DORES NEUROPÁTICAS JOSÉ MANUEL CASTRO LOPES



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DORES NEUROPÁTICAS JOSÉ MANUEL CASTRO LOPES

DORES NEUROPÁTICAS JOSÉ MANUEL CASTRO LOPES 2007

DORES NEUROPÁTICAS ISBN??????????? TEXTO José Manuel Castro Lopes EDIÇÃO Medesign Edições e Design de Comunicação, Lda Rua Gonçalo Cristóvão, 347 (Centro Empresarial Mapfre) s/217 4000-270 Porto Portugal Tel. 222001479 Fax. 222001490 medesign@medesign.pt PRÉ-IMPRESSÃO Medesign, Lda IMPRESSÃO Maiadouro DEPÓSITO LEGAL??????????? SETEMBRO 2007 EDIÇÃO EXCLUSIVA PARA: PharmaKERN Portugal, Lda Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada em qualquer suporte ou transmitida por qualquer forma (electrónica, mecânica ou outra) sem permissão expressa dos editores. Os autores e editores fizeram todos os esforços para assegurar a exactidão da informação presente neste livro mas não se responsabilizam por quaisquer erros ou omissões. Assim, e também porque a investigação médica avança constantemente a grande ritmo, recomenda-se ao leitor que complemente a sua formação e faça uma avaliação pessoal em particular dos métodos terapêuticos referidos e das respectivas condições de utilização. 2

ÍNDICE Introdução... 5 Dor Neuropática ou Dores Neuropáticas?... 8 Epidemiologia... 9 Fisiopatologia... 11 Diagnóstico... 19 Terapêutica... 27 Considerações finais... 35 3

4

INTRODUÇÃO DEFINIÇÃO DE DOR A dor é definida pela International Association for the Study of Pain (IASP) como uma...uma experiência multidimensional desagradável, experiência multidimensional desagradável, envolvendo não só um componente envolvendo não só um componente sensorial mas também um componente sensorial mas também um emocional, e que se associa a uma lesão componente emocional tecidular concreta ou potencial, ou é descrita em função dessa lesão. Assim, a dor possui diversos componentes para além do puramente sensorial, relacionados com os aspectos cognitivos, emocionais, culturais e mesmo sociais do indivíduo, não sendo muitas vezes possível estabelecer uma relação directa entre uma lesão e o tipo ou a intensidade da dor que ela origina. De facto, a mesma lesão pode originar dores diferentes em indivíduos diferentes, ou até no mesmo indivíduo quando em situações diferentes. Por outro lado, apesar dos inúmeros avanços na investigação dos mecanismos neurobiológicos da dor, nomeadamente no domínio da imagiologia, ainda não se conhecem marcadores biológicos mensuráveis que estejam directamente relacionados com a percepção da dor, pelo que esta é sempre descrita de forma subjectiva. Apesar disso, têm sido criadas algumas estratégias destinadas a objectivar as várias características da dor. Do ponto de vista etiológico, a dor pode ser dividida em dois grandes grupos (Fig. 1): 1) a dor nociceptiva, que resulta da activação, por estímulos nóxicos, de neurónios aferentes primários específicos, os nociceptores, cujas terminações periféricas se localizam na pele, articulações, músculos, vísceras e outros órgãos; este tipo de dor tem uma função de protecção do orga- 5

nismo, desencadeando respostas reflexas e comportamentais que visam eliminar ou minimizar a agressão nóxica; 2) a dor neuropática, que é provocada por lesão ou disfunção do sistema nervoso periférico ou central 1, podendo neste último caso também ser designada por dor central. Ao Ao contrário da dor nociceptiva, a dor neuropática não tem qualquer função fisiológica, pelo que é sempre uma dor patológica contrário da dor nociceptiva, a dor neuropática não tem qualquer função fisiológica, pelo que é sempre uma dor patológica. NOCICEPTIVA MISTA NEUROPÁTICA FIGURA 1. Classificação etiológica da dor. São exemplos de dor nociceptiva a dor associada às patologias inflamatórias ou degenerativas, p.e. a artrite reumatóide, cistite intersticial ou artrose, ou às patologias isquémicas, p.e. angina de peito ou dor por lesão vascular periférica. A dor resultante da nevralgia do trigémio ou da polineuropatia diabética é uma dor neuropática periférica, enquanto a que resulta de um acidente vascular cerebral ou que surge na esclerose múltipla é uma dor central. Existem ainda várias situações em que a dor tem simultaneamente um componente nociceptivo e um componente neu- [1] Muito recentemente, o grupo de dor neuropática da IASP (NeuPSIG) propôs uma revisão do conceito de dor neuropática, definindo-a como a dor que surge como consequência directa de uma lesão ou doença do sistema somatossensitivo. 6

A dor crónica tem um enorme impacto, não apenas no indivíduo que dela sofre mas também nos seus familiares, prestadores de cuidados de saúde e na sociedade em geral ropático. Este tipo de dor, designada por mista, está presente em alguns casos de cervicalgias ou lombalgias, de dor pós-operatória ou de dor oncológica. Nestas situações é particularmente importante identificar o componente neuropático pois, como descrito adiante, a dor neuropática é resistente à terapêutica habitualmente utilizada para a dor nociceptiva. A dor pode também classificar-se de acordo com o seu perfil temporal, sendo habitualmente dividida em aguda ou crónica. Esta última pode ter um carácter mais ou menos permanente, ou manifestar-se de forma recorrente por episódios de frequência e duração variáveis. A dor neuropática é, na grande maioria dos casos, uma dor crónica. A dor crónica tem um enorme impacto, não apenas no indivíduo que dela sofre mas também nos seus familiares, prestadores de cuidados de saúde e na sociedade em geral. Dada a sua grande prevalência e as suas repercussões socio-económicas, a European Federation of IASP Chapters (EFIC) emitiu uma declaração no Parlamento Europeu em que se considera que a dor crónica é um grave problema de saúde pública e uma doença por si só. 7

DOR NEUROPÁTICA OU DORES NEUROPÁTICAS? Embora seja comum englobar sob a mesma designação todos os tipos de dor provocada por uma lesão ou disfunção do sistema nervoso, dividindo-a apenas em dois grupos conforme esta se verifique no sistema nervoso central ou periférico, o facto é que a dor neuropática pode ter múltiplas origens (Quadro I). Estas patologias originam dor neuropática A terapêutica dos vários tipos através de diversos mecanismos fisiopatológicos (ver adiante) e têm apresentação clí- especificidades inerentes à de dor neuropática, poderá ter nica diversa. Do mesmo modo, a terapêutica patologia que lhe deu origem ou à dos vários tipos de dor neuropática, embora sintomatologia apresentada partilhando princípios comuns, poderá ter especificidades próprias da patologia que lhe deu origem ou da sintomatologia apresentada. Deste modo, será mais correcto utilizar a designação dores neuropáticas. QUADRO I. Principais causas de dores neuropáticas. PERIFÉRICAS POLINEUROPATIA DIABÉTICA POLINEUROPATIA PÓS-QUIMIOTERAPIA POLINEUROPATIA ALCOÓLICA NEUROPATIA POR VIH NEVRALGIA PÓS-HERPÉTICA NEVRALGIA PÓS-TRAUMÁTICA NEVRALGIA IATROGÉNICA NEVRALGIA DO TRIGÉMIO DOR DO MEMBRO FANTASMA RADICULOPATIA POLIRRADICULOPATIA INFLAMATÓRIA DESMIELINIZANTE SÍNDROME DOLOROSO REGIONAL COMPLEXO CENTRAIS LESÃO MEDULAR TRAUMÁTICA MIELOPATIA COMPRESSIVA MIELOPATIA PÓS-ISQUÉMICA MIELOPATIA PÓS-RADIAÇÃO MIELOPATIA POR HIV SIRINGOMIELIA ESCLEROSE MÚLTIPLA ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL 8

EPIDEMIOLOGIA Estima-se que cerca de Não existem estudos sobre a prevalência das 1-3% da população sofra de dores neuropáticas em Portugal. Utilizando dados de estudos internacionais, pode estimar-se dores neuropáticas que cerca de 1-3% da população sofra de dores neuropáticas. Por outro lado, a prevalência dos vários tipos de dor neuropática tem sido descrita em diversos estudos epidemiológicos, que demonstraram que: 20-24% dos diabéticos sofrem de polineuropatia dolorosa; 25-50% dos doentes com mais de 50 anos de idade infectados com herpes zoster desenvolvem uma neuropatia dolorosa; Quase 20% das doentes mastectomizadas têm dor neuropática pós-cirúrgica; Um terço dos doentes com neoplasias têm dor neuropática (isolada ou associada a dor nociceptiva); 7% dos doentes com lombalgias têm dor neuropática associada; Num estudo envolvendo mais de 55.000 doentes com dores neuropáticas periféricas verificou-se que a mais frequente era a que surgia associada a lombalgias ou cervicalgias (62% dos doentes), seguindo-se a causalgia ou síndrome doloroso regional complexo tipo II (12%) e a polineuropatia diabética (11%). Muitos doentes são Além de ser um grupo de patologias com prevalência elevada, as dores neuropáticas são frequen- medicados com fármacos que não têm eficácia no temente de longa duração. Isso deve-se a vários controlo da dor neuropática, factores, dos quais se destacam: 1) diagnóstico tardio muitos doentes com dores neuropáticas ou apenas uma eficácia procuram auxílio médico tardiamente e/ou o médico não reconhece com facilidade a existência muito reduzida de uma dor neuropática; 2) doenças incuráveis ainda não existe tratamento curativo para muitas das patologias que originam dores neuropáticas, tanto centrais como peri- 9

féricas; 3) tratamento inadequado muitos doentes com dores neuropáticas são medicados com fármacos que não têm eficácia no controlo da dor neuropática, ou apenas uma eficácia muito reduzida, ou recebem doses insuficientes dos fármacos adequados; 4) resistência ao tratamento algumas dores neuropáticas são difíceis de controlar mesmo quando a terapêutica instituída é a mais adequada, designadamente devido ao aparecimento de efeitos adversos da medicação ou à sua falta de eficácia. Não existem dados sobre os custos associados ao tratamento da dor neuropática em Portugal. Um estudo realizado nos Estados Unidos da América (Berger et al., 2004), em que se compararam os gastos com mais de 55.000 doentes com dores neuropáticas e igual número de doentes da mesma idade e sexo mas sem dores neuropáticas, permitiu constatar que as despesas com os doentes com dores neuropáticas são quase 3 vezes superiores às verificadas com os doentes que não têm dor neuropática (Quadro II). Saliente-se que nesse estudo não foram contabilizados os chamados custos indirectos, devidos a perda de productividade, absentismo, reformas antecipadas, etc., os quais são sempre muito superiores aos custos directos com as despesas de saúde. QUADRO II. Custo anual médio por doente (em dólares), com e sem dores neuropáticas, nos Estados Unidos da América em 2000. SEM DOR NEUROPÁTICA COM DOR NEUROPÁTICA (N = 55.686) (N = 55.686) DESPESAS DE INTERNAMENTO 3.355 9.329 DESPESAS DE AMBULATÓRIO 1.900 6.859 DESPESAS COM MEDICAMENTOS: analgésicos 62 293 outros 399 874 TOTAL DAS DESPESAS 5.715 15.355 Adaptado de Berger et al. (2004). 10

FISIOPATOLOGIA A dor neuropática pode resultar de múltiplos mecanismos e o mesmo mecanismo pode estar presente em vários tipos de dor neuropática Os mecanismos que estão na origem das dores neuropáticas são múltiplos e podem dividir-se em periféricos, centrais e genéticos (Quadro III). Estes mecanismos têm sido estudados sobretudo em modelos animais de dor neuropática, mas os estudos experimentais em humanos parecem confirmar a presença dos mesmos mecanismos. Deve ser realçado que uma dor neuropática pode resultar de vários mecanismos e o mesmo mecanismo pode estar presente em vários tipos de dor neuropática, o que torna difícil correlacionar o tipo de patologia ou a sintomatologia com os mecanismos que os originam. QUADRO III. Principais mecanismos fisiopatológicos envolvidos nas dores neuropáticas. PERIFÉRICOS IMPULSOS ECTÓPICOS INTERACÇÕES EFÁTICAS E NÃO-EFÁTICAS SENSIBILIZAÇÃO DOS NOCICEPTORES ALTERAÇÕES DO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO MODIFICAÇÕES DO FENÓTIPO NEUROQUÍMICO INFLAMAÇÃO DOS TRONCOS NERVOSOS CENTRAIS SENSIBILIZAÇÃO CENTRAL REDUÇÃO DA MODULAÇÃO INIBITÓRIA ACTIVAÇÃO DA NEVRÓGLIA GENÉTICOS POLIMORFISMOS IMPULSOS ECTÓPICOS Em condições fisiológicas, os impulsos nervosos transmitidos pelos nociceptores têm origem apenas nos seus terminais periféricos. Quando ocorre uma lesão da fibra nervosa, por exemplo 11

uma secção traumática de um nervo periférico, o segmento distal das fibras nervosas degenera, enquanto a parte proximal vai proliferar e formar uma massa de fibras nervosas pouco organizada designada por neuroma. No neuroma, dá-se uma acumulação de receptores e canais iónicos, tornando-o particularmente sensível a estímulos externos, bem como à estimulação pelo sistema nervoso simpático (ver adiante). O neuroma pode mesmo tornar-se fonte de impulsos nervosos espontâneos, que se traduzem no aparecimento de dor espontânea (sem qualquer estimulação externa), uma das característica das dores neuropáticas. Estes impulsos nervosos designam-se por ectópicos por surgirem em locais onde habitualmente não se geram potenciais de acção. Também é possível surgirem focos ectópicos sem que haja interrupção das fibras, designadamente em zonas de lesão desmielinizante das fibras nervosas e/ou quando existem processos inflamatórios locais. INTERACÇÕES EFÁTICAS A transmissão de um impulso nervoso ao longo de uma fibra nervosa não tem efeitos significativos sobre as fibras vizinhas do mesmo nervo, dado que as fibras estão electricamente isoladas umas das outras. Porém, as lesões neuropáticas podem provocar alterações da organização histológica dos nervos que levam ao aparecimento de interacções efáticas entre as fibras, isto é, as alterações da concentração de sódio e potássio que se verificam no meio extracelular aquando da passagem do impulso nervoso numa fibra, podem provocar a despolarização das fibras vizinhas e o consequente desencadear de impulsos nervosos nessas fibras. Deste modo, há uma ampliação espacial do impulso nervoso, e a activação de fibras não nociceptivas por estí- 12 O aparecimento de dor espontânea é uma das característica das dores neuropáticas As lesões neuropáticas podem provocar alterações da organização histológica dos nervos que levam ao aparecimento de interacções efáticas entre as fibras nervosas

A lesão de um nervo periférico pode fazer com que os nociceptores se tornem muito mais excitáveis Nos neuromas as fibras nervosas ficam particularmente sensíveis à actividade do sistema nervoso simpático e às aminas circulantes mulos inócuos pode conduzir à activação das fibras nociceptivas. Consequentemente, o estímulo inócuo poderá ser percepcionado como doloroso (alodínia). SENSIBILIZAÇÃO DOS NOCICEPTORES A lesão de um nervo periférico, traumática, iatrogénica, metabólica ou outra, pode desencadear uma reacção inflamatória no tecido adjacente que conduz a uma sensibilização dos nociceptores, de tal modo que estes se tornam muito mais excitáveis, podendo mesmo responder a estímulos inócuos. Para este fenómeno, designado por sensibilização periférica, contribuem determinadas citocinas e factores neurotróficos. Habitualmente, a sensibilização periférica, que surge quase sempre na dor nociceptiva, desaparece com a cura da lesão que lhe deu origem e o desaparecimento da inflamação. Porém, ela pode perpetuar-se quando existe uma lesão ou doença que afecte o sistema nervoso periférico. ALTERAÇÕES DO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO O sistema nervoso simpático não tem qualquer efeito directo sobre os nociceptores normais. Porém, verificou-se que os neuromas são particularmente ricos em receptores adrenérgicos α 2 e recebem uma abundante inervação por fibras simpáticas. Os pericários dos neurónios sensitivos tornam-se também ricos naquele tipo de receptores nalgumas neuropatias, observado-se igualmente uma proliferação de fibras simpáticas que vão rodear os neurónios sensitivos. Assim, estes neurónios ficam particularmente sensíveis à actividade do sistema nervoso simpático e às aminas circulantes. Este mecanismo explica o efeito benéfico da simpati- 13

cectomia nalguns tipos de dor neuropática, designadamente no síndrome doloroso regional complexo. ALTERAÇÕES NEUROQUÍMICAS DOS NOCICEPTORES As neuropatias periféricas provocam diversas alterações neuroquímicas dos nociceptores. Para além da alteração da expressão dos canais e receptores nos neuromas acima referida, encontrou-se um aumento significativo da subunidade α 2 δ dos canais de cálcio dependentes da voltagem em vários modelos animais de dor neuropática. Estes canais poderão provocar um aumento da concentração de cálcio nos terminais pré-sinápticos e consequentemente levar a uma maior libertação dos neurotransmissores dos nociceptores. Refira-se a propósito que a gabapentina e a pregabalina, dois fármacos muito utilizados no tratamento da dor neuropática (ver adiante), actuam por inibição daqueles canais. Outras alterações neuroquímicas dos nociceptores incluem o aumento de receptores vanilóides sensíveis à capsaicina, diminuição de alguns peptídeos, como a substância P, e aumento de outros, como a galanina, a colecistocinina e o polipeptídeo intestinal vasoactivo (VIP). Observaram-se também alterações neuroquímicas em neurónios responsáveis pela transmissão dos impulsos inócuos, tais como o aumento da substância P, VIP e óxido nítrico. INFLAMAÇÃO DOS TRONCOS NERVOSOS O aumento dos canais de cálcio poderá provocar um aumento da concentração de cálcio nos terminais pré-sinápticos e consequentemente uma maior libertação dos neurotransmissores dos nociceptores A reacção inflamatória que se observa nos troncos nervosos em algumas neuropatias, como as nevralgias pós-herpéticas, pode também contribuir para a fisiopatologia da dor neuropática. Pode 14

A reacção inflamatória que se igualmente haver um componente inflamatório observa nos troncos nervosos nas lesões traumáticas dos nervos periféricos. O em algumas neuropatias processo inflamatório local leva à produção e libertação de substâncias algogénicas pelos neutrófi- pode também contribuir los, macrófagos e células de Schwann. Estas substâncias podem activar os nervi nervorum (nervos para a fisiopatologia da dor neuropática que inervam os troncos nervosos), provocando uma dor referida ao tronco nervoso, ou condicionar o aparecimento de impulsos nervosos ectópicos no tronco nervoso, causando neste caso uma dor referida ao território inervado. SENSIBILIZAÇÃO CENTRAL As dores neuropáticas acompanham-se frequentemente de alterações de sensibilização do sistema nervoso central que contribuem significativamente para a fisiopatologia da sintomatologia As dores neuropáticas acompanham-se frequentemente de alterações de sensibilização do sistema nervoso central dolorosa. Este fenómeno está particularmente bem estudado na área sensitiva primária da medula espinhal, embora também se observe noutras áreas do sistema nervoso central, designadamente no tálamo e no córtex sensitivo primário. Verificou-se que uma estimulação repetitiva das fibras C periféricas, principais responsáveis pela transmissão dos impulsos dolorosos, produz uma hiperexcitabilidade dos neurónios da medula espinhal que se prolonga para além da referida estimulação e contribui para o estabelecimento da dor crónica. A sensibilização dos neurónios da medula espinhal caracteriza-se pelo aumento da resposta aos estímulos, aumento dos campos receptivos, redução do limiar de activação e aumento da actividade espontânea. Estas alterações contribuem decisivamente para os sintomas associados à dor neuropática, nomeadamente a hiperalgesia primária e secundária, a alodínia e a dor espontânea (Fig. 2). 15

HIPERALGESIA PRIMÁRIA aumento da resposta aos estímulos DOR ESPONTÂNEA aumento da actividade espontânea SENSIBILIZAÇÃO CENTRAL aumento dos campos receptivos HIPERALGESIA SECUNDÁRIA redução do limiar de activação ALODÍNIA FIGURA 2. Relação entre as alterações funcionais decorrentes da sensibilização dos neurónios da medula espinhal e a sintomatologia presente na dor neuropática. A sensibilização central depende de vários mecanismos, entre os quais se salienta a activação dos receptores NMDA do glutamato e o consequente aumento da concentração intacelular de cálcio nos neurónios da medula espinhal. REDUÇÃO DA MODULAÇÃO INIBITÓRIA A transmissão dos impulsos nociceptivos é modulada na medula espinhal por interneurónios inibitórios GABAérgicos. Demonstrouse que a lesão de nervos periféricos ou lesões isquémicas da medula espinhal provocam uma diminuição do número de neurónios 16

A redução dos mecanismos GABAérgicos e dos níveis de GABA na medula espinhal. Deste modo, há uma desinibição da trans- inibitórios dependentes do GABA tem sido apontada missão dos impulsos nociceptivos que contribui como uma das principais para o estabelecimento da dor neuropática. A redução dos mecanismos inibitórios dependentes do GABA tem sido apontada como uma das causas da dor neuropática com origem central principais causas da dor neuropática com origem no sistema nervoso central, designadamente a que resulta de acidentes vasculares cerebrais. A eficácia dos fármacos anti-epilépticos no tratamento da dor central apoia a existência de alterações da excitabilidade neuronal, sejam elas por redução da acção inibitória do GABA ou por aumento da acção excitatória de neurotransmissores como o glutamato. Outro dos mecanismos envolvidos na dor neuropática central poderá ser a lesão isquémica de feixes axonais. Existe também um sistema endógeno de controlo da dor, que envolve vários núcleos cerebrais que exercem um efeito modulador sobre a transmissão dos impulsos nociceptivos. Estão descritas alterações deste sistema nalguns modelos experimentais de dor neuropática, as quais poderão contribuir para a sintomatologia dolorosa. Em modelos experimentais de dor neuropática verificou-se que as células gliais da medula espinhal estão activadas ACTIVAÇÃO DA NEVRÓGLIA Verificou-se que as células gliais da medula espinhal, designadamente astrócitos e microgliócitos, estão activadas em modelos experimentais de dor neuropática. Inibidores da activação glial reduzem a hiperalgesia e alodínia naqueles modelos experimentais, enquanto activadores da glia aplicados na medula espinhal de animais normais provocam hiperalgesia e alodínia. Embora os mecanismos que conduzem à activação das células gliais pela dor não estejam totalmente esclarecidos, sabe-se que, uma vez activadas, as células gliais 17

sintetizam e libertam determinadas citocinas que vão actuar sobre os neurónios espinhais e/ou sobre os terminais dos neurónios aferentes primários (acção pré-sináptica), provocando uma hiperexcitabilidade que contribui para o aparecimento da hiperalgesia e alodínia. Deste modo, é possível que no futuro surjam fármacos com acção antinociceptiva dependente do bloqueio da activação glial ou da acção das citocinas pró-inflamatórias. FACTORES GENÉTICOS Não existe uma relação directa entre as doenças ou lesões que podem provocar dor neuropática e o aparecimento da dor. Assim, não é possível prever se, ou quando, vai surgir dor neuropática num doente infectado pelo vírus do herpes zoster, ou que padece de diabetes, ou que sofreu amputação de um membro ou um acidente vascular cerebral. As razões para esta variabilidade são múltiplas, mas existem certamente factores genéticos a condicionar o aparecimento de dor neuropática. Em estudos utilizando um modelo experimental de neuropatia periférica, verificou-se que o aparecimento de sintomatologia dolorosa, numa Existem certamente factores genéticos a condicionar o aparecimento de dor neuropática determinada estirpe de ratos, estava associado a um gene autossómico recessivo localizado no cromossoma 15. Por outro lado, estão descritos vários polimorfismos em genes que codificam factores envolvidos na fisiopatologia da dor neuropática, bem como neurotransmissores e receptores que participam na transmissão e modulação dos estímulos nociceptivos. Saliente-se que esta variabilidade genética inter-individual pode contribuir significativamente não só para a variabilidade do surgimento da dor neuropática, mas também para a variabilidade da sintomatologia e da resposta terapêutica. 18

DIAGNÓSTICO História clínica Características da dor Exame físico (com exame neurológico) DIAGNÓSTICO O diagnóstico das dores neuropáticas é, fundamentalmente, baseado na história clínica, na descrição das características da dor e no exame físico, incluíndo o exame neurológico. Na história clínica devem ser pesquisados antecedentes pessoais ou familiares que indiciem a presença de qualquer das causas de dor neuropática (ver Quadro I). Um doente com antecedentes de diabetes ou alcoolismo pode ter uma polineuropatia periférica dolorosa. Um outro doente que tenha sofrido um traumatismo vertebromedular ou um acidente vascular cerebral pode apresentar uma dor neuropática central. As características da dor As características da dor são importantes para o diagnóstico, designadamente a sua intensidade, distribui- são importantes para o diagnóstico ção anatómica, evolução temporal e a forma como o doente a descreve qualitativamente. A intensidade da dor deve ser avaliada utilizando uma das escalas recomendadas pela Direcção Geral de Saúde na circular normativa que equipara a dor a 5º sinal vital (circular n.º 09/DGCG de 14/06/2003), nomeadamente, a escala visual analógica, a escala numérica de 11 pontos, a escala qualitativa ou a escala de faces. É importante que para um determinado doente seja sempre utilizada a mesma escala (ver na referida circular as regras de aplicação das escalas). Dado que a dor neuropática resulta de uma disfunção ou lesão do sistema nervoso, a sua distribuição tende a seguir um padrão de acordo com o local da lesão. É o caso das nevralgias, das radiculopatias ou das lesões centrais. Por outro lado, na polineuropatia diabética a dor afecta pricipalmente as extremidades dos membros inferiores (dor em meia) ou, menos frequentemen- 19

te, superiores (dor em luva). A dor pode ser espontânea, quando está presente sem estímulo aparente, ou provocada. Neste último caso, pode ser provocada por estímulos que habitualmente não são dolorosos, um fenómeno designado por alodínia conforme acima referido, ou pode haver um aumento da percepção da dor provocada por estímulos dolorosos, a hiperalgesia. A dor pode também ser contínua ou intermitente/paroxística, surgir por surtos ou como agravamento de uma dor sempre presente. Os doentes com dor neuropática descrevem-na frequentemente como uma dor em queimadura, choque eléctrico ou sensação de frio doloroso, embora estes termos possam também ser referidos na caracterização da dor nociceptiva. Para além da dor, podem estar presentes alterações da sensibilidade na região afectada, designadamente hipostesia, parestesias (p.e. formigueiro), disestesias e/ou prurido. Quando presentes, estas alterações sensoriais são fortemente indicativas da natureza neuropática da dor. No exame físico, para além de um exame neurológico completo, deve prestar-se particular atenção à delimitação da zona dolorosa (indicativa do local da lesão), presença de alodínia mecânica, dinâmica (passando uma bola de algodão ou cotonete sobre a zona afectada) ou estática (pressionando levemente sobre a zona afectada), e/ou hiperalgesia (aumento da O exame físico deve resposta a um estímulo nóxico, que pode ser testada com uma agulha), alterações da sensibilidade térmica (hipostesia ou alodínia térmica; neurológico completo incluir um exame podem ser testadas com tubos de água a diferentes temperaturas), alterações tróficas e/ou da côr e temperatura da pele (presentes, por exemplo, nas polineuropatias diabéticas ou no síndrome doloroso regional complexo) e à presença de cicatrizes cutâneas devidas a infecção pelo herpes zoster ou lesões traumáticas acidentais ou iatrogénicas. Poderá ser necessário efectuar outras manobras mais específicas, como a pes- 20

quisa do sinal de Tinel (parestesias provocadas pela percussão sobre o trajecto de um nervo lesado ou comprimido) ou do sinal de Lasegue (dor na face posterior do membro inferior provocada pela flexão da coxa sobre a pélvis com o joelho em extensão, presente nas radiculopatias lombares/ciática). A sensibilidade profunda (testada com um diapasão), os reflexos osteotendinosos e a força muscular podem também estar alterados. Os testes sensoriais Os testes sensoriais quantitativos procuram quantitativos são a forma objectivar, através de medições padronizadas, mais eficaz de avaliar a as alterações da sensibilidade acima descritas. função das fibras finas No entanto, a sua complexidade, morosidade e o custo dos aparelhos/instrumentos necessários tornam-nos praticamente incompatíveis com a rotina clínica diária, sendo utilizados apenas em consultas especializadas e/ou no decurso de trabalhos de investigação clínica. São, no entanto, a forma mais eficaz de avaliar a função das fibras finas. Os exames complementares têm um valor limitado no diagnóstico da dor neuropática, embora, nalguns casos possam ser importantes para a confirmação da sua etiologia. A electromiografia, potenciais evocados convencionais e os estudos da condução nervosa podem ser úteis para demonstrar a presença de uma lesão das vias somatossensitivas, mas deve salientar-se que estes exames neurofisiológicos não avaliam a função das fibras finas, principais responsáveis pela transmissão dos impulsos dolorosos. Deste modo, a ausência de alterações nesses exames não exclui a possibilidade de existir uma neuropatia de fibras finas causadora de dor neuropática. Nestes casos, pode ser necessário realizar uma biópsia cutânea ou do nervo sural. Já quando há suspeita de uma radiculopatia associada a uma hérnia discal, é importante proceder a uma tomografia axial computorizada ou 21

uma ressonância magnética nuclear que permita visualizar a lesão. Outros exames complementares úteis para o diagnóstico da dor neuropática são os que se utilizam no diagnóstico das patologias que a originam, como a diabetes ou a infecção pelo VIH. Exames complementares para avaliação mais específica do sistema somatossensitivo, como os potenciais evocados por laser, os reflexos nociceptivos, a microneurografia ou a imagiologia funcional, não são utilizados na rotina clínica diária, estando o seu uso limitado actualmente a estudos de investigação clínica. Existem alguns questionários na literatura internacional para auxiliar ao despiste da dor neuro- questionários para Existem alguns pática. O único que está presentemente validado auxiliar ao despiste para a população portuguesa é o questionário DN4 da dor neuropática (Quadro IV), desenvolvido por um grupo de investigadores franceses (Bouhassira et al., 2005), que se baseia em 10 parâmetros distribuídos por 4 questões, duas para serem respondidas pelo doente e outras duas baseadas no exame físico do doente. A presença de pelo menos 4 dos 10 parâmetros é indicativa da existência de dor neuropática (sensibilidade 82,9%; especificidade 89,9%). Dado que não existe qualquer sintoma, teste ou O grupo de dor neuropática exame complementar que seja patognomónico da IASP (NeuPSIG) propôs um de dor neuropática, o grupo de dor neuropática da sistema para avaliar o grau de IASP (NeuPSIG) propôs muito recentemente um certeza do diagnóstico sistema de graduação destinado a avaliar o grau de certeza do diagnóstico (Treede et al., 2007; Quadro V). Este sistema utiliza 4 critérios, dois baseados na história clínica e os outros dois baseados no exame físico e/ou em exames complementares, para definir 3 níveis de certeza. Nos dois níveis superiores ( certamente ou provavelmente dor neuropática), deve assumir-se que a dor tem origem ou componentes neuropá- 22

QUADRO IV. Versão portuguesa do questionário DN4. Por favor, responda às seguintes questões, assinalando uma única resposta para cada alínea. QUESTIONÁRIO DO DOENTE QUESTÃO 1: A dor apresenta uma, ou mais, das características seguintes? SIM NÃO 1 Queimadura...... 2 Sensação de frio doloroso...... 3 Choques eléctricos...... QUESTÃO 2: Na mesma região da dor, sente também um ou mais dos seguintes sintomas? SIM NÃO 4 Formigueiro...... 5 Picadas...... 6 Dormência...... 7 Comichão...... EXAME DO DOENTE QUESTÃO 3: A dor está localizada numa zona onde o exame físico evidencia: SIM NÃO 8 Hipoestesia ao tacto...... 9 Hipoestesia à picada...... QUESTÃO 4: A dor é provocada ou aumentada por: SIM NÃO 10 Fricção leve ( brushing )...... 23

QUADRO V. Sistema de avaliação do diagnóstico de dor neuropática proposto pelo NeuPSIG. CRITÉRIOS PARA DEFINIR O GRAU DE CERTEZA DO DIAGNÓSTICO DE DOR NEUROPÁTICA: 1. Dor com uma distribuição anatómica precisa e plausível a. 2. História clínica sugestiva de uma lesão ou doença relevante que afecte o sistema somatossensitivo periférico ou central b. 3. Confirmação da distribuição neuroanatomicamente plausível da dor por um teste, pelo menos c. 4. Confirmação da lesão ou doença por um teste, pelo menos d. GRAUS DE CERTEZA DA PRESENÇA DE DOR NEUROPÁTICA: Certamente dor neuropática: Todos os critérios (1-4) Provavelmente dor neuropática: Critérios 1 e 2 mais critério 3 ou 4 Possivelmente dor neuropática: Critérios 1 e 2 sem confirmação pelos critérios 3 ou 4 a Uma região que corresponde a um território de inervação periférica ou à representação topográfica de uma parte do corpo no sistema nervoso central. b A lesão ou doença está descrita como sendo causadora de dor neuropática, e existe uma relação temporal característica entre a lesão ou doença e a dor. c Testes ou exames complementares integrados com o exame neurológico que confirmem a presença de sinais neurológicos positivos ou negativos em concordância com a distribição da dor. O exame clínico pode ser suplementado por testes objectivos e/ou laboratoriais que permitam detectar anomalias subclínicas. d Testes integrados com o exame neurológico que confirmem o diagnóstico da lesão ou doença. O tipo de teste depende da lesão ou doença que causa a dor neuropática. Adaptado de Treede et al., 2007. ticos, pelo que deve ser tratada como tal. No nível inferior devem ser efectuados outros exames, ou referenciar o doente para uma consulta especializada, por forma a estabelecer o diagnóstico. Se não for atingido o nível inferior considera-se que é pouco provável que o doente tenha uma dor neuropática. 24

Para além do diagnóstico da dor neuropática, é importante avaliar a presença de comorbilidades e o impacto que a dor tem na funcionalidade e na qualidade de vida do doente Os testes ou exames complementares referidos no critério 3 incluem os questionários, testes sensoriais quantitativos, estudos electrofisiológicos, biópsias e exames imagiológicos. Para confirmação do critério 4 podem igualmente ser utilizados exames imagiológicos (p.e. para confirmar a presença de uma hérnia discal ou de uma lesão isquémica), laboratoriais (p.e. para confirmar o diagnóstico de diabetes ou esclerose múltipla), biópsias (de nervo ou cutâneas), etc. Note-se que não é necessário ter um diagnóstico da etiologia da doença para se atingir o nível mais elevado ( certamente dor neuropática ), pois pode encontrar-se uma lesão neurológica de etiologia desconhecida (p.e. uma polineuropatia periférica idiopática). Com base neste sistema de validação do diagnóstico de dor neuropática, o NeuPSIG propôs também um algoritmo para o diagnóstico de dor neuropática (Figura 3). Para além do diagnóstico da dor neuropática, é importante avaliar a presença de co-morbilidades e o impacto que a dor tem na funcionalidade e na qualidade de vida do doente. As dores neuropáticas provocam frequentemente alterações do sono, ansiedade e depressão, que deverão ser avaliadas e, eventualmente, objecto de tratamento específico. As limitações funcionais e a degradação da qualidade de vida devem igualmente ser monitorizadas, especialmente porque a sua melhoria é um dos objectivos da terapêutica. 25

HISTÓRIA CLÍNICA Distribuição neuroanatómica da dor + História sugestiva de lesão ou doença relevante NÃO DOR NEUROPÁTICA IMPROVÁVEL SIM POSSIVELMENTE DOR NEUROPÁTICA EXAME FÍSICO + EXAMES COMPLEMENTARES A Sinais positivos ou negativos confinados ao território da estrutura nervosa lesada B Confirmação do diagnóstico da lesão ou doença causadora de dor neuropática NÃO DOR NEUROPÁTICA NÃO CONFIRMADA A ou B A + B PROVAVELMENTE DOR NEUROPÁTICA CERTAMENTE DOR NEUROPÁTICA Adaptado de Treede et al., 2007. FIGURA 3. Algoritmo para o diagnóstico de dor neuropática. 26

TERAPÊUTICA A terapêutica deve ter como objectivos o controlo da dor e outros sintomas associados, bem como a melhoria da funcionalidade e da qualidade de vida do doente A terapêutica das dores neuropáticas deveria ser sempre centrada na cura da lesão ou doença que lhe deu origem. Infelizmente, tal não é possível em muitos casos, pelo que a terapêutica deve ter como objectivos o controlo da dor e outros sintomas associados, bem como a melhoria da funcionalidade e da qualidade de vida do doente. Os objectivos e limitações da terapêutica, bem como os seus potenciais efeitos secundários, devem ser claramente discutidos com o doente a fim de aumentar a adesão à terapêutica e não serem criadas falsas expectativas. A terapêutica deve ser individualizada para cada doente Não existe qualquer fármaco que seja eficaz em todos os tipos de dor neuropática. Por outro lado, a variabilidade inter-individual da resposta a um determinado fármaco é grande, mesmo quando na presença da mesma patologia. Assim, a terapêutica deve ser individualizada para cada doente, tendo em conta não apenas a sintomatologia dolorosa mas também a tolerabilidade, efeitos secundários, contra-indicações e a relação custo/benefício. A terapêutica farmacológica deve ser integrada num plano de tratamento que pode não se esgotar no uso de fármacos e pressupõe uma adequada relação médico-doente. A fisioterapia, a psicoterapia, as terapias ocupacionais e outras modalidades de tratamento, devem ser utilizadas sempre que indicado. Em alguns casos específicos poderá recorrer-se a técnicas mais diferenciadas, como neuromodulação ou técnicas neurocirúrgicas, cuja indicação pressupõe a referenciação do doente a uma Unidade de Dor Crónica ou a uma consulta especializada. 27

Ao contrário da dor nociceptiva ou inflamatória, a dor A dor neuropática não é neuropática não é sensível aos analgésicos convencionais, tais como o paracetamol ou os analgésicos convencionais sensível aos analgésicos anti-inflamatórios não esteróides. Os principais fármacos utilizados no tratamento das dores neuropáticas e respectivos mecanismos de acção estão indicados no Quadro VI. QUADRO VI. Principais fármacos utilizados na terapêutica das dores neuropáticas. GRUPO FARMACOLÓGICO FÁRMACO PRINCIPAL MECANISMO DE ACÇÃO ANTICONVULSIVANTES ANTIDEPRESSIVOS TRICÍCLICOS OUTROS ANTIDEPRESSIVOS Carbamazepina e Oxcarbazepina Gabapentina e Pregabalina Amitriptilina Duloxetina e Venlafaxina Inibição dos canais de sódio Inibição dos canais de cálcio présinápticos Inibição da recaptação de monoaminas Inibição selectiva da recaptação da serotonina e noradrenalina ANESTÉSICOS LOCAIS Lidocaína Bloqueio dos canais de sódio OPIÓIDES Morfina, Buprenorfina e Fentanilo Tramadol Activação dos receptores opióides endógenos Activação dos receptores opióides endógenos; acção sobre os sistemas noradrenérgico e serotoninérgico Qualquer que seja o fármaco utilizado, deve iniciar-se a terapêutica com doses baixas, que vão sendo progressivamente aumentadas a intervalos cuja duração depende do fármaco em questão, até que se atinja o efeito analgésico desejado, surjam efeitos secundários intoleráveis ou se atinja a dose máxima recomendada. Este processo, designado por titulação, destina-se a reduzir a incidência e intensidade dos efeitos secundários, os quais são frequentes e podem comprometer a adesão à terapêutica se não forem devidamente controlados. 28

A gabapentina é um fármaco de primeira linha no tratamento das dores neuropáticas, com eficácia analgésica demonstrada em várias patologias ANTICONVULSIVANTES A carbamazepina foi dos primeiros fármacos utilizados no tratamento da dor neuropática, designadamente na nevralgia do trigémio. Actua por inibição dos canais de sódio dependentes da voltagem (estabilizando a forma inactiva dos canais), inibindo desta forma a geração e propagação dos impulsos nervosos. A eficácia analgésica da carbamazepina está particularmente bem demonstrada na nevralgia do trigémio. Resultados positivos foram também obtidos no tratamento da polineuropatia diabética, mas não na nevralgia pós-herpética ou na dor central. Os seus pincipais efeitos secundários, sedação e ataxia, são frequentes e podem limitar a sua utilização. Mais raramente pode surgir anemia aplástica. Este fármaco é considerado de primeira linha apenas na terapêutica da nevralgia do trigémio. A oxcarbazepina é um derivado da carbamazepina com o mesmo mecanismo de acção e eficácia semelhante mas com um melhor perfil de efeitos secundários, pelo que pode ser utilizada em alternativa à carbamazepina. A gabapentina liga-se à subunidade α 2 δ dos canais de cálcio sensíveis à voltagem, modulando a sua actividade e reduzindo a libertação de neurotransmissores nos terminais sinápticos. É um fármaco de primeira linha no tratamento das dores neuropáticas, com eficácia analgésica demonstrada em várias patologias, como a nevralgia pós-herpética, a polineuropatia diabética, síndromes neuropáticos mistos e dor pós traumatismo medular. Foi também demonstrada eficácia na melhoria da qualidade de vida, humor e perturbações do sono associadas à dor neuropática. A tolerabilidade da gabapentina é superior à da carbamazepina. Os seus principais efeitos secundários são sonolência, tonturas e, menos frequentemente, sintomas gastrointestinais e edema periférico ligeiro. Estes efeitos podem obrigar a 29

reajustamentos da dosagem, mas, habitualmente, não obrigam à suspensão da terapêutica. A pregabalina actua de forma semelhante à gabapentina, mas tem maior afinidade para subunidade α 2 δ dos canais de cálcio sensíveis à voltagem e uma farmacocinética que condiciona um início de acção e titulação mais rápidos e uma eventual maior aderência terapêutica pelo facto de poder ser tomada duas vezes por dia enquanto a dose terapêutica da gabapentina é habitualmente dividida em três tomas diárias. A eficácia analgésica da pregabalina é idêntica à da gabapentina, mas alguns estudos demonstraram uma maior incidência de efeitos secundários com a pregabalina. Por último, o custo mais elevado da pregabalina penaliza a sua relação custo/benefício quando comparada com a gabapentina. ANTIDEPRESSIVOS TRICÍCLICOS Os medicamentos antidepressivos tricíclicos são também fármacos de primeira linha no tratamento das dores neuropáticas, com eficácia comprovada em várias patologias, incluindo na dor neuropática central. O mais estudado e mais utilizado é a amitriptilina, mas existem outros com eficácia comprovada e, eventualmente, menos efeitos secundários, como a imipramina. Ao inibirem a recaptação de monoaminas, os fármacos antidepressivos tricíclicos reforçam os sistemas moduladores endógenos inibidores da dor que utilizam aqueles neurotransmissores, com particular destaque para a noradrenalina e a serotonina. Tem sido referido que o efeito analgésico destes medicamentos é independente do seu efeito antidepressivo (pode ser importante explicar isso aos doentes para que percebam que não estão a tomar um medicamento para a depressão), obtendo-se habitualmente efeito analgésico com doses mais baixas do que as necessárias para se obter o efeito antidepressivo. Quase todos os doentes referem efeitos secundários decorrentes dos efeitos an- 30

Os antidepressivos tricíclicos ticolinérgicos dos medicamentos antidepressivos tricíclicos, designadamente boca seca, devem ser utilizados com cuidado em indivíduos obstipação, perturbações da micção e visão idosos ou com antecedentes turva. Sedação, disfunção sexual, hipotensão de doença cardiovascular, ortostática e outros efeitos cardiovasculares são também relativamente frequentes. Deste glaucoma, retenção urinária ou modo, os fármacos antidepressivos tricíclicos neuropatia autonómica devem ser utilizados com cuidado em indivíduos idosos ou com antecedentes de doença cardiovascular, glaucoma, retenção urinária ou neuropatia autonómica. OUTROS ANTIDEPRESSIVOS Existem fármacos antidepressivos que inibem selectivamente a recaptação de uma ou duas aminas. É o caso da paroxetina, inibidor selectivo da recaptação da serotonina, da duloxetina e venlafaxina, inibidores selectivos da recaptação da serotonina e noradrenalina, ou do bupropiom, inibidor selectivo da recaptação da dopamina e noradrenalina. A principal vantagem destes fármacos, quando comparados com os antidepressivos tricíclicos, é a menor incidência de efeitos secundários. Contudo, a sua eficácia analgésica parece ser também inferior, sobretudo no que diz respeito aos inibidores selectivos da recaptação da serotonina. ANESTÉSICOS LOCAIS A lidocaína bloqueia os canais de sódio dependentes da voltagem, impedindo desta forma a geração de potenciais de acção e a propagação dos impulsos nervosos. Sob a forma de emplastro a 5% (ainda não comercializado em Portugal) é eficaz no tratamento local da nevralgia pós-herpética ou outras nevralgias focais. OPIÓIDES Os medicamentos opióides provocam analgesia através da activação dos seus receptores endógenos, com especial destaque 31

para o receptor µ. Estes receptores têm uma distribuição alargada no sistema nervoso central, e mesmo na periferia, pelo que a acção analgésica dos medicamentos opióides resulta da inibição do sistema nociceptivo a múltiplos níveis. Embora a utilização dos fármacos opióides no tratamento das dores neuropáticas tenha sido questionada durante algum tempo, está hoje claramente demonstrado que são eficazes no alívio de vários tipos de dor neuropática, incluindo a nevralgia pósherpética, polineuropatia diabética, dor do membro fantasma, dor central, etc. Os efeitos secundários mais frequentes são a obstipação, náuseas e sedação. O risco de adição em doentes com dor neuropática não está bem estudado mas parece ser baixo. No entanto, devese ponderar cuidadosamente a utilização destes medicamentos em doentes toxicodependentes ou com antecedentes de dependências. A prescrição de medicamentos opióides para o tratamento de dores neuropáticas deve ser efectuada de acordo com as recomendações para a utilização de medicamentos opióides na dor não-oncológica recentemente aprovadas pela Direcção Geral de Saúde. O tramadol é um fámaco que inibe a recaptação da serotonina e noradrenalina, mas que também tem um metabolito que actua sobre os receptores µ. A sua eficácia em neuropatias periféricas foi demonstrada em alguns ensaios clínicos. Os principais efeitos secundários do tramadol são náuseas, tonturas, obstipação, sonolência e hipotensão ortostática. OUTROS FÁRMACOS Vários outros fármacos têm sido utilizados no tratamento da dor neuropática (alguns dos quais não são comercializados em Portugal), incluindo antagonistas dos receptores NMDA, antagonistas dos receptores GABA-B, anti-arrítmicos, canabinóides e A prescrição de opióides para o tratamento de dores neuropáticas deve ser efectuada de acordo com as recentes recomendações da Direcção Geral de Saúde 32

vanilóides. Contudo, a sua eficácia terapêutica ou não está demonstrada ou está demonstrada apenas em certas patologias e/ou em ensaios clínicos de reduzida dimensão, e/ou possuem efeitos secundários que limitam muito a sua utilização. RECOMENDAÇÕES PARA O TRATAMENTO DAS DORES NEUROPÁTICAS A Canadian Pain Society publicou muito recentemente recomendações para o tratamento farmacológico da dor neuropática baseadas na eficácia, segurança, facilidade de utilização e razão custo/benefício dos fármacos (Moulin et al., 2007). Recomendações semelhantes tinham sido publicadas em 2006 pela European Federation of Neurological Societies (Attal et al.,2006). De acordo com estas recomendações, os fármacos de primeira linha no tratamento das dores neuropáticas são os antidepressivos tricíclicos, a gabapentina e a pregabalina. Na segunda linha estão os inibidores selectivos da recaptação da Os fármacos de primeira serotonina e noradrenalina e a lidocaína tópica linha no tratamento das (que poderá ser de primeira linha no tratamento da nevralgia pós-herpética). O tramadol e os dores neuropáticas são os antidepressivos tricíclicos, a opióides de libertação lenta são analgésicos de gabapentina e a pregabalina segunda ou terceira linha para a dor moderada ou forte. Na quarta linha estão medicamentos como os canabinóides, metadona e anticonvulsivantes com menor acção analgésica, como o topiramato ou o valproato. Realçam ainda que o tratamento deve ser individualizado para cada doente com base na eficácia, efeitos secundários e acessibilidade do medicamento, incluindo o custo. Com base na eficácia demonstrada em ensaios clínicos e na incidência de efeitos secundários, Finnerup et al. (2005) e Gilron et al. (2006) propuseram algoritmos para o tratamento das dores neuropáticas. Na Figura 4 apresenta-se um algoritmo elaborado a partir das recomendações e algoritmos acima enunciados. 33

[1] O emplastro de lidocaína a 5% ainda não se encontra comercializado em Portugal, prevendo-se que o venha a ser no início de 2009. [2] Embora os ensaios clínicos indiquem uma maior eficácia dos antidepressivos tricíclicos, a gabapentina possui um melhor perfil de efeitos secundários, pelo que poderá ser o fármaco de 1 a escolha quando estes são um factor importante (p.e. em doentes com risco cardiovascular, idosos e/ou polimedicados). A pregabalina pode utilizar-se quando se pretende uma resposta terapêutica mais rápida pois tem um perfil farmacocinético melhor que a gabapentina. [3] Caso surjam efeitos secundários intoleráveis, os antidepressivos tricíclicos podem ser substituídos pela gabapentina ou pregabalina, ou vice-versa. Embora existam poucos ensaios clínicos sobre a associação dos fármacos antidepressivos tricíclicos com gabapentina ou pregabalina, esta justifica-se quando se obtenha uma eficácia analgésica apenas parcial com um deles sem que surjam efeitos secundários importantes. O mesmo se aplica à associação de gabapentina ou pregabalina com os inibidores selectivos da recaptação da serotonina e noradrenalina. ADT - antidepressivo tricíclico; GBP - gabapentina; PRG - pregabalina; BAC - baclofeno; IRSN - inibidor selectivo da recaptação da serotonina e noradrenalina. FIGURA 4. Algorítmo para a terapêutica farmacológica das dores neuropáticas. [4] Os fármacos inibidores selectivos da recaptação da serotonina e noradrenalina poderão ser utilizados como primeira opção caso haja contraindicações para a utilização dos antidepressivos tricíclicos e da gabapentina e pregabalina. 34