O MESTIÇO EM OS SERTÕES: ELEMENTO DA BRASILIDADE

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Transcrição:

O MESTIÇO EM OS SERTÕES: ELEMENTO DA BRASILIDADE Maria Eliane Vieira Dantas, Professora de Língua Portuguesa no munícipio de Catolé do Rocha-PB, Supervisora Educacional em Bom Sucesso-PB, mestranda em Formação Educacional, Interdisciplinaridade e Subjetividade UNASUR. maelidantas@hotmail.com Francisco Dantas Veras Neto, Professor de História em Jérico- PB e Alexandria-RN, mestrando em Formação Educacional, Interdisciplinaridade e Subjetividade UNASUR. dantasveras@hotmail.com GT-17: POLÍTICAS EDUCACIONAIS E LEGITIMAÇÃO DAS PRÁTICAS INCLUSIVAS NOS RECORTES ÉTNICO-RACIAL, GERACIONAL E DE GÊNERO RESUMO: O presente trabalho cuja pretensão consiste em apresentar através de uma pesquisa bibliográfica um estudo genérico da visão de Euclides da Cunha sobre a História da Mestiçagem Brasileira em - Os Sertões - na qual a fundamentação teórica desse processo está calcada no conceito de Questão Racial de NINA RODRIGUES E SILVIO ROMERO, de identidade de STUART HALL, entre outros, uma vez que a identidade muda segundo a forma pela qual o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas construída. Assim, há uma politização da identidade voltada para a classe. Nesse propósito o mestiço é abordado como o resultado do cruzamento de dois elementos étnicos, a raça branca como superior e a raça negra como inferior, influenciados pela interferência do meio em que estão inseridos. Uma vez que a obra, literária, euclidiana demonstra ainda um forte apelo realista o qual produzirá uma representação do homem nacional - havendo em seu pensamento, uma tensão com essa problemática, em um momento desqualifica, e, posteriormente relativiza a mestiçagem. Contudo, o que buscava com essas considerações era um tipo específico de homem nesse emaranhado de mestiços, aquele resistente, proveniente da aridez dos sertões, das dificuldades cotidianas e que, não estaria degenerado pelos vícios da vida civilizada. Reconhecendo, portanto, a mestiçagem ora como estorvo para o processo civilizatório, ora como processo fundamental e positivo para a formação da sociedade brasileira. Palavras chave: Identidade. Mestiçagem. Raça. Literatura. Nacionalidade. RESUMEN: El presente trabajo hace la presentación por médio de uma pesquisa bibliográfica um estúdio de la visión de Euclides da Cunha sobre la Historia de la mestizaje brasileña, cuya fundamentación teórica de esse proceso está baseada em el concepto de cuestión racial de Nina Rodrigues y Silvio Romero, de identidad de Stuart Hall, de entre otros, llevando em consideración que la identidad cambia según la manera por la cual el sujeto és representado, por lo tanto, ella es construída, por esso, hay uma politización de identidad hacia la clase. Com esse propósito el mestizo es conocido como si fuese el produto de la mescla de dos elementos étnicos: lar aza blanca como si fuese la superior y lar aza negra como la inferior, teniendo la influencia del médio em que se encuentran. Además, la obra de Euclides da Cunha demuestra um fuerte apelo realista que resultará em la representación del hombre nacional, surgiendo uma tensión com esa problemática, que em ciertos momentos lo descalifica y despues relativiza el mestizaje. Sin enbargo, lo que se queria com todo eso era um tipo específico de hombre dentio de esse grupo de mestizos, o sea, uno resistente, que venga de la tierra árida de los sertões, de las dificultades diárias y que no estaria contaminado por los vícios de la civilización. Reconociendo, por lo tanto, el mestizaje bien como barrera

para el proceso civilizatório, bien como siendo parte fundamental y positivo del processo para la formación de la sociedad brasileña. Palabras llave: Identidad, Mestizajem, Raza, Literatura, Nacionalidad. INTRODUÇÃO O tema do mestiço é bem caracterizador da sociedade brasileira, a qual na sua identidade é demarcada pela presença das raças negra, índia e branca, sobretudo da mistura entre elas, o que resulta no surgimento do mestiço brasileiro. A sociedade brasileira, portanto, desde o advento de sua independência em relação a Portugal procura se caracterizar como uma nação capaz e autônoma no seu caminhar em busca de um desenvolvimento, identificação e caracterização de uma identidade originalmente brasileira, cuja identificação se faz através da literatura e consequentemente da História. Neste sentido, a literatura pode servir como um meio de trazer temas voltados ao caráter intimista e individual do sujeito, bem como tratar de temas relacionados aos grupos sociais (índio, mulher, negro, sertanejo, nordestino, exploradores, dentre outros), podendo ir e/ou não ao encontro do contexto histórico, sócio cultural de uma dada época. Desse modo, inicialmente trataremos da aproximação entre a literatura/ história e a sociedade, tomando como referência as discussões de Samuel Rogel (1984), dentre outros, os quais defendem a ideia de que a literatura histórica é um meio de representação social, de função humanizadora, por isso, considerada como elemento decisivo na e para a formação do homem como sujeito social. Tematizaremos sobre o conceito e caracterização do mestiço na sociedade e sua representação como elemento de brasilidade. Nesta perspectiva, fundamentar-nos-emos, nos estudos de Arthur Ramos (2004) e Nina Rodrigues (1932), atentando para a caracterização do mestiço, trazendo para o centro discursivo a questão da desigualdade racial, evidente desde o período colonial, perdurando até os dias atuais, embora com outras nuances. Observando, ainda, a visão que Euclides da Cunha tem sobre a mestiçagem personificada em Os Sertões. METODOLOGIA A obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicada em 1902, traz para a discussão o tema do mestiço, o que justifica o interesse em desenvolvermos uma pesquisa de caráter bibliográfico, intitulada O MESTIÇO EM OS SERTÕES: ELEMENTO DA BRASILIDADE.

Segundo Gil (2002), este tipo de pesquisa proporciona uma maior familiaridade com o problema, tornando-o mais explícito. Devido ao assunto ser de interesse de várias áreas do conhecimento, não se pode deixar de aplicar na pesquisa uma leitura transdisciplinar, que é o diálogo entre conteúdos disciplinares diferenciados. Salienta Morin (1999, p.36) que [...] a transdisciplinaridade se caracteriza geralmente por esquemas cognitivos que atravessam as disciplinas, às vezes com uma virulência tal que as coloca em transe. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O mestiço como elemento da brasilidade A relação existente entre literatura e sociedade é demasiadamente profunda, haja vista que podemos dizer que através da literatura nos tornamos capazes de compreender as transformações pelas quais passa a humanidade no decorrer do tempo, sendo esta, fator primordial para relatos históricos da humanidade, como é o caso da obra precursora do Pré modernismo, Os Sertões de Euclides da Cunha, que se tornou uma obra literária canônica em que faz declarações que são confirmadas pela história da sociedade da época, que remete aos processos de cognição, reconhecimento e atribuição de uma identidade brasileira. Os Sertões nasceram como a história da campanha de Canudos - é o que nos diz Euclides na "Nota Preliminar" do livro. Entre as visões inovadoras de Euclides, merece destaque a valorização, pelo menos no plano poético-narrativo, da mestiçagem. A capacidade de sobrevivência do sertanejo contra as adversidades da natureza e da guerra é extraordinária e admirável. A comunidade de Canudos consegue satisfazer as necessidades básicas de milhares de habitantes em plena caatinga, num semideserto, onde vivem melhores do que nas fazendas. Entendemos a tônica posta no fator racial na obra Os Sertões quando se remete o modo de pensar que aproxima o livro à mente positivista que permeou a cultura de Euclides, engenheiro e militar na segunda metade do século XIX em um país culturalmente preso à França. A respeito deste fato Ramos (2004, p.97) discorre: Acresce que a ciência antropológica do século XIX e começos do XX, sob a influência, de um lado, da sócio-antropologia de Gobineau e seus seguidores, e do outro, da antropologia criminal de fontes lombrosianas, colocara o problema das raças e da inferioridade das mestiçagens em termos errados, tomando por base as teses das desigualdades das raças e da inferioridade da mestiçagem. Não é, pois, de admirar que os nossos tratadistas que revelaram uma certa erudição antropológica

tenham sido influenciados pelos pré-julgamentos da época. É o que se verifica, por exemplo, em três dos nossos mais famosos escritores do começo do século Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Silvio Romero. Por sua vez sabemos que com o desenvolvimento das civilizações no Brasil, os sistemas de identidade foram tomando forma configurando as relações raciais e a conseqüente determinação de papéis e definições de atributos morais, sociais e econômicos de que cada raça dispunha. Para tanto se faz indispensável conhecermos o conceito de civilização segundo Huntington (1996: 16), O conceito de civilização universal implica primordialmente em uma cultura que seja comum a toda humanidade. A discussão sobre a identidade nacional configura-se, portanto, como uma maneira de destacar como a realidade brasileira, fendida e dilacerada, era a própria marca do fracasso dos sonhos da colonização e da monarquia portuguesas, dos conceitos que tomam por base o modo como se percebe as diferenças raciais no Brasil. Sendo assim os trabalhos dedicados à investigação de identidade têm contribuído de maneira significativa para a concepção de uma dimensão importante das relações raciais de uma nação e suas contribuições ao longo da história. A identidade refere-se a uma dimensão da consciência e diz respeito ao sistema de valores que compõem a personalidade individual ou coletiva, uma vez que a identidade muda segundo a forma pela qual o sujeito é representado, a identificação não é automática, mas pode ser construída. Assim, há uma politização da identidade voltada para a diferença e não mais para a classe. Desse modo, Stuart Hall nos apresenta o conceito de identidade, na qual esta pode ser vista como algo dinâmico; definindo-se historicamente e não biologicamente, sendo formada e transformada de forma contínua. Nesse sentido, Hall (2001, p.38) afirma que: [...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não como algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada. No que se refere à questão racial, a teoria que vigorou com muita frequência nos finais do século XIX foi a da evolução das espécies, o darwinismo, que influenciou de forma marcante o pensamento sobre raças. Sendo assim faz-se necessária também uma compreensão sobre raça. Para Fernandes (1989), [...] raça é uma formação social qu e não pode ser

negligenciada na estratégia de luta de classes e de transformação dentro da ordem ou contra ordem. (p.62). Enfatizando, Santos (2002, p.51) defende que: Com evolução do darwinismo social a questão da raça ganhou um enfoque mais radical: baseados nos princípios da evolução das espécies e da seleção natural, os darwinistas acreditavam numa raça pura mais forte e sábia que eliminaria as raças fracas e menos sábias, desenvolvendo, portanto a eugenia. Isto posto, tornar-se importante enfatizar ainda que no final do século XIX, estudiosos se debruçaram sobre a temática das raças para tentar explicar que o mestiço era um problema para o país, impedindo o desenvolvimento social e econômico da nação. Por isso é que Os Sertões vai inserir-se neste contexto, como meio de denúncia das diferenças raciais, sociais e dos crimes cometidos em nome da identidade nacional. Aqui nos interessa o estudo da história da mestiçagem, visto que este trabalho tem como objetivo uma leitura da visão de Euclides da cunha sobre a história da mestiçagem brasileira em Os Sertões. Obra escrita no século XIX no qual, as diferenças raciais eram bastante sólidas, porém não se deixou aprisionar dentro desse sistema opressor. Para o prosseguimento desse estudo, torna-se necessário uma breve explanação sobre as relações raciais e como estas se desenvolveram ao longo do tempo, na literatura, mais precisamente no século XIX. O Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e mulatas. Deus fez o branco e o negro, e o diabo fez o mulato. Estes ditados, aparentemente contraditórios, cuja origem se perde no tempo, constituem um indicador preciso do rumo tomado pelas discussões a cerca das relações sociais no Brasil: a questão da miscigenação permeia a obra da maioria dos estudiosos do problema racial e tem sido usada por muitos como argumento explicativo da realidade brasileira. Assim, o mestiço mulato mameluco ou cafuzo ora aparece como problema, ora aparece como solução. (SEYFERTH 1989, p.11). Dessa forma, criou-se o cenário perfeito para a discussão da questão racial. A esse respeito, Seyferth (1989, p.13) mostra que, no Brasil, ainda no final do século XIX, surge uma questão de discussão muito forte sobre raças, tomando-se quase como uma ciência, é o chamado branqueamento da raça que foi fortemente influenciado pelas ciências sociais. Se tornou uma questão racial no final do século XIX, quando nossos primeiros sociólogos e antropólogos elaboraram suas teorias sobre o branqueamento da raça a partir da realidade mais claramente perturbadora do caos étnico brasileiro: os mestiços.

Em virtude dos fatos expostos percebemos que Os Sertões tem importância não apenas literária, mas também histórica e científica por desafiar a ideologia conservadora da época no sentido de denunciar os contrastes existentes entre o Brasil litorâneo e o do interior nordestino haja vista que a sociedade brasileira da época constrói a imagem do mestiço como condenado a sofrer discriminações e enfrentar o preconceito de raças. A representação identitária do mestiço como definição da identidade nacional De acordo com Schwarcz (1999) a diversidade racial é comum em qualquer sociedade. Dentre elas, a mestiçagem é uma das que estruturam a sociedade pelo fato de que este determina a identidade de uma nação, traçando, portanto seus destinos. Essas relações contam com uma vasta bagagem histórica. A maior parte da história da mestiçagem tem buscado de alguma forma incluí-la como objeto de estudo, sujeitos da história, evidenciando as diversas ações e experiências dos cruzamentos civilizatórios de um povo com intuito de enfatizar a importância das mesmas para história da identidade nacional brasileira. A preocupação de Euclides da Cunha com o meio físico e a questão racial em sua obra mestra - Os Sertões- diz respeito à identidade nacional. Sendo que, no esquema geral de Os Sertões, demonstra a crença na existência de raças superiores, por trazer consigo a ideia de que a mestiçagem representa um risco para a formação do povo brasileiro, pois o fruto pode herdar tanto os traços positivos como os negativos das espécies que se cruzam. Admitindo com isso, que os traços genéticos são transmitidos de geração a geração. Vejamos: A mistura de raças mui diversas é na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem é um retrocesso. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se acrescentam; subtraem-se ou destroem-se segundo caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço mulato, mameluco ou cafuz menos que um intermediário é um decaído, sem a energia física dos antecedentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mas frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. (CUNHA, 2000, p.15)

A esse respeito Nina Rodrigues descreve a mestiçagem como algo degenerativo para a nacionalidade. Pois, de acordo com Spencer, na vida animal, todo cruzamento entre variedades muito estranhas uma a outro, tem como resultado, produtos indesejáveis. Entretanto, o cruzamento entre variedades ligeiramente diferentes dá bons resultados. E assim esse pensamento poderia ser aplicado aos seres humanos. Visto que a mistura de raças muito dessemelhantes parece produzir um tipo mental sem valor. Em contraposição, as raças de mesma origem, através do cruzamento, um tipo mental muitas vezes superior aos seus tipos formadores. E reforça Nina Rodrigues apud Arthur Ramos (2004, p.100): Os fenômenos psicopatológicos do mestiço brasileiro desde a instabilidade do seu caráter até as formas múltiplas da criminalidade decorreriam, segundo ele, do que chamou de os dois princípios fundamentais: a herança pela larga transmissão dos caracteres das raças inferiores a que dá lugar e o mestiçamento, pelo desequilibrado ou, antes, pelo equilíbrio mental instável que acarreta, desde as instabilidades de caráter, até as múltiplas formas de criminalidade. Contudo, percebe-se a construção da representação identitária do mestiço feita por Euclides da Cunha se dá por dois processos diferenciados de mestiçagem: a litorânea, que resulta o mulato tido como ser retrógrado -, cruzamento do negro com o branco; e a sertaneja, marcada pelo predomínio da miscigenação entre brancos e indígenas que tenderiam a elevar o Brasil à nação, isto é, elemento fundador de nossa nacionalidade. Observemos o sentimento de repulsa e admiração pelos mestiços: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É gracioso, desengonçado, torto. Hércules- Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. [...] È homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude. [...] (CUNHA, 2000, P.16). Dessa forma o mestiço do sertão teria vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de componentes africanos, tornando mais estável sua evolução racial e cultural. Para isso Euclides da Cunha reafirmou a tese de Nina Rodrigues apud Arthur Ramos (2004, P.100) que afirma:

Os fenômenos psicopatológicos do mestiço brasileiro, desde a instabilidade do seu caráter até as formas múltiplas da criminalidade decorreriam, do que chamou de os dois princípios fundamentais: a herança pela larga transmissão dos caracteres das raças inferiores a que dá lugar e o mestiçamento, pelo desequilíbrio ou, antes, pelo equilíbrio mental instável que acarreta, desde as instabilidades de caráter, até as múltiplas formas de criminalidade. E conclui:... acredito e afirmo que a criminalidade no mestiço brasileiro é como todas as outras manifestações congêneres sejam elas biológicas ou sociológicas, de fundo degenerativo e ligado às más condições antropológicas do mestiçamento no Brasil. Separando um pequeno grupo de mestiços superiores que por uma combinação feliz se apresentariam perfeitamente equilibrados e plenamente responsáveis, entrariam os demais em duas categorias: as dos mestiços evidentemente degenerados, total ou parcialmente irresponsáveis, e as dos mestiços comuns, produto socialmente aproveitáveis, superiores às raças selvagens de que provieram. Isto posto, percebe-se que Euclides da Cunha admite que a mestiçagem do sertão processou-se de modo diferente da mestiçagem do litoral, por esta última esta corrompida pelos processos negativos da civilização. Já que o sertanejo como estava afastado da mesma não teve o trabalho de adaptar-se a imposição civilizatória da sociedade superior, o que evitou que declinassem para as aberrações e vícios dos meios mais adiantados. Com base nas afirmações de Nina Rodrigues e Euclides da cunha podemos notar que a mestiçagem do litoral e dos sertões se deram de forma distintas, seja pelas condições do meio seja pelos elementos raciais. Haja vista, a maneira como o sertanejo esta representado, tomado em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social inicial. Apesar dos argumentos raciais estereotipados na questão da mestiçagem presentes na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, concluimos que a identidade nacional é mesmo mestiça, apesar da questão racial e da mestiçagem no Brasil, revelar-se ainda de uma extrema complexidade do problema e suas hesitações em face do mesmo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Euclides da Cunha a partir de sua obra mestra, Os Sertões, usando de uma sensibilidade aguçada e de um olhar atento sobre a realidade do mundo em que se encontrava inserido, revela a ambiguidade característica da sociedade que formava a nação brasileira, sobretudo a mestiçagem presente no sertão do nordeste do país, suas contradições entre os ideais republicanos pregados e as questões raciais adotadas na época. Este, assim como sua obra, é considerado como membro de suma importância para o cânone da nossa tradição

literária, não só por ser um autor cuja obra é plurissignificativa, mas também porque sua obra possibilita ao leitor a oportunidade de refletir e analisar os acontecimentos reais sobre A Guerra de Canudos, identificando assim suas reais intenções e/ou motivações, encontradas de forma explícitas na condição a que os sertanejos (mestiços) estavam submetidos. Portanto, o leitor ao penetrar em cada ponto da narrativa em busca da essência do seu enredo, dos seus verdadeiros sentimentos e/ou acontecimentos, não viria a se deparar com respostas prontas e acabadas sobre a definição da identidade nacional, mas com uma constante ambiguidade sobre a formação mestiça que a formava, já que ora era tida como progresso ora como retrocesso. Seria interessante observar ainda que na obra abordada neste estudo há uma forte ligação com o contexto social da época, mais especificamente com as questões raciais, em especial com a mestiçagem e seu meio. O autor desvendou nesta obra os mecanismos ideológicos vigentes na sociedade das três últimas décadas do século XIX. E o fez através de uma crítica explícita sobre os motivos que levaram a deflagrar a revolta dos sertanejos. Revelou, através da análise minuciosa do comportamento e do meio em que suas personagens estavam inseridas, alguns traços dessas formas de preconceitos raciais e por sua vez de dominação vigentes na época, utilizados para justificar os motivos da miserabilidade de um povo esquecido nos recantos da nação, por seus governantes republicanos. Dessa forma, tornam-se relevantes estudos dessa natureza, pois todo levantamento bibliográfico e as leituras feitas durante toda esta pesquisa dos mais diversos autores, que comentam e opinam a respeito da obra euclidiana busca contribuir de forma significativa com a literatura nacional, sobretudo nordestina por esta mostrar a bravura, a cultura e o meio em que seu povo se insere, bem como com aquelas que questionam a diversidade racial do Brasil, tendo em vista a necessidade de o país constituir uma raça capaz de elevar a nação aos parâmetros da civilização. Percebe-se, também, portanto que Os Sertões tem importância não apenas literária, mas também histórica e científica por desafiar a ideologia conservadora da época no sentido de denunciar os contrastes existentes entre o Brasil litorâneo e o do interior nordestino, haja vista que a sociedade brasileira da época constrói a imagem do mestiço como condenado a sofrer discriminações e enfrentar o preconceito de raças. Sendo que as noções e os conceitos apresentados até aqui nortearam o desenvolvimento do trabalho exposto, viabilizando o entendimento das diversas categorias inerentes às relações raciais, bem como a construção de identidades na formação do povo brasileiro.

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