A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos do Arraial de Viamão ( ) Fontes primárias e perspectivas de pesquisa

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Cristiane Pinto Bahy* A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos do Arraial de Viamão (1780-1820) Fontes primárias e perspectivas de pesquisa Resumo Surgidas na Europa e trazidas ao Brasil Colônias por Portugal, as irmandades religiosas eram associações que possuíam como objetivo aumentar a devoção a seu santo padroeiro (orago) e prestar auxílio a seus irmãos nas cerimônias fúnebres e em casos de dificuldades. Este artigo tratará da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Viamão, fundada na segunda metade do século XVIII no Rio Grande do Sul, que possuía como irmãos escravos, forros e livres. Serão apresentadas as fontes primárias desta confraria assim como suas possibilidades de pesquisa. Palavras-chave: Escravidão; Irmandades Religiosas; História do Rio Grande do Sul. Abstract Born in Europe and brought by Portugal to Colonial Brazil, the religious brotherhoods were associations whose goals were to raise devotion to its godfather saint (santo padroeiro, or orago) and aid its brothers in funeral cerimonies and troubled times. This paper will focus on the Brotherhood of Our Lady of Rosary of the Blacks from Viamao, founded in the second half of the XVIII century in Rio Grande do Sul, and was composed both by slaves, freed and free men. There will be presented the primary sources of this brotherhood as well as possible researches related to it. Keywords: Slavery; Religious Brotherhoods; Rio Grande do Sul History. * Mestranda na área de Historia Social no Programa de Pós-Graduapao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (crisbahv@terra.com.br) 200

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos do Arraial de Viamão (1780-1820) Fontes primárias e perspectivas de pesquisa Cristiane Pinto Bahy Este artigo traz as primeiras impressões acerca da pesquisa em andamento que possui como objeto a confraria religiosa fundada por leigos "Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Viamão". Erigida por volta da segunda metade do século XVIII, pois seu compromisso data de 1756 e situada no Arraial de Viamão no atual estado do Rio Grande do Sul, a associação identificada como uma confraria de escravos, se insere no fenômeno das associações leigas trazidas ao Brasil Colônia por Portugal. Associações leigas de cunho católico, as irmandades religiosas possuíam como finalidade o culto a um santo católico, o aumento desta devoção e a proteção dos seus irmãos. Segundo Eduardo Hoornaert "o que caracteriza a confraria é a participação leiga no culto católico. Os leigos se responsabilizam e promovem a parte devocional(...)."' Dentro delas os irmãos se responsabilizavam pela suas devoções, mantendo sua associação em tomo de um santo devocional, também conhecido por orago, organizando para este uma vez por ano uma grande festa em sua homenagem, mostrando toda a sua devoção em procissões. As irmandades seguiam, apesar das diferenças entre as populações e as localidades, um padrão comum herdado das irmandades portuguesas. 2 Ao seguir este padrão todas as confrarias possuíam o chamado compromisso definido como uma "lei que estabelece os estatutos da organização, que deve ser conhecida e seguida por todos os membros que antes da admissão prestam juramento [...] Apesar de independentes umas das outras, essas agremiações têm base comum, um Compromisso lavrado em termos semelhantes, o que lhes dá certo caráter de organização coesa" 3. Este compromisso é escrito pelos irmãos de cada irmandade, e traz as bases da confraria, ou o que Russel-Wood chama de "os dois pilares" das irmandades 4. São eles: a propagação da doutrina e a filantropia social. Ou seja, a devoção ao orago por parte dos irmãos, a procura por aumentar o número de seus devotos, e a caridade para com os irmãos pertencentes à confraria. A estrutura interna destas associações consiste de cargos devocionais e administrativos. Os cargos executivos são os ocupados pela mesa administrativa, sendo estes o de juiz - indivíduo responsável em "manter a ordem" da irmandade - o de escrivão e o de tesoureiro, por exemplo. Estes cuidavam da direção da irmandade, sendo cargos eletivos. E importante destacar que os cargos de tesoureiro e escrivão, mesmo em confrarias somente de escravos, eram geralmente preenchidos por brancos, já que era exigido que aqueles que ocupassem estes cargos fossem alfabetizados. Os cargos devocionais eram encontrados nas confrarias de escravos, sendo estes o de "rei" e "rainha" e lideravam os chamados "reisados" ou "folias" - as festas propriamente ditas. Tanto os cargos devocionais, quanto os executivos são importantes pois através deles podemos saber quem ocupava estes lugares e assim perceber se haviam diferenciações entre os irmãos ou a existência de privilégios, por exemplo. Para que houvesse um controle sobre os gastos das confrarias - tanto por parte dos irmãos quanto por parte da Igreja Católica - estas deveriam registrar sua contabilidade. 5 Por este motivo as irmandades possuíam os chamados Livro de Receita e Despesa - onde eram anotados todos os ganhos e os gastos da irmandade - e o Livro de Despesa de Festas - que registrava somente gastos relacionados às festas do orago. As Irmandades Leigas Originadas na Europa Medieval, as irmandades leigas trouxeram seus princípios básicos para o Brasil Colonial, sendo estes os mesmos da Baixa Idade Média, momento de sua fundação. Típicas do mundo urbano, as irmandades religiosas podem ser encontradas do norte ao sul da Europa Ocidental, estando assim 201

Portugal e Espanha incluídos no fenômeno. 6 Não há consenso quanto ao motivo principal do surgimento destas associações, mas acredita-se que seu inicio se deva às associações chamadas "Misericórdias" que durante o Medievo foram responsáveis pelo cuidado com os doentes da peste. "As Misericórdias fundavam e mantinham hospitais, sendo, portanto, indispensáveis à população. A construção de hospitais sempre faz parte das tarefas de várias confrarias medievais mas esse era o intento principal das Misericórdias, que são de origem bastante remota". 7 Outro fator atribuído ao desenvolvimento das confrarias seriam as migrações em busca por melhores condições de vida a partir do século XI. As famílias que se mudavam possuíam a necessidade de se integrar socialmente e o faziam através das irmandades. Para Anderson Machado de Oliveira "as confrarias medievais definiam-se enquanto instituições de devoção e amor ao próximo. (...) Prestavam assistência a seus associados e até a outros membros da sociedade. Particularmente na morte, encarregavam-se dos enterros, das orações e das missas de sufrágio. Efetivamente, esta atuação acabava por integrar as confrarias no cotidiano." A partir do século XV surgiram em Portugal as irmandades de devotos negros que no Brasil vieram ater como oragos Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia, São Benedito e Santo Elesbão. Provavelmente as associações de negros surgiram em Portugal "de uma transformação gradativa, nascendo das irmandades de brancos (...) É provável que questões de auxilio mútuo e proteção aos seus interesses os tenham levado a se desligar dos brancos e a pedir graças para sua nova associação". 8 Ainda que estes fossem os principais motivos da criação das irmandades de negros não devemos desconsiderar a devoção ao santo católico. Longe de seu meio, em contato com uma nova cultura, os africanos faziam uma releitura de suas crenças assimilando padrões que consideravam interessantes da nova cultura o que dentro das confrarias produziria uma religiosidade nova, com aspectos tanto do "mundo africano" quanto do "mundo branco". As Irmandades Leigas no Brasil Colônia Ao longo do processo de colonização, Portugal trouxe para o Brasil as confrarias religiosas que já eram tradicionais na Península Ibérica. Tendo sido trazidas à Colônia pela Metrópole, as irmandades seguiam, apesar das diferenças entre as populações e as localidades, um padrão comum herdado das irmandades portuguesas. Partindo de "modelos portugueses, procuravam elas adaptar-se ás circunstâncias locais, sem perder, entretanto, as características de seus modelos de origem, que se encontram, sobretudo nas regras das Misericórdias e em particular de Lisboa".' No entanto, ao chegar ao Brasil as irmandades fixaram sua atenção em seus membros, não se ocupando das necessidades de indivíduos estranhos às confrarias, e sim desenvolvendo as esferas social e religiosa de seus associados 10 e cuidando do momento de sua morte. Ao seguir o padrão herdado das confrarias medievais, todas as associações possuíam o chamado compromisso, definido como uma "lei que estabelece os estatutos da organização, que deve ser conhecida e seguida por todos os membros que antes da admissão prestam juramento (...) Apesar de independentes umas das outras, essas agremiações têm base comum, um Compromisso lavrado em termos semelhantes, o que lhes dá certo caráter de organização coesa" 11. Este documento é escrito pelos irmãos de cada irmandade, e traz as bases da confraria, ou o que Russel- Wood chama de "os dois pilares" das irmandades 12. São eles: a propagação da doutrina e a filantropia social. Ou seja, a devoção ao orago por parte dos irmãos e a procura por aumentar o número de devotos deste orago, e a caridade para com os irmãos pertencentes à confraria. Dentro delas os leigos se responsabilizavam pela suas devoções, mantendo sua associação em torno de um santo devocional (orago), organizando para este uma vez por ano uma grande festa em sua homenagem, onde mostravam toda a sua devoção em procissões. As festas eram o momento mais importante das confrarias, era ali que os irmãos procuravam demonstrar a devoção por seu orago, na tentativa de se destacar frente às outras irmandades. Ao chegar ao Brasil Colonial as irmandades se espalharam rapidamente pelo território se integrando "com relativa facilidade à vida política, social e religiosa dos primeiros habitantes do Brasil. Através de suas atividade devocionais e assistenciais adquiriram um imenso prestígio, em meio à sociedade, até fins do século XIX". 13 Apesar de as confrarias terem sido erigidas e mantidas pelo esforço dos leigos a Igreja Católica procurava controlá-las na tentativa de cercear sua liberdade. "Os seus compromissos deveriam ser aprovados pela autoridade eclesiástica e civil. Durante grande parte do período colonial esses compromissos eram 202

enviados a Lisboa para receberem a aprovação da Mesa de Consciência e Ordens". 14 Segundo Julita Scarano as irmandades sempre procuraram escapar ao controle da Igreja e do Estado, porém "o Estado procurou sempre tê-las sob rígida vigilância. Controlava as anuidades cobradas, fiscalizava os seus bens e seus livros internos, restringia partes dos compromissos que não estivessem de acordo com suas determinações (...) além de empreender visitas a estes estabelecimentos".' 5 Este controle do Estado e da Igreja sobre as irmandades religiosas ainda necessita de estudos mais aprofundados pela historiografia, para que possamos saber quais os limites deste controle e quais as formas utilizadas pelas irmandades para fugir dele. Produção historiográfica sobre o tema A historiografia sobre Irmandades no Brasil possui dois importantes trabalhos publicados nas décadas de 70 e 80, ainda de consulta obrigatória a quem pesquisa este tema. São eles: Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII de Julita Scarano e Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas epolítica colonizadora em Minas Gerais de Caio César Boschi. Estas obras possuem como tema central a relação das Irmandades com o Estado e com a Igreja Católica, não deixando de lado a pesquisa sobre a composição e a organização das confrarias. Publicada na década de 70, a obra Devoção e Escravidão de Julita Scarano, estuda a confraria de escravos que tem como devoção Nossa Senhora do Rosário, observando suas bases religiosas, suas relações econômicas, o auxílio que a confraria prestava aos seus irmãos, os componentes da associação e a integração do negro na sociedade diamantina. Na década de 80, temos o trabalho de Caio César Boschi, Os Leigos e o Poder: Irmandades Leigas e Política colonizadora em Minas Gerais. Nela o autor, assim como Julita Scarano, faz uma análise das Irmandades no contexto das Minas do período colonial sendo esta análise mais ampla que a de Scarano. Boschi faz análises teóricas quanto à conceituação e a tipologia das confrarias leigas, assim como as relaciona com o Estado português e a Igreja Católica ao longo dos setecentos. O trabalho também nos traz análises acerca das formas e mecanismos de controle por parte do Estado sobre as confrarias leigas, não as dissociando de seu aspecto político. Diferentemente de Scarano, ao analisar o papel das confrarias na vida dos escravos no período colonial o autor, ainda que destaque os beneficios de pertencer a uma confraria para o homem de cor, coloca as associações como servindo apenas aos interesses dos senhores. Boschi parece procurar a formação de uma consciência de classe por parte dos escravos dentro das irmandades e termina colocando-as como um "(...)fenômeno de adesão e de incorporação dos padrões e da ideologia de um grupo social dominante por um grupo dominado (...) ao contrário dos quilombos, as irmandades acabaram se tornando uma forma de manifestação adesista, passiva e conformista das camadas inferiores, onde não se formou uma consciência de classe e, por conseguinte, onde inexistiu uma consciência política." 16 Além disto, Caio Boschi, não percebe os escravos como seres capazes de influenciar seu meio, e os coloca em um papel de meros receptadores de padrões ideológicos, incapazes de escolher entre os aspectos culturais que poderiam e os que seriam obrigados a aceitar. Nestes trabalhos, a religiosidade dos escravos foi percebida como uma acomodação do catolicismo branco pelos africanos, não levando em consideração a religiosidade trazida da Africa por estes indivíduos. As próprias confrarias eram compreendidas como instituições que por não se oporem ao regime escravista eram permitidas pelos senhores para que seus escravos se sentissem satisfeitos e trabalhassem melhor. 17 A partir da década de 90 as pesquisas sobre confrarias religiosas aumentam, trazendo obras que estudam as festas das irmandades leigas, analisando-as não somente como o momento de homenagem ao orago, mas também como espaços de sociabilidades ou de protesto político, por exemplo. Nos estudos sobre irmandades de escravos, são levadas em conta as experiências vividas pelos escravos dentro das Irmandades. As confrarias são vistas como espaços onde seus membros conheciam seus limites dentro da sociedade, mas que não deixavam de agir conquistando seus espaços e atuando dentro do possível. Uma obra deste período que se tornou referência aos novos estudos sobre as irmandades, é a tese de doutoramento de Mariza de Carvalho Soares publicada sob o título de Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. A autora estudou a Irmandade de escravos de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro do período colonial, centrando-se no grupo africano dirigente desta confraria - os Makis. A partir de uma fonte primária produzida pelos membros da confraria

- um manuscrito de um estatuto desta congregação que garantia a seus participantes "uma morte cristã, um sepultamento digno e missas póstumas pela salvação eterna de suas almas." 18 - a historiadora traça um perfil desta confraria e procura compreender a religiosidade e a identidade deste grupo levando em consideração as nações da procedência africana destes irmãos. Mariza Soares também coloca que no século XVIII, não havia uma mentalidade abolicionista como a existente no XIX, por este motivo o escravo deseja apenas a sua alforria. Quando não a consegue procura outra forma de escapar ao controle do senhor. Desta forma, as confrarias tornam-se "(...) uma das poucas vias sociais de acesso á experiência da liberdade [e] ao reconhecimento social(...)"' 9 Assim, a irmandade é a busca da individualidade do escravo, onde mesmo que este esteja preso ao seu senhor, ainda assim faz parte de uma associação de destaque, onde pode se relacionar com outros indivíduos que possuem as mesmas experiências e onde está protegido, não da escravidão, mas do total abandono, ao longo da vida e na hora da morte. Com esta mesma perspectiva temos a dissertação de mestrado Devoção e Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial de Anderson José Machado de Oliveira. Nela são analisadas três irmandades - A Imperial Irmandade de Santa Cruz dos Militares, a Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro e a Venerável Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia - durante o período de 1840 a 1889. O autor estuda a trajetória destas três confrarias, representantes de diferentes grupos sociais, uma a uma, e ao final as analisa e as compara. Oliveira se propõe também a recuperar a experiência cultural dos negros para demonstrar a complexidade religiosa e social da realidade que os envolvia a partir das confrarias, onde segundo o autor, os escravos não tinham total liberdade para agir, mas possuíam uma relativa autonomia frente à sociedade escravista. 20 Um importante momento para as confrarias são as festas dedicadas aos oragos. Este é o principal momento para aumentar a receita de uma confraria. E neste dia também que "são recolhidos vários tipos de contribuição: a taxa de inscrição, a contribuição anual e uma grande quantidade de contribuições suplementares." 21 Devido à importância deste momento muitos trabalhos atualmente têm privilegiado o estudo das festas dos oragos, como o artigo Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas Colonial 22 de Marcos Magalhães de Aguiar. Para o autor as festas "Estavam intimamente associadas com suas perspectivas [das irmandades] de sobrevivência econômica e conferiam-lhes elementos de distinção na vida associativa colonial." 23 Era nas festas que os irmãos procuravam demonstrar a devoção por seu orago, procurando destaque frente às outras confrarias. Apesar do caráter religioso das festas, devemos também levar em conta a relação destas com o recolhimento de esmolas e o pagamento dos anuais dos irmãos, dinheiro essencial para manter e fazer crescer a associação. As confrarias de escravos já foram percebidas pela historiografia como meios de acomodação dos escravos, onde estes seriam doutrinados pelo catolicismo e onde sua vontade pouco valeria. Opondo-se a este argumento, as irmandades foram colocadas como locais de resistência, nos quais não caberia uma convivência pacífica com os brancos da sociedade. Hoje, porém, o estudo destas associações, as entende tanto como locais de doutrinação por parte da Igreja Católica, como meios de resistência cotidiana, percebendoas como um todo, levando em consideração as percepções de todos os grupos nelas envolvidos. Para Mariza Soares as irmandades são tanto "o espaço possível para a doutrinação coletiva e o incentivo às obrigações sacramentais prescritas pelo Concilio de Trento". 24 como "(...) uma das poucas vias sociais de acesso à experiência da liberdade, ao reconhecimento social e à possibilidade de formas de autogestão, dentro do universo escravista". 15 Aparentemente, parece tratar-se de um paradoxo. No entanto, as confrarias devem ser estudadas levando-se em conta as expectativas de todos os grupos envolvidos nestas agremiações. Para os escravos, participar de uma irmandade leiga poderia ser um dos poucos espaços dentro do sistema escravista em que poderiam conviver com iguais fora do ambiente opressor da senzala. Podemos inferir que o motivo que levaria um escravo a ingressar em uma confraria leiga, como a Irmandade do Rosário de Viamão por sua vontade, estaria na busca de sua individualidade. Onde mesmo que este estivesse juridicamente preso ao seu senhor, faria parte de uma associação de destaque, na qual poderia se relacionar com outros indivíduos que possuiriam as mesmas experiências e onde estaria protegido. Ser irmão de uma confraria era a garantia de que o escravo seria enterrado de forma digna, e para aqueles que possuíam família, a irmandade permitiria que esta vantagem se estendesse também a sua mulher e seus filhos. 2( ' Para o senhor, manter seus escravos em uma irmandade também seria vantajoso. Ele não precisaria arcar com os inúmeros gastos na hora da morte de seu escravo. Para Julita Scarano "Ser membro de uma 204

confraria ou nela colocar um seu escravo era economicamente vantajoso. Mesmo que o total despendido [com o funeral] fosse maior, não seria pago todo de uma vez (...)"." À Igreja caberia aumentar seu número de fiéis, propagando sua fé e seus princípios, sendo a irmandade um meio cotidiano de estimular práticas e vivências da religião cristã. 2S No entanto, deve-se tomar cuidado para que a análise que leva em conta os aspectos acima expostos, não se torne simplista, colocando as confrarias apenas como espaços onde necessidades práticas de diferentes grupos seriam satisfeitas. Para Anderson de Oliveira "a devoção e a caridade foram princípios vivenciados e praticados historicamente pelos membros das irmandades". 29 Assim, a entrada de irmãos escravos, deve ser entendida como motivada pela convivência e auxílio dado por estas associações, mas também pela crença no orago que representava a confraria. Assim, a historiografia atual sobre as irmandades leigas, além do estudo de seu funcionamento interno, número de irmãos, sua condição social, a relação destas associações com o poder temporal e com a Igreja Católica, procura compreender outro aspecto importante desta vivência confraternal - as festas de seus oragos, a religiosidade envolvida nesta adoração, bem como as redes de sociabilidade que se formavam. A festa do orago: momento de sociabilização Atualmente a historiografia tem dado atenção ao tema das "festas" 30 : seus diversos aspectos sociais e lúdicos e os diversos grupos sociais envolvidos. O tema das festas foi primeiramente trabalhado pelos viajantes, literatos, juristas e memorialistas no fim do século XIX. Ainda que sem uma crítica fundamentada, estas obras demonstram uma primeira preocupação com as festas populares. A partir da década de 30 surge um segundo momento através da produção universitária que analisou as festas se utilizando das produções sociológica e antropológica européia. Os temas concentravam-se no impacto sobre as culturas tradicionais dos processos de urbanização acelerada, na mestiçagem ou no sincretismo religioso. 31 Apenas a partir da década de 70 é que as festas passaram a ser estudadas como um campo especifico sob diferentes aspectos teóricos. Hoje as festas são estudadas a partir da História Social, da Nova História Cultural assim como da sociologia, da antropologia, da literatura e até mesmo das artes plásticas e da música. Alguns estudos procuram analisar as festas das irmandades religiosas, outros o carnaval, por exemplo, estudando neles as relações entre os participantes, a criação de identidades, a inversão social ou o controle e a repressão. Outros trabalhos procuram nas festas seu caráter mais lúdico: as danças, as músicas, as brincadeiras. Apesar do crescimento na produção historiográfica há ainda dificuldades e desafios a serem vencidos, sendo as fontes primárias um deles. A investigação e a "reconstituição" de uma festa dependem muitas vezes de relatos de indivíduos que não participaram diretamente do evento - como, por exemplo, de relatos de viajantes europeus ou de processos eclesiásticos ou judiciais - que relatam suas impressões carregados de preconceitos tendo de ser a análise do historiador bastante criteriosa.. 32 Os relatos de viajantes para as festas de irmandades religiosas no Rio Grande do Sul são em pequeno número além de não trazerem muitos detalhes 33, por este motivo uma importante fonte para o estudo das festas das irmandades são os livros de Despesa das Festas e o Livro de Contas das confrarias. Para o caso da confraria do Rosário, estes livros 3-1 podem nos informar sobre quanto dinheiro era investido no evento, qual pároco rezava a missa do dia da festa do orago, se havia músicos e quanto dinheiro era arrecadado pela caixinha de esmolas no dia da festa, por exemplo. Estas informações nos permitem traçar um quadro da festa ocorrida nos dias 26 de dezembro de cada ano. O dia festivo iniciava com uma missa em nome do santo padroeiro e dos irmãos que haviam falecido, envolvendo música, cantores e enfeites dentro da Igreja. Neste dia ocorria a eleição do irmão juiz da confraria - principal cargo e individuo responsável por compor a nova mesa diretora. E nessas festas que os irmãos saem às ruas pedindo esmolas para a "caixinha" da irmandade. Possivelmente neste momento os "escravos-irmãos" teriam a oportunidade de fazer a coleta de doações, saindo um pouco do rígido controle de seus senhores, aproveitando para voltar a antigas tradições. 55 Mariza Soares destaca que "o que caracteriza a esmola das irmandades de africanos é o costume de levar suas cantigas, seus instrumentos e suas vestimentas para as ruas, para esse fim"."' Após a volta da imagem do orago ao seu altar, tinha início "a parte mais informal dos festejos". 37 Iniciavam as danças, a música e distribuição de comida, não ficando muito claro o limite entre o sagrado e o profano dentro das festas. A Igreja Católica procurava coibir os aspectos profanos das festas. Apesar de 205

as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia exigir que "não fossem feitos jogos profanos e farças, nem se coma [ou] durma" 38 foi a dança, a música e a comida que ganharam destaque ao final da procissão. Com o objetivo de unir os irmãos e a população, as irmandades distribuíam comida e bebida, pois além das "comilanças" embebedar-se também fazia parte dos festejos. "São as chamadas comilanças um dos pontos altos da festa e também dos controversos. As pessoas perambulam pelo espaço comendo, cantando, tocando instrumentos, numa mistura constante, sendo impossível distinguir entre o sagrado e o profano (...)" 39 É também após a missa o momento em que "a população escrava e/ou negra não perdia a oportunidade para mostrar suas músicas, danças e batuques". 40 Traziam muitos de seus costumes, chegando a instituir o "reisado" no qual elegiam um "rei" ou uma "rainha" negros que seriam os soberanos da festa. Sob o ponto de vista do colonizador as danças dos escravos traziam o profano à festa. No entanto suas danças eram vindas de seus rituais africanos, mostrando que o sagrado ou o profano também poderiam ser uma questão de ponto de vista. Desta forma o sagrado e o profano encontravam-se lado a lado sem uma nítida separação. Ao mesmo tempo em que se fazia uma procissão para o santo católico também se dançava e cantava músicas e batuques nada relacionados com o comportamento religioso exigido pela Igreja Católica. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e suas fontes primárias Os livros que trazem os registros sobre a Irmandade do Rosário de Viamão são o Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1756), o Livro de Contas (1757-1859), o Livro de Despesas de Festas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1755-1767) e o Livro de Entrada de Irmãos (1773-1816) que se encontram no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. O Compromisso da Irmandade do Rosário traz 30 capítulos normatizando a vida dos irmãos. Nos capítulos, consta como se daria a eleição para o cargo de juiz: que seria eleito uma vez por ano sempre no dia da festa do orago e que escolheria o resto da mesa administrativa. O compromisso também fala das obrigações que os irmãos teriam ao ingressarem na irmandade, qual o valor de entrada e anuais que os irmãos teriam que pagar para permanecerem na associação. A fonte ainda traz o cuidado com os irmãos e com sua família, pois "as viúvas dos Irmãos defuntos enquanto não tomarem outro estado, e seus filhos menores de 14 anos, gozarão os mesmos privilégios, que gozaram em vida seus maridos, e pais, sem para que isto sejam obrigados a concorrer com esmola alguma". 41 Através dos livros de Contas da Irmandade do Rosário e de Despesas de Festas, podemos perceber como era gasto o dinheiro arrecadado pela confraria como, por exemplo, quanto era gasto com missas e quanto era despendido com a compra de objetos para as festas. Assim é possível saber em que a irmandade mais investia, e traçar hipóteses da importância que as missas, as opas, a imagem possuíam para os irmãos. Do livro de contas, ainda podemos perceber como era recolhida a maior parte do dinheiro da Irmandade, se através do recolhimento de esmolas ou de doações de irmãos. O livro de contas também traz os nomes dos tesoureiros e dos escrivães, que por exigência do Compromisso deveriam ser "homens brancos (...) que a mesa eleger na Eleição [sic]". 42 A análise do livro de Entradas dos Irmãos permite traçar um perfil dos ingressos levantando-se o número de irmãos escravos, pardos ou forros. Este documento traz o nome dos novos irmãos, se pagaram ou não o valor da entrada e a anuidade. E no caso de irmão escravo podemos saber se ele pagou pela sua entrada ou se foi seu senhor. O livro de Entradas da Irmandade ainda permite uma análise seriada dos irmãos. Para o período que vai de 1780 a 1800 percebe-se que a entrada de irmãos livres e escravos dava-se no mesmo número. 43 Apenas o dado numérico não nos diz de que forma dava-se essa sociabilização, mas nos informa que a confraria abrigava tanto escravos quanto libertos e livres. A partir disto surgem algumas questões ainda em aberto que dizem respeito à convivência entre livres, libertos e escravos: Como esta seria? Como seria o tratamento entre os diferentes grupos dentro da irmandade? Ou, por que os indivíduos livres ingressariam em uma confraria de negros? 206

Conclusão Estando a pesquisa em andamento ainda não é possível trazer conclusões. No entanto a partir da leitura bibliográfica sobre o tema é possível traçar algumas hipóteses sobre o funcionamento da confraria. Da leitura dos trabalhos de Julita Scarano e Caio Boschi 44 tem-se a impressão de que uma confraria de escravos seria dominada pelos irmãos livres e brancos ficando aos escravos e libertos apenas o papel de meros espectadores das resoluções tomadas. No entanto, se levarmos em conta trabalhos mais recentes 45, as irmandades seriam compreendidas não como instituições que acomodariam os escravos, mas como ambientes nos quais seriam criados laços entre os escravos e libertos - e talvez entre estes e os brancos livres. Mariza Soares alerta para que a sociedade colonial deva ser percebida como um local onde "se de um lado são impostas aos pretos rígidas normas da sociedade estamental, de outro lhes é franqueado um infindável rol de atalhos por onde as pessoas têm acesso a distinções e dignidades, em diferentes esferas. A principal via de acesso a essas distinções é pertencer a uma irmandade". 46 Mesmo dentro de uma sociedade escravocrata, no seu cotidiano o escravo poderia encontrar formas de fazer valer suas vontades dentro de um ambiente como uma confraria religiosa. Ainda há muito a ser pesquisado sobre as irmandades religiosas no Rio Grande do Sul. Pensar como se dava a sociabilidade entre escravos, libertos e livres dentro de um grupo tido como uma confraria de "pretos" contribui para saber como se davam as relações sociais entre os escravos e seus senhores, os libertos e os escravos, ou os livres e libertos dentro do Brasil Colonial. Notas 1 HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Tomo II. São Paulo. Ed: Vozes. Pp. 234, 235. 2 "Partindo de modelos portugueses, procuravam elas [as irmandades] adaptar-se ás circunstâncias locais, sem perder, entretanto, as características de seus modelos de origem, que se encontram sobretudo nas regras das Misericórdias e em particular de Lisboa." SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura. 1975. p. 27 3 SCARANO, Op., Cit., p. 29 4 Russel-Wood apud SOARES, Marisa. Devotos da Cor. identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 166 5 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia - legislação que normatizava a vida religiosa na Colônia- cita a existência destes livros, apesar de não explicitar a obrigação de sua existência nas confrarias. Desta forma, podemos inferir que a existência destes livros era prática comum e aceita pelas irmandades. Segundo as "Constituições Primeiras..." "Mandamos aos oficiais novos, c velhos de cada Confraria (...) que dêem conta os oficiais velhos aos novos pelo livro da receita e despesa (...)".[grifo meu] VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo, Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853. p. 306 6 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, p.45. 7 SCARANO, Op. Cit:, P.27 8 Id ibid., p. 41. 9 SCARANO, Op. Cit., P. 27 111 Id; Ibid., p. 28 11 Id., Ibid., p.29 12 Russel-Wood apud SOARES, op. Cit., p. 166 13 OLIVEIRA, Anderson Machado de. Op.cit., p. 56. 14 Id., ibid., p. 56. 15 SCARANO, Op., cit., p. 23. 16 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades leigas e politica colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática. 1986. p. 156 17 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual dc Cultura. 1975. p. 114. 18 SOARES, Marisa. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 17. " SOARES, Mariza., Op. Cit., p.l 66 20 "É inegável que [as irmandades] eram instituições regulamentadas c permitidas pelo Estado c pela Igreja. No entanto, não levar em consideração a sua relativa margem de autonomia conquistada num processo cotidiano também seria empobrecedor da análise histórica". OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Op., cit., p.l78 21 SOARES, Mariza., Op. Cit., p. 171 22 Kste artigo cncontra-sc publicado no livro Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ, István c KANTOR, Íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001. 23 AGUIAR, Marcos Magalhães dc. Op. Cit.,p. 361 (In) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ. István e KANTOR, íris (orgs.) Vol. 1. São Paulo: Edusp, 2001. 207

24 SOARES, Mariza., Op. Cit., p. 166 25 Id, ibid, p. 166 26 SCARANO, Op. Cit. P. 54 27 Id., Ibid., P. 54 28 OLIVEIRA, Op. Cit p. 15 "OLIVEIRA, Op. Cit. P. 15 3(1 DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense. 1994; ABREU, Martha. O Império do Divino: Festas Religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). São Paulo: Fapesp, 1999; TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. Stão Paulo: Ed. 34, 2000; JANCSÓ, István e KANTOR, íris (orgs.) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. V. I e II. São Paulo: Edusp, 2001. 31 JANCSÓ, István; KANTOR, íris (orgs.) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Vol. I. pp. 5,6,7. 32 Mesmo que "esses narradores [das festas] provenham das elites, e sejam portadores de um instrumento de poder bastante exclusivo - a escrita - aquilo que eles viram nos ajudará (...) a perceber o que não quiseram registrar". DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, p. 17. 33 Ver SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). São Paulo: Edusp, 1974; ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834). Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. 34 Os livros de Despesa das Festas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1754-1768) c de Contas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1757-1859) encontram-se no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. p. 34. 35 SOARES, Mariza, Op., cit., p. 171. 36 Id., Ibid., P. 171 37 SOARES, Marisa. Op., cit., p.173 38 DEL PRIORE, Mary. Op., cit., p. 92 39 SOARES, Marisa. Op. Cit., PI73 40 ABREU, Martha. O Império do Divino: Festas Religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). São Paulo: Fapesp, 1999. 41 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre.[AHCPA], Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Viamão. F. 13-v. 42 AHCPA. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Viamão. F. 7. 43 Para o período estudado de 1780 a 1800 o percentual da entrada dos irmãos é de 46% de livres, 42% de escravos. Dados quantitativos a partir do Livro de Entrada dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Viamão. A fonte manuscrita encontra-se no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. 44 BOSCHI.Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e politica colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática. 1986.; SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura. 45 KARASH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras. 1987; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. 2 a ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3 a ed. São Paulo: Editora Brasiliense; SOARES, Marisa. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói.; AGUIAR, Marcos Magalhães de. Op. Cit.,p. 361 (In) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ, István e KANTOR, íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001; 46 SOARES, Mariza. Op.,cit p.165.