A grande lição
Adoro os homens. Gosto de estar com eles, e não conheço homem feio. Todos são bonitos: cada um com seu cheiro característico, seu andar, seu modo de olhar. Alimentam um amor imenso pela mãe e pelo próprio corpo. Magros ou gordos, todos têm um belo corpo, mesmo quando são barrigudinhos. Às vezes me pergunto como eles fazem para andar: será que o pau no meio das pernas não atrapalha? Essa pergunta eu (ainda) não tive coragem de fazer. Outra coisa que adoro é falar o que penso. Sem papas na língua. Quem ler este livro vai perceber isso. Aprendi uma porção de coisas nessa temporada na Terra. Uma delas é a importância de se ter uma opinião, de reclamar quando não se está gostando de algo. Demorei muito para adquirir esse direito e, por isso mesmo, não abro mão dele. Passei um pedaço da minha vida lutando por ele. Estou gastando um outro bom naco tentando convencer minhas colegas prostitutas de que esse direito também é delas. Existe uma terceira coisa que eu prezo muito. Talvez seja a que mais prezo, aliás. É a liberdade. Liberdade de pensar diferente, de vestir diferente, de se comportar diferente... Não sei direito de onde veio essa minha paixão pela liberdade (minha vida é feita de muitas certezas, mas também de infinitas dúvidas e contradições), mas ela veio para ficar. Meu destino até aqui foi norteado por esses três amores. E, como todos nós sabemos, o amor não traz só felicidade. Ele gera muita dor também, em nós mesmos e em quem está perto. Sei que, por causa dessa minha obsessão por romper amarras (sejam elas políticas, culturais, morais ou psicológicas), feri algumas pessoas queridas. Mas acredito que também ajudei um sem-número de prostitutas a ter uma vida mais digna. Fui, sou e vou continuar sendo responsável pelos meus atos. O que pensar sobre eles é resultado do conceito de vida de cada um. Enquanto eu puder continuar exercendo minha liberdade, não tenho com o que me preocupar. É a maior lição que aprendi. Eu: filha, mãe, avó e puta. GABRIELA LEITE 5
Primeiro Mandamento da Puta: Serás discreta. Jamais apontarás um homem na rua e dirás que ele é teu cliente.
COCA-COLA COM BOLINHA Desce! Desce!, a prostituta gritava para o sujeito. Desce! A cena era inacreditável. Visivelmente fora de si, a mulher puxava um homem pelo braço, tentando tirá-lo de dentro de um elevador lotado. Ele era um cliente de um prédio inteiramente dedicado à prostituição, na São Paulo dos anos 70. Ela...Ela era eu. As drogas sempre rondaram o universo das putas, de uma forma ou de outra, mas nunca fizeram a minha cabeça. Naquela época, porém, não sei bem por quê, acabei me viciando em bolinha. Talvez tenha sido falta de informação ou vontade de experimentar tudo. As meninas daquele edifício, o número 134 da rua Barão de Limeira, costumavam tomar Pervetin ou bolinha. Um dia eu estava cansada e uma colega me perguntou se eu não queria provar metade de uma bolinha. Adorei. Gostei da eletricidade, da ligação. E fui aumentando. Todo dia aumentando. Quando eu parei, já estava numa média de cinco por dia. Toda manhã eu chegava no prédio, comia um pãozinho fresco com manteiga e tomava um café puro que a Cecília, nossa cafetina, preparava no apartamento onde transávamos com os clientes. Tinha um rapaz que fazia as comprinhas para as meninas; assim a gente não precisava ficar trocando de roupa toda hora para ir na padaria. Eu pedia para ele me trazer uma coca-cola grande. Lá não podia entrar bebida, droga, nada. Mas tinha um homem que passava pelos corredores vendendo bolinhas. Eu amassava a bolinha com o fundo do copo, misturava na coca-cola e mandava para dentro. Trabalhava ligada. Muitas vezes os clientes diziam para mim: Tá com os olhos parados, menina! Tá fazendo bobagem? Depois do trabalho, ia num restaurante próximo comer, na maioria das vezes, uma saladinha de agrião. E ficava pela noite, chapada. Num domingo, a zona tava meio parada e acabei tomando várias bolinhas. De repente, vi o elevador parar no meu andar completa- GABRIELA LEITE 7
mente lotado de homens; eles estavam espremidos lá dentro. Peguei um deles pelo braço e disse: Desce! Ele disse que não queria descer e eu comecei a puxar o sujeito pelo braço: Desce! O homem tentava se soltar de mim, todo mundo começou a gritar comigo para soltá-lo. E eu, que tomava minhas bolinhas na intenção de fazer mais e mais clientes, botei na minha cabeça que ia tirar aquele homem do elevador de qualquer jeito. O sujeito era um cara qualquer, não tinha nada de especial. Eu estava movida simplesmente por uma obsessão profissional. O ascensorista começou a gritar comigo, dizendo que ia fechar a porta, e eu respondi: Fecha que eu vou quebrar o braço desse desgraçado. Coitado do homem! Depois do escândalo, eu vi o que estava acontecendo comigo. Muitas meninas já tinham passado por coisa parecida, batido nos seus clientes, e algumas chegaram mesmo a surtar. Resolvi parar. Não era uma história de tanto tempo e eu já estava me desconhecendo. O que poderia vir adiante? Eu não sabia, ninguém sabia. Mas provavelmente coisa boa não era. Com muito esforço, parei. No começo a produtividade caiu um bocadinho. Mas valeu a pena. Sem as bolinhas, eu conseguia bater papo com os clientes. E conversar com eles é um dos segredos da boa prostituta. No princípio, é difícil entender como funciona o nosso mundo. Com o passar dos anos, porém, consegui decifrá-lo. Ou, pelo menos, parte dele. Cliente não se trata como namorado. Mas foi dando ouvido a eles, que sempre dizem o que gostam e o que querem, que comecei a aprender os segredos da profissão. Homens são extremamente frágeis e toda a história de que são grandes conhecedores da sexualidade feminina é uma grande mentira. Eles sabem de suas vontades urgentes e suas fantasias. E estas, na maioria das vezes, são tratadas como algo a ser escondido, uma fraqueza que não deve ser dividida com ninguém. Inclusive e principalmente com as mulheres que eles amam. 8 FILHA MÃE AVÓ E PUTA
Aprendi com os clientes que devemos sempre fingir orgasmo, porque é assim que eles querem. Gostam de acreditar que a mulher que eles estão comendo goza com eles, mesmo a prostituta. Mesmo que seja numa trepadinha de cinco minutos. Existem aqueles que gostam de pensar que pagando um pouco mais a prostituta goza. Como se o orgasmo dependesse de dinheiro. O episódio do elevador foi um dos mais marcantes da minha história. Uma história que começou muito antes, quando meus pais, Oswaldo e Mathilde, se conheceram. GABRIELA LEITE 9