá é cíclica e mesmo com as interferências externas, existem os apegos simbólicos constituintes de cada cultura, porém é indiscutível que para mantê-la é preciso se adequar as necessidades e as mudanças. Como os Kayowá, acreditam que foram os primeiros povos criados por Deus, Ñande Ru, nosso Pai, ou Ñande Jára, nosso Senhor, que foram considerados como verdadeiros e autênticos em relação ao mundo dos não-indígenas (MANGOLIM, 1993) é importante complementar a idéia, segundo Wenceslau (1990, p. 95) diz: (...) ser Kayowá é ter uma história própria e particular, não apenas uma história factual e temporal, mas também uma história factual, porém atemporal: uma época localizada no antigamente, no tempo primeiro quando surgiram os Kayowá. Este é o tempo dos mitos onde a dimensão linear do tempo não é necessária, mas faz sentido. É o tempo onde aprenderam a ser o que são, onde lhes foi ensinado a ser, que animal comer, como morar, a dividir o tempo, como se relacionar com os deuses. A situação atual tem características próprias, porque suas lideranças foram eliminadas da RID na década de 70, hoje os mais velhos estão tentando formar lideranças para esta comunidade, sendo que a meta principal composta de jovens informados e formados para desencadear o processo de liderança, pela formação espiritual, medicinal e política. Para Wenceslau (1990, p. 96): O território faz parte não do sistema de identificação dos Kayowá, mas o sustentáculo do lugar onde se realiza esta sociedade. O território é importante na formação de identidade Kayowá, mas não determinante, devido a freqüente migração Guarani. Esta situação é um dos fatores complicadores para os Kayowá, mas segundo Mangolim (1993, p. 19): 8

9 (...) Até cerca de 20 ou 30 anos atrás, os Kaiová moravam em casas grandes (Ogajekutu, Ogaguasu), reunindo até 100 pessoas da mesma família grande. Hoje estas Ogajekutu cederam lugar a casas geralmente pequenas abrigando apenas a família nuclear, embora mantendo a proximidade territorial com os demais membros da família extensa (pais, filhos, genros, etc...) que, segundo o antropólogo (padre jesuíta) Meliá, continua sendo a base organizacional dos Kaiová. Para o autor, nesta organização, a autoridade é a pessoa de maior prestígio, geralmente homem e líder religioso. Seus valores são outros, sua política é outra, pois sua essência está baseada na família extensa, cuja chefia se baseia no prestígio e na religiosidade. Neste momento, vale destacar a visão de Claval (2009), cujo argumento assegura que a sociedade é uma entidade que se auto-reproduz e ao mesmo tempo, muda. A necessidade de transformação constantemente é uma realidade vivida pelos Kayowá há muito tempo e servem para atender tanto os desejos pessoais como as tendências do ambiente externo. No depoimento a respeito de vida tradicional, complementa a vida tradicional do atual como comprova o índio Albino Nunes apud Meihy (1991, p.46): A religião da gente era diferente: tinha cantos, danças, o povo participava... quando nos reuníamos para rezar era concorrido, mas agora está fraco... na época que eu era criança sempre rezávamos com os mais velhos, com os pajés... as pessoas importantes da família se juntavam, principalmente nos fins de semana e faziam o culto... Haviam também situações especiais para se fazer a reza... quando alguém estava doente, por exemplo, tinha uma pajé que vinha tomar conta... e não era qualquer um, para cada problema tinha uma pessoa...esse pajé trazia as ervas do mato e rezava, rezava... até o índio sarar... Hoje, quando alguém fica doente, já estão preferindo levar para o hospital da Missão ou para o posto médico, em vez de fazer reza... mudou muito... 9

10 Considerando as interferências provocadas no meio tradicional em função das questões econômicas, os aspectos religiosos foram os primeiros a sofrer os impactos, pois se vinculam as novas seitas e religiões que numa forma de catequizá-los, provocam alterações no modo de ser e compreender sua existência enquanto indivíduos na sociedade indígena. Desta forma, os aspectos religiosos vividos pelos Kayowá com o passar do tempo, mesmo com tantos conflitos gerados por questões socioculturais, estão sendo revitalizados, como instrumento de luta. Sendo que seus principais valores tradicionais são: a religião, a autoridade religiosa, familiar e comunitária. Considerações finais Entendemos que o espaço território se configura como um espaço indissociável das relações entre os Kayowá, na comunidade indígena da RID, fazendo a compreensão do todo e considerando a interdependência entre natureza e a ação humana entre as pessoas e o ambiente em que vivem. Estabelecendo as revelações do passado com o presente, apresentando a relação entre a formação da territorial e a tradição cultural, pois os Kayowá têm de si uma sociedade historicamente estabelecida pela sua identidade e sua alteridade. A análise subjetiva do território, através do teko há, e por extensão a questão imbricada na cultura indígena podendo ser assinalada na importância cultural, histórica, espiritual e social ao preconizar o caráter territorial como um espaço em que perpetua a vida. Diante disto, afirmamos que o sentido de tekohá é a essência da vida para os Kayowá, passando pela existência das questões sociais, histórica, culturais, espirituais e míticas, tendo em vista as ações humanas passíveis de modificações na trajetória histórica, social e pessoal de cada um. A realidade dos Kayowá, na RID, apresenta marcos temporal, como é o caso da década de 70. Marcos territoriais, quando da demarcação das terras em aldeias e/ou reservas. Marco cultural, quando primam pela identidade e a alteridade mantendo a religiosidade, suas danças e festas peculiares. Tais marcos concretizam sua formação, na medida em que procuram relacionar e desenvolver suas atividades de fora carregada de características significativas na descrição das gerações passadas e presente. 10

11 Nesse sentido, a cultura Kayowá é constituída a partir da criação até a geração atual, sendo que o aprendizado do conhecimento começa a partir do nascimento até sua morte, perpassando pela religiosidade e seus deuses, pelos pais de seus pais, avós e parentes, de forma entrelaçada. Na realidade, o Kayowá têm conhecimento de sua própria cultura, em todos os tempos, tendo a informação de geração para geração através das histórias contadas, desencadeando o caminho para o futuro até que se dê a formação dos novos rezadores e lideranças, sendo que estes se preparam para as novas situações e visão de mundo. Referências bibliográficas ALMEIDA, R. F. T. O caso Guarani: o que dizem os vivos sobre os que se matam? In: RICARDO, C. A. Povos Indígenas no Brasil: 1991/1995. São Paulo: Instituto Socioambiental, 1996. BARBOSA LESSA, L.C. Caráter cíclico do tradicionalismo. Porto Alegre: scp., 1983. CASTELLS, M. O poder da identidade: a era da informação: economia, sociedade e cultura. v.2. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CLAVAL, P. Globalização, migrações, inclusão e exclusão: algumas reflexões. In: ALMEIDA, M. G & CRUZ, B. N. Território e Cultura: inclusão e exclusão nas dinâmicas socioespaciais. Goiânia: UFG, 2009, p.10-25. FARIA, I. F. Território e territorialidades: indígenas do Alto Rio Negro. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2003. GIDDENS, A. Tradição. In: O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 47-60. HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialização. In: Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR. V. III. Rio de Janeiro: ANPUR, 2001.. Concepções de território para entender a desterritorialização. In: SANTOS, Milton (org). Território territórios. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Geografia: UFF: AGB, 2002. HOBSBAWN, E. & RANGER, T. A invenção das tradições. 4 ed. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. São Paulo: Paz e Terra, 2006. 11

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