The Horse and the Bull in Prehistory and in History Coordination Fernando Augusto Coimbra 2016
As Lendas das Pegadas de Cavalos: Icnofósseis interpretados como marcas de equídeos Silvério Figueiredo Centro Português de Geo-História e Pré-história; Instituto Politécnico de Tomar; Centro de Geo-Ciências (UC) - silverio.figueiredo@cpgp.pt Resumo: Desde a Pré-História que o Homem se cruzou com os fósseis. Os nossos antepassados queriam conhecer e compreender o mundo e a natureza, mas quando observavam restos fósseis geralmente interpretavam-nos à luz da realidade que os rodeava e das crenças religiosas. As marcas fossilizadas (icnofósseis) de grandes vertebrados, em especial dos dinossáurios estão na origem de várias lendas, algumas delas associam as pegadas destes animais a equídeos gigantes e relacionam-nas com a religião, como é o caso da lenda das pegadas da Pedra da Mua, no Cabo Espichel. Palavras-Chave: Icnofósseis; lendas; pegadas; Rhizocorallium; religião. Abstract: Since Prehistory man has crossed with fossils. Our ancestors wanted to know and understand the world and nature, but when they observed fossil remains generally they interpreted it on the basis of the reality surrounding them and on religious beliefs. The trace fossils (icnofossils) of large vertebrates, in particular the dinosaurs are at the origin of several legends, some of them associating the footprints of these animals to giant horses and relating them with religion, such as the legend of the footprints of Pedra da Mua, in Cabo Espichel. Keywords: Trace Fossils; legends; footprints; Rhizocorallium; religion. Introdução Os fósseis, como elementos estranhos à realidade atual, sempre atraíram a atenção, a curiosidade e, por vezes, o interesse religioso das culturas da antiguidade. A sua interpretação foi, durante muito tempo, associada a explicações místicas ou expostas de uma forma equívoca, dando origem a lendas. Só no Século XIX, com o surgimento da Geologia, da Estratigrafia e da Paleontologia, é que se começou a considerar que os fósseis representam os vestígios e os restos preservados de animais que viveram num passado geológico mais ou menos recente. Grandes pegadas semicirculares e marcas que se assemelham a marcas de ferraduras, têm sido uma fonte de muitas lendas ao longo da História. Neste 338
artigo apresenta-se um conjunto de marcas fossilizadas (icnofósseis) atribuídas a pegadas de equídeos. Existem vários tipos de icnofósseis atribuídos a cavalos, uns pela semelhança com marcas de ferraduras, como são disso exemplo as marcas (Rhizocorallium) de invertebrados marinhos de Paúla, no Concelho de Alenquer, outros, simplesmente porque as populações do passado não conseguiram encontrar outra explicação, como as pegadas de dinossáurio da Pedra da Mua (Cabo Espichel). 1. A Lenda da Pedra da Mua As pegadas da Pedra da Mua, situadas nas lajes das arribas confinantes com a Ermida da Memória, estão ligadas a uma lenda que remonta aos princípios do século XV, fruto do imaginário popular cristão, num fenómeno do domínio do fantástico e do maravilhoso. Reza essa lenda que um velho de Alcabideche (Sintra) observou, ao longe, durante noites sucessivas, uma luz misteriosa sobre o Cabo Espichel e rogou à Virgem Maria que lhe explicasse essas visões. Em sonhos, a Vigem disse-lhe que se dirigisse ao Espichel, onde encontraria uma imagem Sua. No caminho, encontrou uma velha do lugar da Caparica que tivera também a mesma visão. Chegados ao destino, deparou-se-lhes Nossa Senhora com o Menino ao colo, vinda do mar e subindo a falésia montada numa mula gigante, cujas pegadas ficaram marcadas na rocha. E foi assim que esta arriba ficou conhecida como a Pedra da Mua. As marcas das pretensas pegadas da montada da Mãe de Jesus ainda hoje lá se encontram. (Antunes, Fig. 1 Painel da Ermida da Memória, no Cabo Espichel, representado a lenda da Pedra da Mua. Pode-se ler na legenda segurada pelos dois anjos na parte debaixo do painel: Chegando aeste sitio vem com admiraçaõ N. Sra. pela Rocha (Chegando a este sítio veem, com admiração, Nossa Senhora pela rocha) (fonte: Figueiredo, 2008; 2014). 339
1990, Carvalho & Santos, 1993, Fernandes, 2005, Figueiredo, 2008, 2014). O culto do Cabo Espichel remonta a 1410, ano em que foi achada a venerada imagem de Nossa Senhora. Aquela lenda está na origem da fundação do Santuário da Senhora do Cabo e revela um curioso caso de apropriação, pela religiosidade popular, de um fenómeno natural sem nada de milagroso: os trilhos de pegadas de dinossáurios que estão, afinal, na origem de um culto católico. Estas pegadas, afinal, não são mais do que pegadas de dinossáurios do Jurássico e constituem-se como a mais antiga referência a vestígios de dinossáurios em Portugal. (Figueiredo, 2008; 2014). Estamos perante a influência de um acontecimento de há cerca de 145 milhões de anos na vida religiosa, na crença e no imaginário da Idade Média. Nestas lajes, com uma inclinação de 35 a 40o, podem-se observar vários trilhos constituídos por pegadas de dinossáurios saurópodes (os grandes dinossáurios herbívoros de pescoço e de cauda comprida). Estes trilhos são do Jurássico Superior (com cerca de 145 milhões de anos) e revelam que estes dinossáurios já tinham um comportamento gregário, uma vez que vários desses trilhos são paralelos, e que sete deles são de animais jovens que se deslocavam na mesma direção e à mesma velocidade, que caminharam numa zona litoral, de areias junto ao proto Oceano Atlântico. Mais tarde a plataforma rochosa sofreu enrugamento durante o Miocénico, ficando com a inclinação atual. (Antunes, 1990, Carvalho, & Santos, 1993, Figueiredo, 2008, 2014). Fig. 2 À esquerda, pormenor de um dos trilhos de pegadas de dinossáurios saurópodes da Pedra da Mua (foto do autor); à direita, reconstituição do episódio que aconteceu há 145 milhões de anos, no Cabo Espichel (Desenho de Nuno dos Santos). 2. Os Rhizocorallium de Paúla, Concelho de Alenquer Os Rhizocorallium são marcas fossilizadas em forma de ferradura, feitas por invertebrados marinhos do Mesozoico. Em Paúla, no Concelho de Alenquer, existe uma laje do Jurássico Superior com estes icnofósseis que foram interpretados como pegadas de cavalo, devido à forma de ferradura que apresentam (Lockley et al. 1994). 340
Fig. 3 Pegada de Os Rhizocorallium de Paúla (fonte: http://lusodinos.blogspot.pt/2011/04/tracos- -de-invertebrados.html). Os Rhizocorallium aparecem noutras zonas de Portugal, como por exemplo a placa de calcário com cerca de 1 metro de comprimento que está no Museu Geológico de Lisboa, proveniente de uma formação do Cretácico de Aveiro. Neste caso não existe qualquer lenda associada a este fóssil. Notas finais Desde a Pré-História que o Homem se cruzou com os fósseis. No entanto, a paleontologia só surgiu como ciência nos inícios do século XIX, quando o francês Georges Cuvier definiu os fundamentos desta ciência. Até essa altura os restos fósseis eram geralmente interpretados à luz da realidade das faunas atuais e das crenças religiosas. Os restos fósseis (somatofósseis) e icnofósseis de grandes vertebrados do passado geológico, em especial dos dinossáurios estão na origem de várias lendas, algumas delas associam estas pegadas de dinossáurios a equídeos e relacionam-nas com a religião, como é o caso da lenda das pegadas da Pedra da Mua, no Cabo Espichel. Outros icnofósseis existem, deixados por invertebrados endobentónicos (que vivem nos marinhos) que se assemelham a marcas de cascos de cavalos, como é o caso dos Rhizocorallium, sendo facilmente atribuídos a equídeos. Estas jazidas assumem-se de importância redobrada, em especial aquelas que apresentam pegadas de dinossáurios, pois nelas se encontra uma dimensão científica, Patrimonial, histórica e até religiosa, constituindo-se como fontes de divulgação científica e histórico-cultural. 341
As pegadas e outras marcas de seres vivos do passado dão, por vezes, origem a topónimos ou lendas como é o caso das Pegadas da Mula, no Cabo Espichel. Fig. 4 O Rhizocorallium de Aveiro, em exposição no Museu Geológico (Foto do autor) Bibliografia Antunes, M. T., 1990. Dinossáurios em Sesimbra e Zambujal episódios de há cerca de 140 milhões de anos, Sesimbra Cultural, nº 0, pp. 12 14, C. M. Sesimbra. Benton, M. J., 2005. Vertebrate Palaeontology (3ª. Ed.), Blackwell Publishing, Oxford. Carvalho, I. S., Editor, 2000. Paleontologia, (2ª. Edição) Editora Interciência, Rio de Janeiro. Carvalho, A. M. G & Santos, V., 1993. Pegadas de Dinossáurios de Sesimbra, Sesimbra Cultural, nº 3, pp. 10 14, C. M. Sesimbra. Fernandes, A.C.S. 2005. Fósseis: Mito e Folclore, Anuário do Instituto de Geociências UFRJ, pp 101-115, Rio de Janeiro Figueiredo, S., 2008. Os Dinossauros de Portugal, Colecção Entre o Homem, a Terra e a vida, Edições Cosmos, Chamusca. Figueiredo, S., 2014. Os Dinossáurios em Território Português, Chiado Editora, Lisboa. Lockley, M., Novikov, V., Santos, V. F., Nessov, L. A. & Forney, G. 1994. Pegadas de mula : An explanation for the occurrence of Mesozoic traces that resemble mule tracks, Ichnos: An International Journal for Plant and Animal Traces, pp. 125-133. Mendes, J. C. 1988. Paleontologia Básica, Ed. Da Universidade de São Paulo, S. Paulo. 342