AS RELAÇÕES CONCRETAS COM O OUTRO EM ENTRE QUATRO PAREDES Maria Inez de Souza Mestrado Universidade Federal de São Carlos (UFSCar Bolsista CNPq m.inez@uol.com.br Sartre discute as relações com o outro em O Ser e o Nada, no terceiro capítulo da terceira parte intitulado: As relações concretas com o outro. Nestass relações com o outro, duas atitudes são possíveis: a primeira é o amor, a linguagem e o masoquismo, e a segunda a indiferença, o desejo, o ódio e o sadismo. Na peça Entre quatro paredes, essas atitudes para com o outro são representadas no plano concreto dos personagens, suas ações e suas situações existenciais. Para Sartre, partindo do pressuposto que estou no mundo e no mundo há outras realidades humanas, ou seja, outras consciências e outras liberdades que se impõem a mim surgem as relações com o outro, e essas relações, diz ele, tomam a forma de conflito. Por meu olhar que quer atingir a subjetividade do outro enquanto outro, eu o transformo em coisa ou elemento do mundo. Por isso, apodero-me de sua liberdade, fazendo dele um objeto; com essa atitude, vou suprimi-lo como outro e, inversamente, o olhar dele vai ter o mesmo efeito sobre mim, vai me fazer coisa ou objeto no meio do mundo. Na atitude para com o outro, tudo que vale para mim, vale para outro: se tento me livrar do domínio do outro o outro tenta se livrar do meu, enquanto procuro subjugar o outro o outro procura me subjugar; pois, trata-se de relações recíprocas e moventes. Sartre diz que as relações com o outro caminham em círculo, e a tentativa de uma atitude está na outra e a leva à morte. Não se pode sair do círculo. Para ele, essas atitudes se produzem e se destroem em círculo. Partindo da revelação do outro como olhar, experimento meu ser-para-outro como uma posse. Sou possuído pelo outro, o olhar do outro vê meu corpo como jamais o verei; o outro detém o segredo do que sou. O outro faz-me ser, e por isso, me possui, e esta posse é a consciência de me possuir. Reconhecendo minha objetividade, percebo que o outro tem essa consciência. O outro é para mim, aquele que roubou meu ser, mas também, é aquele que faz com que haja um ser que é meu ser. Sartre diz que, nesta estrutura ontológica, sou - 80 - PPG-Fil - UFSCar
responsável por meu ser-para-outro, mas não sou o seu fundamento; o outro fundamenta meu ser em completa liberdade, por sua livre transcendência, mas não é responsável por ele; por isso, à medida que me revelo responsável por meu ser reivindico este ser que sou, quero recuperá-lo, sou projeto de recuperação do meu ser. Assim, meu projetoo de recuperação de mim é também projeto de reabsorção do outro; pois, se projeto realizar a unidade com o outro, significa que projeto assimilar a alteridade do outro como minha possibilidade própria. Portanto, trata-spossibilidade de adotar em mim o ponto de vista do outro. para mim de fazer-me ser adquirindo a O outro que pretendo assimilar é o outro enquanto outro-olhador, no entanto, esse projeto comporta um reconhecimento de meu ser-visto, isso é, me identifico com meu ser-visto, a fim de manter à minha frente a liberdade olhadora do outro, pois meu ser-objeto é a única relação possível entre eu e o outro e é somente ele que pode me servir de instrumento paraa realizar a assimilação em mim da outra liberdade. Para Sartre, esse projeto de unificação é fonte de conflito, pois enquanto me experimento como objeto para o outro e projeto assimilar o outro por esta experiência, o outro me apreende como objeto no meio do mundo e não projeta me identificar com ele. Para Sartre, toda conduta para com o outro pode se reduzir a uma tentativa de apoderar-se de sua subjetividade (ou liberdade). Porém, de qualquer maneira que se dê, essa tentativa está fadada ao fracasso, pois a unidade com o outro é um ideal que não posso realizar. Quando o outro me olha, sei que não se trata de um corpo que me vê, mas que atrás daqueles olhos há uma consciência e o olhar me revela que não sou apenas um corpo, um em-si, mas que também eu sou consciência. Porém, ao ser vista, a consciência perde seu caráter de ser consciência a si e é tomada pelo olhar: o outro me reduz à condição de objeto e minha reação passa a ser a vergonha. Para Sartre, a vergonha é uma forma de reconhecimento do outro no campo da minha existência, na vergonha reconheço que sou como o outro me vê, sou para-o- a primeira é outro; o outro, como olhar, é a minha transcendência transcendida. Diante dessa realidade, Sartre entende duas linhas de conduta: ilustrada pelo fenômeno do amor. Meus projetos me colocam em conexão direta com a liberdade do outro, e é nesse sentido que o amor é conflito. A liberdade do outro é fundamento do meu ser, e porque existo pela liberdade do outro, não tenho nenhuma segurança, estou em perigo nesta liberdade: ela modela meu ser e me faz ser, confere- e me valores e os suprime. Para Sartre, o amor deseja capturar a consciência, isso - 81 - PPG-Fil - UFSCar
comporta um modo de apropriação: a é da liberdade do outro que queremos nos apoderar. Sou o absoluto da minha liberdade e é isso que o outro me nega, fixando-me. Naturalmente, nesta luta tento me defender, pois o meu corpo é para o outro um centro de significações que me escapam; já que não me vejo de fora, o outro é para mim motivo de preocupação. Na experiência do amor, segundo Sartre, cada consciência quer colocar seu servistos juntos por para-outro a salvo na liberdade do outro, entretanto se os amantes são um terceiro, cada um vai experimentar a objetivação de si e do outro. E assim, o outro não é mais para mim a transcendência absoluta que me fundamenta em meu ser, mas ele passa a ser a transcendência-transcendida por esse terceiro. O fracasso do amor leva ao masoquismo, que é para Sartre uma tentativa de fazer com que eu me constitua em objeto pelo outro e também de me fazer fascinar por mim mesmo pela minha objetividade-para-outro. Mas, o masoquismo é um fracasso em si mesmo. Sartre diz que é na sua e por sua transcendência que eu me coloco como um ser a transcender: quanto mais busco minha objetividade, mais vou ser absorvido pela consciência de minha subjetividade, até a angústia posso aparecer como objeto para o outro, mas não posso aparecer como objeto para mim mesmo. A segunda atitude possível é ilustrada pelo desejo sexual, mas para compreender esse desejo sexual devemos nos remeter ao ser-no-mundo e ao ser-para-outro. Desejo o outro enquanto ele e eu estamos em situação no mundo e à medida que ele é outro para mim e sou outro para ele; daí que não podemos estabelecer como objetivo último um ato em particular, pois meu desejo é desejo de um objeto transcendente, de uma forma em situação. Capto o corpoo do outro a partir de sua situação no mundo, e o corpo como puro objeto material não está em situação; assim, o desejo é uma forma que o desvelar do corpo do outro pode assumir. Porém, o desejo não é somente o desvelar do corpo do outro, o desejo é também a revelação do meu corpo; no desejo faço-me carne em presença do outro para apropriar-me da carne do outro, por isso, o desejo é uma tentativa de encarnação do corpo do outro. Como eu captava o corpo do outro em situação, a carne do outro não existia explicitamente para mim nem para ele mesmo, pois ele a transcendia em direção às suas possibilidades e ao objeto; é nesse sentido que Sartre diz que as carícias são apropriação do corpo do outro, pois é a carícia que, por meio do prazer, revela a carne do outro para mim e para ele. - 82 - PPG-Fil - UFSCar
O desejo se expressa pela carícia assim como o pensamento se expressa pela linguagem; Sartre explica que a consciência se faz desejo, e que o motivo desse desejo pode ser suscitado a partir do passado e que a consciência, voltando-se para esse passado, confere a ele seu peso e seu valor. Mas, esse desejo assim como todas as atitudes do para-si tem uma significação que o constitui e o transcende, então o desejo é uma modificação do para-si, nesse caso, o mundo chega ao ser pelo para-si através de um mundo do desejo: aqui o desejo não é uma relação com o mundo, pois o mundo aparece como pano de fundo para as relações com o outro; aqui o desejo é um modo primitivo das relações com o outro, que constitui o outro como carne desejável sobre o pano de fundo de um mundo de desejo. Mas, o prazer é a morte e o fracasso do desejo, pois o prazer é a satisfação do desejo, e também, seu fim. Sartre diz que o desejo está na origem de seu próprio fracasso, enquanto é desejo de apropriar-se da consciência encarnada. Assim, a reciprocidade de encarnação, que era o objetivo do desejo, rompe-se; sou novamente corpo diante de uma carne, e a própria compreensão de meu desejo me escapa; esta situação está na origem do sadismo. O ideal do sádico, para Sartre, consiste em alcançar o momentoo em que o outro se torna carne sem deixar de ser instrumento; é da liberdade do outro que o sádico quer se apropriar por meio da violência e da dor. Mais, seu objetivo só será alcançado com a livre e total adesão do outro. Por isso, o sadismo está condenado ao fracasso. Sartre diz que seu fracasso se dá quando experimenta a alienação absoluta de seu ser na liberdade do outro, ou seja, quando a vítima olha para ele. Revela-se que não pode agir sobre a liberdade do outro, porque é na e pela liberdade do outro que um mundo existe. O olhar do outro no mundo do sádico faz desmoronar o sentido e o objetivo do sadismo, e uma vez mais somos lançados de ser-olhador a ser-visto e não saímos desse círculo. Mas, se em nenhum destes casos consigo atingir a união desejada, o único resultado desses esforços é, explica o autor, um ódio intenso. Ódio que também está fadado ao fracasso, visto que, seu projeto inicial consiste em suprimir as outras consciências. Mesmo que ele pudesse suprimir o outro, no momento presente não poderia fazer com que o outro não houvesse sido, pois, quem foi para-outro uma vez está contaminado em seu ser pela vida toda, mesmo que o outro tenha sido suprimido. Ele não deixa de captar sua dimensão de ser-para-outro como uma possibilidade permanente de seu ser. Assim, a ira em seu próprio surgimento se transforma em - 83 - PPG-Fil - UFSCar
fracasso. O ódio não permite sair do círculo, ele representa a última tentativa, a tentativa do desespero. Depois destee fracasso, só resta ao para-si retornar ao círculo e deixar-se oscilar indefinidamente entre uma e outra das duas atitudes fundamentais 69, isto é, entre o desejo e o amor. Sartre escolhe essass atitudes para demonstrar o círculo das relações com o outro porque são atitudes originárias e por estarem integradas em todas as atitudes com relação aos outros. Elas envolvem em sua circularidade a totalidade das condutas com relação ao outro: o amor encontra seu fracasso em si mesmo e o desejo surge da morte do amor para desmoronar e ceder lugar ao amor todas as condutas com relação ao outro-objeto incluem em si uma referência implícita e velada a um outro-sujeito, e esta referência significa a morte do outro-objeto; daí surge uma nova atitude que visa se apoderar do outro-sujeito, e ela revela sua inconsistência e desmorona para dar lugar à conduta inversa. E então, somos lançados do outro-objeto ao outro-sujeito e vice-versa. Segundo Sartre essee curso nunca cessa e é nele, com suas bruscas inversões de direção, que constitui nossa relação com o outro; assim, qualquer que seja o momento em que somos consideradoss estamos em uma ou outra dessas atitudes. Insatisfeitos tanto com uma quanto com outra podemos nos manter mais ou menos tempo na atitude escolhida, conforme nossa má-fé ou as circunstâncias de nossa história. A atitude tomada nunca vai ser suficiente, sempre vai remeter à outra porque não podemos adotar uma atitude consistente em relação ao outro. Vamos sempre oscilar entree o ser-olhador e o ser-visto. Sempre estaremos em estado de instabilidade com relação ao outro. Perseguindo o ideal impossível da apreensão simultânea de sua liberdade e sua objetividade, jamais poderemos nos colocar concretamente em um plano de igualdade onde o reconhecimento da liberdade do outro levasse ao reconhecimento da nossa liberdade pelo outro. O outro é, por princípio, o inapreensível: ele foge de mim quando o busco e me possui quando fujo dele. O confronto eu-outro é retomado em Entre quatro paredes. Os personagens estão mortos; morte comoo a das pessoas que renegaram a própria liberdade. São liberdades que falharam por terem se entregado ao juízo, ao olhar dos outros; são mortos por já não terem possibilidades, condenados que são ao olhar do outro. E o olhar que destrói cada personagem, torna a existência do outro insuportável. Na peça, parte-se do pressuposto que se está morto, que a morte transforma a vida em destino, que os nossos atos ficam atrás de nós para que os outros deles decidam 69 SARTRE, J. P. L être et le néant. Paris:Gallimard, 1988, p. 463. - 84 - PPG-Fil - UFSCar
como bem entenderem. Mas a peça também se refere não à morte e ao julgamento dos atos irremediáveis, mas à vida e a cada ato que nela praticamos; porque um ato desprende-se realmente de nós, morre atrás de nós. A peça nos apresenta um universo onde é impossível se engajar ou dar sentido à vida. O verdadeiro inferno, segundo Sartre, não é um lugar de torturas, físicas ou morais, e sim a situação na qual o homem não é capaz de escolher sua liberdade e por isso fica solitário frente ao outro que não pode participar nem de seu engajamento nem de seu ato. O outro, nestee caso, tem uma dupla função: por um lado, é o objeto do desejo e a aspiração do sujeito, por outro lado, é aquele cujo olhar transforma o sujeito em objeto e o impede de atingir a comunhão que pode dar sentido à sua vida. Sartre mostra que o sentido da nossa existência depende de nós mesmos e da coragem que temos de nos liberar da pressão social, dos prejuízos, e dos outros. Esta situação pode não ser tão visível na peça se nossa atenção se voltar simplesmente aos três mortos que não têm mais nenhum meio de abandonar os outros e escolher a liberdade; todavia, ela será suficientemente visível se atentarmos que, em determinado momento da ação, a porta se abre dando a cada um a possibilidade de abandonar o inferno. Mas, nenhum deles sai. Estelle precisa de Garcin, que precisa de Inès que precisa de Estelle, e com isso eles nunca poderão sair daquela sala. Sem conseguir expiar suas faltas, eles descobrem o insuportável de sua imagem que os outros lhes devolvem. São três seres fracos, condenados a viver eternamente com os outros; sem engajamento, é o inferno que vai continuar indefinidamente. A intenção de Sartre não é negar a possibilidade de uma coexistência tranqüila entre os indivíduos. Segundo ele, se as relações com o outro são difíceis, então o outro só pode se tornar o inferno; ou seja, quando os indivíduos são fundados na mentira e na recusa de assumir suas escolhas, as relações com os outros se tornam necessariamente difíceis. Porque os outros são no fundo o que há de mais importante em nós, para nosso próprio conhecimento de nós. Sartre diz que quando pensamos em nós, quando tentamos nos conhecer, na realidade usamos o conhecimento que os outros têm de nós. Nós nos julgamos com os meios que os outros nos deram para nos julgar. Seja o que for que eu diga sobre mim, o julgamento do outro se manifesta; seja o que for que eu sinta em mim, o julgamento do outro se manifesta. O que Sartre quis dizer é que se minhas relações são ruins, eu me coloco na total dependência do outro e, de fato, estou no inferno. Para ele existe um grande número de pessoas no mundo que estão no inferno porque dependem muito do julgamento do outro. - 85 - PPG-Fil - UFSCar
Por outro lado, para Sartre a dificuldade das relações com o outro não atinge necessariamente a intensidade de um suplício, nem toma obrigatoriamente a forma de um inferno. O que ele quis mostrar é que muita gente está envolvida em hábitos e costumes, e se submetem a julgamentos com os quais sofrem, mas não procuram mudar. Para ele essas pessoas estão como mortas. Nesse sentido, elas não podem quebrar o quadro de suas inquietações, suas preocupações e seus costumes, e se tornam vítimas dos julgamentos que se fazz delas. A partir daí elas se tornam, por exemplo, covardes ou maldosas. Em Entre quatro paredes, Sartre quis mostrar pelo absurdo a importância da liberdade em nós, a importância de mudar os atos por outros atos. Qualquer que seja o inferno no qual vivemos, somos livres para quebrá-lo, e se não o fazemos ele permanece ali livremente. As pessoas se colocam livremente no inferno. Sartre também faz de Entre quatro paredes uma denúncia a toda ilusão de isolamento e irresponsabilidade: incita o homem a se inventar, pois o destino do homem é construído por ele mesmo, o homem é aquilo que ele faz. O que está na base da existência humana é a livre escolha que cada homem faz de si mesmo e de sua maneira de ser. - 86 - PPG-Fil - UFSCar