TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O BIODIREITO 1

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Transcrição:

TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O BIODIREITO 1 Luís Tiago Fernandes Kliemann 2 Claudimir Catiari 3 RESUMO: O presente artigo estudará, primeiramente, o conceito de Bioética, para, depois, relacioná-la com a questão do transplante de órgãos post mortem. Após, definir-se-á o Biodireito, e explicar-se-á como é regulado o tema proposto no atual ordenamento jurídico brasileiro de forma geral. Por fim, mostrar-se-á os crimes da legislação em vigor brasileira que possuem relação com o tema. PALAVRAS-CHAVE: Bioética Biodireito Transplante. ABSTRACT: The present article will study, firstly, the concept of Bioética, for, then, to relate her/it with the subject of the transplant of organs post mortem. After, Biodireito will be defined, and it will be explained as the theme is regulated proposed in the current ordenamento juridical Brazilian in a general way. Finally, it will be shown the crimes of the legislation in Brazilian vigor that you/they possess relationship with the theme. KEYWORD: Bioética - Biodireito - Transplant. Introdução O presente artigo tem como finalidade estudar a problemática do transplantes de órgãos post mortem no ordenamento jurídico brasileiro e relacionar a Bioética com a legislação em vigor. Desde já é bom frisar que este artigo não analisará o transplante de sangue, esperma e óvulo, nem o transplante inter vivos, tampouco o autotransplante e a clonagem de órgãos com fim terapêutico. Buscar-se-á explicar o 1 Artigo produzido como requisito para a elaboração de relatório final de pesquisa do PIBIC UNIR. 2 Discente do IV período do curso de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica UNIR. 3 Prof. MSc. Discente da Disciplina de Direito Constitucional e Chefe de Departamento do Curso de Ciências Jurídicas da Fundação Universidade federal de Rondônia UNIR. 1

fenômeno do transplante de um cadáver para um ser humano vivo, buscando-se entender se atende os princípios Bioéticos e como a legislação brasileira em vigor regula tal operação. Bioética Etimologicamente, a palavra bioética tem origem grega: bios (vida) + ética (conjunto de valores supremos que têm por objetivo a felicidade do homem). Segundo Oliveira 4, o uso da palavra bioética surgiu nos Estados Unidos por volta da década de 70, com o objetivo de designar a ética da vida num plano de pleno desenvolvimento das ciências médicas. Ferreira faz uma definição que precisa ser considerada: [Bioética é a] ética das biociências e biotecnologias que visa preservar a dignidade, os princípios e os valores morais das condutas humanas, meios e fins defensivos e protetivos de vida, em suas várias formas, notadamente, a vida humana e a do planeta 5. A função da ética é fornecer o necessário discernimento ao homem para que ele possa distinguir o justo do injusto, o certo do errado. Nesta definição, portanto, bioética seria a própria ética aplicada às mais variadas questões, principalmente as que envolvam a discussão acerca do valor da vida humana. Desta forma, constantemente é a bioética convocada para a discussão de assuntos polêmicos, como a eutanásia, o aborto e o transplante de órgãos post mortem e a sua mais nova tendência, que é tratar da clonagem de órgãos com fins terapêuticos. A questão do transplante post mortem de órgãos e tecidos Após estas breves iniciação sobre a Bioética, passar-se-á a discussão central do tema proposto. Transplante pode ser entendido como a remoção de órgãos e tecidos de um corpo humano para a implantação em outro, com a finalidade de sanar uma deficiência ou patologia. O transplante post mortem é aquele feito de um cadáver para um ser humano vivo. Este ato de transplante é regulamentado por leis, mas sua discussão supera o aspecto legal, atingindo 4 OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. p. 47. 5 FERREIRA, Jussara S. A. B. N. Bioética e Biodireito. p. 5. 2

também a Bioética, pois se busca saber em que condição pode-se fazê-lo sem que vilipendia o valor da dignidade da pessoa humana. O ser humano possui um valor intrínseco, que deve ser respeitado sob pena de se cometer atrocidades. A dignidade da pessoa humana não se restringe à pessoa humana com vida, mas também ao respeito por seu corpo após a morte. Nos transplantes post mortem, o respeito à aparência digna do corpo humano não é suficiente para o transplante ser considerado ético ou justo : o tratamento correto e especial a um corpo humano não basta em si mesmo. Deve-se também respeitar a vontade que o indivíduo possuía enquanto pessoa viva. Esse respeito pode ser classificado como o respeito à autonomia individual do homem. O homem como ser racional tem desejos e emoções decorrentes da sua autonomia de vontade e de pensamento. Por isso deve-se buscar e respeitar o desejo que possuía para o tratamento do seu corpo após a morte: se queria cremálo, deve-se fazê-lo; se queria doar seus órgãos a certa instituição, também, e assim por diante. Mas para esta vontade ser válida, deve ser, sobretudo, livre e esclarecida. Isto significa que não se pode forçar ou pressionar alguém para que assine um documento dispondo seu corpo após a morte para determinada instituição, pois a vontade deve ser livre e espontânea. Como ato voluntário, a disposição do próprio corpo para após a morte pode, sob o prisma da Bioética, ser realizada a qualquer tempo, sob pena de se ferir os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade. Da mesma forma que se pode produzir uma declaração deste tipo a qualquer tempo, pode-se revogá-la a qualquer tempo. Mas o princípio da autonomia da vontade também se aplica às pessoas que nunca fizeram uma declaração sobre a disposição de seu próprio corpo para após a morte não podem ter seus órgãos transplantados, pois não se sabe qual era a vontade da pessoa em vida, não se pode realizar qualquer tipo de remoção de seus órgãos. Desta forma, é impensável realizar-se um transplante ético de um corpo não identificado, por não se saber qual era a vontade do indivíduo em vida. Deve-se salientar que este respeito à vontade individual é um dos pontos cardeais da bioética, e é um corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio este que, quer a pessoa esteja viva, quer esteja morta, deve ser respeitado. Corpos não-identificados não podem ser jogados ao relento ou ter seus órgãos transplantados, pois a vida humana possui um valor intrínseco, e o simples fato de 3

pertencer à espécie humana garante-lhes, eticamente, um tratamento igual ao dos demais. Biodireito Biodireito pode ser definido como o conjunto de normas esparsas que têm por objeto regular as atividades e relações desenvolvidas pelas biociências e pelas biotecnologias 6. O Biodireito não é uma ciência independente, buscando inspiração principalmente na Bioética e no desenvolvimento da medicina, sendo a sua função de defender a integridade e o valor da vida humana frente aos rápidos avanços das ciências Biotecnológicas. Deve-se salientar que o Biodireito não está codificado, reunido, como o Código Civil e a Constituição Federal, isto é, não está reunido em uma única lei, mas divido em várias leis. Outra característica importante do Biodireito é a de que está sempre atrasado em relação aos avanços da Biociência e da Bioética, pois é evidente que o poder legislativo não consegue acompanhar a acelerada marcha da sociedade. Transplantes post mortem no atual ordenamento jurídico brasileiro A característica do Biodireito de se encontrar esparso é muito marcante no atual ordenamento jurídico brasileiro. Os transplantes no Brasil são regulamentados pela Lei n. 9.434 de 1997 (Lei dos Transplantes), com alteração da Lei n. 10.211/2001, e ainda encontram respaldo jurídico no Código Civil e no Código Penal. Começar-se-á o estudo do ordenamento jurídico através do texto original da Lei dos Transplantes que dizia, em seu art. 4º: Art. 4 Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem. O que tal disposição trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro foi a presunção de que todos os cidadãos brasileiros autorizam ser doadores, a qual é considerado algo como grave, tanto do ponto de vista jurídico, quanto do ponto de vista ético. Do ponto de vista jurídico, a doação presumida corresponde a uma 6 FERREIRA, Jussara S. A. B. N. Bioética e Biodireito. p. 7. 4

violação do regime democrático, dentro do qual a regra é de o cidadão dizer o que quer 7, e não o que não quer. Essa presunção poderia ser usada para abusos, como, por exemplo, assassinatos calculados com o fim de que o órgão da vítima seja transplantado depois de morta. Além disso, deve-se considerar que, no Brasil, o desconhecimento da lei é algo muito comum, acontecendo casos em que, por exemplo, um cidadão que deseja não se tornar doador seus órgãos após a morte mas, por desconhecimento da lei, não efetua uma declaração de vontade em contrário. Foi esta Lei 9.434/97 que criou no Brasil as declarações de vontade de doador de órgãos e tecidos e de não doador de órgãos e tecidos nas carteiras de identidade e de motorista. Mas deve-se salientar que aqueles que não possuíam tal carimbo eram automaticamente classificados como doadores presumidos, decorrente do art. 4 da Lei dos Transplantes. Do ponto de vista ético, a doação presumido vilipendiava o princípio da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana, pois, ao presumi-lo um indivíduo doador, retirava dele a autonomia de decidir sobre a disposição de seu corpo a qualquer tempo, sendo pressionado pelo Estado a fazê-lo. Além disso, caso revogasse sua disposição, seria automaticamente classificado como doador, criando absurdos jurídicos como o de alguém que, manifestando juridicamente sua vontade de ser doador, revoga-a pouco tempo depois, com o desejo de não o ser mais. Porém, para o Estado, não valeria mais essa intenção contida no ato da revogação, mas apenas o fato de que não há manifestação de vontade, classificando tal indivíduo que não quis mais ser doador como doador presumido, simplesmente pela ausência de declaração de vontade. A doutrina brasileira foi unânime ao classificar o texto como um absurdo jurídico à época, munindo-se destes argumentos éticos e jurídicos. Avançando na discussão da Lei dos Transplantes, é importante ressaltar que a remoção post mortem, nos casos em que o doador presumido seja absolutamente incapaz ou menor de idade, só poderá ser feita mediante autorização, por escrito, dos responsáveis, o que não nem sequer ameniza o absurdo jurídico da presunção de doação presumida. Importante destaque merece o art. 6º da referida Lei, pois preceitua que é vedada a remoção post mortem de 7 NEVES, Serrano. Lei dos Transplantes: duas abordagens diferentes. p. 1. 5

tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas, sendo um dispositivo que atende perfeitamente aos princípios Bioéticos, conforme discutido anteriormente. A pressão doutrinária sobre o monstruosidade jurídica da doação presumida fora constante, até que em 2 de março de 2001 foi promulgada a Lei. n. 10.211, modificadora da anterior Lei dos Transplantes, a Lei n. 9.434. A principal modificação que fez foi alterar o caput do art. 4º, retirando a presunção de doação de órgãos, como se pode notar através da análise do referido dispositivo: Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e parte do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte 8. Como se pode notar, a Lei 10.211 extinguiu a presunção de doação de órgãos no ordenamento jurídico brasileiro. Mas, se por um lado, a substituição pela decisão da família acalmou os ânimos da doutrina e dos juristas brasileiros, por outro não solucionou o problema ético. O absurdo jurídico, que antes era expresso, agora apenas se tornou mais sublime, camuflado, pois o que acontece ainda é a permissão de se remover, post mortem, tecidos ou órgãos sem a necessária autorização expressa do indivíduo em vida, vilipendiando, da mesma forma, os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade. Avulta de importância a contribuição que o Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002) deu sobre o tema em questão. Inspirado pelo humanismo do novel diploma, transmutado no paradigma da eticidade, preceitua o art. 14 e seu parágrafo único: Art. 14. É válida, com objetivo altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Pela leitura de comentadores, pode-se afirmar que o Código Civil, claramente, deixa exclusivamente ao indivíduo a decisão de dispor sobre possíveis transplantes post mortem, notadamente através da expressão próprio corpo. Note-se que este 8 Vale salientar que as declarações de vontade ( doador de órgãos e tecidos e não doador de órgãos e tecidos ) na carteira de identidade e na carteira nacional de habilitação perderam a validade em 22 de dezembro de 2000, segundo a mesma Lei 10.211. 6

dispositivo se adapta perfeitamente aos princípios da Bioética da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, principalmente porque autoriza não só a declaração de disposição de corpo para após a morte, como também a revogação de tal manifestação da vontade a qualquer tempo. Ademais, a autonomia da vontade do indivíduo ainda é mais resguardada porque o código limita o uso do corpo post mortem com objetivo científico ou altruístico, impedindo qualquer tipo de comercialização de atos declaratórios de vontade, ofertas econômicas ou chantagens de possíveis receptores. Porém, pode-se questionar se os textos do Código Civil e da Lei dos Transplantes são compatíveis entre si ou se um revogaria o outro 9. A resposta é que os textos são compatíveis, porque deve se ter a interpretação de que o Código Civil regula apenas os atos declaratórios de vontade, que devem ser respeitado, e a Lei dos Transplantes se aplica em casos em que não há tal ato, decidindo, neste caso, a família do morto. Deve-se ressaltar que somente o Código Civil possui um texto compatível com a ética, pois a conclusão Bioética sobre o tema é a de que sempre se deve respeitar a autonomia da vontade através do ato declaratório e, nos casos onde não houver, não se deve realizar o transplante. Reflexos no Direito Penal brasileiro Mudando da perspectiva geral para a penal, percebe-se que o Código Penal pode ser aplicado para punir possíveis ilegalidades, através da análise de seu art. 211: Art. 211. Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Deve-se salientar que tal crime é um crime contra o respeito aos mortos, segundo o próprio Código Penal. Tal tipificação criminal se encaixa perfeitamente ao ato de transplantes ilegais, pois a remoção de órgãos de um cadáver é uma subtração de uma parte do próprio cadáver. Desta maneira, alguém que o faz comete um crime descrito na lei, devendo ser punido da maneira descrita no Código. Mas a questão torna-se mais complexa com o advento da Lei dos Transplantes, 9 Segundo o princípio do direito de que lei posterior revoga lei anterior, se os dispositivos do Código Civil e da Lei dos Transplantes fossem realmente incompatíveis entre si, teria validade o Código Civil (2002), por ser posterior à Lei dos Transplantes (1997). 7

posterior ao Código Penal, quando preceitua, na Seção I (Dos Crimes) do Capítulo V (Das Sanções Penais e Administrativas): Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei: Pena reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 (cem) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Note-se como a pena prevista na Lei dos Transplantes pode ser duas vezes mais severa do que o Código Penal, apesar de, aparentemente, tipificar o mesmo crime o de remover órgãos ou tecidos para transplante de um cadáver de forma ilegal. Mas essa aparência é falsa. Uma análise mais profunda da Lei dos Transplantes revela que ela vai dispor sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante 10 (grifo acrescentado). Desta maneira, o art. 14 só poder ser aplicado quando o ato for praticado com fins de transplante, pois o próprio caput do artigo preceitua que ele deve ser aplicado somente quando o ato ocorrer em desacordo com as disposições desta Lei (grifo acrescentado). Portanto, percebe-se que não há conflito de normas, pois o art. 14 reduz sua aplicação à Lei dos Transplantes, enquanto o Código Penal apresenta uma aplicação geral. Por exemplo: supõe-se que Fulano tenha invadido um hospital e removido o coração de um paciente; somente a enunciação deste fato não é suficiente para se determinar qual norma aplicar. Deve-se ir mais além na descrição dos fatos: se Fulano praticou o crime por motivo de vingança, sofrerá a sanção do Código Penal, mas, se o praticou tendo em vista transplantar ilegalmente o coração da vítima, sofrerá a sanção da Lei dos Transplantes. Todavia, a Lei dos Transplantes não tipifica apenas a conduta de que remove os órgãos e tecidos com fim de transplante. Também tipifica o crime praticado pela implantação 11 deste com o conhecimento de sua origem ilegal: Art. 16. Realizar transplante ou enxerto utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei: Pena reclusão, de 1 (um) a 6 (seis) anos, e multa, de 150 (cento e cinqüenta) a 300 (trezentos) dias-multa. 10 BRASIL. Lei n. 9.434 04 fev. 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e parte do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. 11 Tal tipificação é coerente pois o ato de transplante comporta não só se consuma com a implantação do órgão ou tecido removido de outro corpo, conforme o conceito explicado no início deste trabalho. 8

Note-se que este crime é direcionado especialmente a médicos, por serem os únicos profissionais presumidamente capazes de realizar a implantação de órgão ou tecido em um corpo de maneira eficaz. Desta maneira, o art. 14 visa punir a remoção, enquanto o art. 16, a implantação; portanto, em conjunto, visam punir o transplante ilegal de órgãos ou tecidos de um cadáver a outra pessoa. Mas surge uma pergunta que supera a Lei e aspira aos preceitos da Bioética: o que fazer com um órgão ilegal que o médico não pode transplantar se este saber a procedência? Se a retirada vilipendiosa de órgãos ou tecidos de um cadáver com o fim de transplante já é algo em sim mesmo antiético, o é mais fazê-lo e desperdiçar tal órgão. Além de se estar desprezando a possível melhora da pessoa receptora, estaria se ofendendo ao próprio valor intrínseco da vida humana com tal desperdício, pois, para o receptor, não há a mínima diferença se um órgão fora retirado ilegalmente ou não, pois o que importa é que a sua eficácia. Deve-se ter bastante cautela em tal situação para não se cometer absurdos como o desperdício de órgãos humanos apenas porque são ilegais, pois certamente uma família respeitaria a implantação de órgão ilegal desde que o receptor estivesse agindo de boa-fé, isto é, se não tivesse participado do planejamento ou da consumação do crime. Conclusão A Bioética tornou-se indispensável ao ser humano nos dias atuais, devido aos constantes e acelerados avanços da Biociência. O Biodireito, por sua vez, sempre está atrasado em relação a esses avanços, mesmo os da Bioética. Os transplantes de órgãos e tecidos só são justos e dignos quando respeitada a vontade do indivíduo enquanto pessoa viva. De qualquer outra maneira, são injustos: a decisão não deve ser do Estado, como preceituava o texto original da Lei dos Transplantes, nem tampouco da família como se encontra o texto atual da referida Lei, mas apenas do próprio indivíduo. Por isso, precisa ser reformulado o art. 4º da Lei dos Transplantes para que possa se compatibilizar com os princípios Bioéticos da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, seguindo o exemplo do art. 14 do atual Código Civil. Por fim, na esfera penal, é necessário se refletir mais sobre a proibição da finalização de 9

transplantes cujos órgãos tenham origem ilegal, através da reformulação do art. 16 da Lei dos Transplantes, para que não se chegue ao absurdo de se desperdiçar órgãos enquanto a fila de espera de transplantes não pára de crescer. Referências bibliográficas BRASIL. Decreto-lei n. 2.848 07 dez. 1940. Código Penal. BRASIL. Lei n. 9.434 04 fev. 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. BRASIL. Lei n. 10.406 10 jan. 2002. Institui o Código Civil. COSTA, Tiago de Sampaio Viegas. A transgressão dos preceitos elencados na Lei nº 9.434/97 pode dar origem à configuração do delito previsto no art. 211 do Código Penal? Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 483, 2 nov. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5887>. Acesso em: 28 ago. 2006. FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Bioética e Biodireito. NEVES, Serrano. Lei dos Transplantes: duas abordagens diferentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 1, n. 20, out. 1997. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1845>. Acesso em: 28. ago. 2006. OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997. ROQUETTE, Marcelo. Da vulnerabilidade do corpo humano post mortem sob o prisma do Biodireito e da Bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1089, 25 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8559>. Acesso em: 28. ago 2006. 10