QUEM CORRE CANSA : METÁFORA E MESCLAGEM CONCEPTUAL PRESENTES EM MÚSICAS POPULARES Antonio Marcos Vieira de Oliveira (UERJ)

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QUEM CORRE CANSA : METÁFORA E MESCLAGEM CONCEPTUAL PRESENTES EM MÚSICAS POPULARES Antonio Marcos Vieira de Oliveira (UERJ) amvdeo@hotmail.com 1. Introdução A construção de sentido, ao ser entendida como um processo cognitivo de nível superior complexo e multidimensional, requer para si a noção de que os múltiplos processos que nela intervêm não atuam isoladamente, mas de forma coordenada. Neste processo, confluem processos linguísticos e processos do pensamento/conhecimento. Neste artigo, iremos verificar como as metáforas conceptuais fundamentam os ditos populares retomados em músicas do cancioneiro popular e se existe diferença na construção de sentidos entre o dito isolado e o dito retomado na música. Escolhemos o dito quem corre cansa e a música Quem corre cansa de Jacinto Limeira, ambos estruturados pela mesma metáfora conceptual a vida é um trajeto. Nossa investigação é fundamentada a partir da teoria da metáfora conceptual de Lakoff e Johnson (2002) e seus desdobramentos desenvolvidos por Kövecses (2002, 2005), bem como pela teoria da integração conceptual de Fauconnier e Turner (2002). Parte-se da hipótese de que metáforas conceptuais subjacentes aos ditos populares também estruturam a retomada desses ditos em letras de músicas do cancioneiro popular. Essa hipótese está fundamentada na assunção de que metáforas conceptuais estão presentes tanto nas conversas cotidianas quanto nas manifestações artísticas mais elaboradas. Começaremos este artigo com uma visão geral dos estudos sobre as teorias da metáfora e da mesclagem conceptual, apresentados nas duas seções iniciais. Na seção seguinte, apresentaremos os contrapontos entre a teoria da metáfora conceptual e a teoria da mesclagem conceptual e, na seção final, denominada O dito popular e a música, apresentaremos a a- nálise, observando se existe diferença de sentido no uso dito de forma i- solada e do dito retomado na música. Acreditamos que as diferenças podem ser explicadas pelo tipo de rede de integração conceptual ativado durante o processo de mesclagem. p. 2423 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

2. A teoria da metáfora conceptual A metáfora não é um fenômeno cognitivo de uso exclusivo da razão e também um processo de grande importância para a imaginação, porque auxilia o ser humano na sua capacidade de pensar, de elaborar, e de criar conceitos extremamente necessários à compreensão das experiências vividas. Para Lakoff (1993, p. 208), metáforas não são meras palavras... não é apenas uma questão de linguagem, mas do pensamento e raciocínio. A metáfora é caracterizada como um mapeamento, um conjunto de relações que acontece entre domínios conceptuais, denominados de domínio base e de domínio alvo. O mapeamento entre os domínios acontece de forma implícita e automática, assumindo funções relevantes no processo da linguagem. A metáfora conceptual o amor é uma viagem, por exemplo, caracteriza uma generalização polissêmica e uma generalização inferencial. Em nossa língua, várias expressões que pertencem à linguagem cotidiana são estruturadas pela conceptualização do amor como uma viagem: olha aonde nós chegamos, nossa relação é um beco sem saída, não sei a- onde esse amor vai chegar etc. Em conformidade com Lakoff (1980), podemos perceber que tais expressões não são utilizadas somente para falar sobre o amor, mas também para pensarmos sobre ele. 3. A mesclagem conceptual A ideia de integração conceptual tem a ver com o processo cognitivo que permite a interação entre domínios conceptuais que funcionam como input para um novo espaço a mescla. A interação entre os domínios de input é alcançada através de um mapeamento parcial que projeta seletivamente elementos dos inputs iniciais para um terceiro espaço, o espaço mescla, que é elaborado de forma dinâmica. Esse mapeamento explora estruturas esquemáticas dos inputs ou desenvolve estruturas esquemáticas compartilhadas. A estrutura compartilhada nos inputs iniciais fica contida em um quarto espaço chamado de espaço genérico. Esses quatro espaços são conectados através de conexões projetivas e constituem uma rede de integração conceitual. Ao estabelecermos um espaço mescla, estamos operando cogniti- Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2424

vamente dentro desse espaço mesclado, o que nos permite manipular vários eventos dentro de uma unidade integrada. A mescla fornece uma estrutura, um elemento novo, o inédito não disponível em nenhum dos outros espaços da rede de integração. Ao elemento peculiar, novo que e- merge do espaço mesclado, Fauconnier e Turner (2002) denominam de estrutura emergente, que recebe este nome por emergir do processo de mesclagem. A estrutura emergente pode resultar de três processos diferentes: (a) composição, (b) completamento e (c) elaboração. A composição é alcançada através da justaposição de elementos, disponibilizando relações a partir dos espaços de input, as quais não existem nos espaços de input iniciais. O segundo processo constitui-se pela forma mais básica de seleção, através da qual algumas partes do frame são selecionadas e, em seguida, outros elemento são complementados para a geração da mescla. Na elaboração, temos o processamento on-line que produz a estrutura única para a mescla, as mesclas são elaboradas à medida que são tratadas como simulações e processadas de forma imaginativa de acordo com alguns princípios. 3.1. Taxonomia das redes Fauconnier e Turner (2002) observaram um enorme número de possibilidades de projeções para uma rede de integração simples, dando origem a uma taxonomia de redes. Os tipos de redes que os autores apresentam são os seguintes: redes simples, redes reflexivas, redes de escopo único e redes de escopo duplo. As redes simples constam de duas entradas, uma que contém um frame com funções e outra que contém valores. A principal característica é que este tipo de rede dá origem a uma mescla, contendo uma estrutura que não está em nenhum dos inputs. As redes reflexivas possuem como característica definidora a relação em que todos os espaços compartilham um frame comum, incluindo o espaço-mescla. As redes de escopo único são aquelas em que os inputs têm frames diferentemente organizados, e um deles é projetado para a organização da mescla. Em outras palavras, existe assimetria, já que um dos in- p. 2425 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

puts é que fornece o frame organizado. As redes de escopo duplo possuem inputs que são organizados por diferentes frames, mas alguma tipologia é projetada de ambos os frames para organizar o frame da mescla. Neste tipo de rede, o espaço mesclado desenvolve sua estrutura emergente e acaba com um frame específico mais rico. 3.2. Relações vitais De acordo com Fauconnier e Turner (2002), a compreensão alcançada por meio da mesclagem de relações conceptuais é denominada de relações vitais. Em outras palavras, relação vital é a união entre elementos ou propriedades de contrapartes. Os autores propõem um pequeno conjunto das relações vitais, que se repetem com frequência em processos de mesclagem e apresentam uma taxonomia de relações vitais que são as seguintes: tempo, espaço, representação, mudança, papel-valor, analogia, desanalogia, parte-todo, causa e efeito. 3.3. As mesclas múltiplas Como dito anteriormente, uma rede de integração conceptual envolve sempre, pelo menos, quatro espaços: dois espaços de entrada, um espaço genérico e um espaço de mescla, mas existem também as mesclas múltiplas, onde várias entradas são projetadas em paralelo, ou os espaços são projetados sucessivamente em mesclas intermediárias, que servem como espaços para outras mesclas. 4. Contrapontos entre a teoria da metáfora conceptual e a teoria da mesclagem conceptual Nas duas seções anteriores, observamos os elementos envolvidos nas duas teorias, na presente seção apresentaremos os contrastes que as envolvem. No escopo teórico da linguística cognitiva, a metáfora é entendida como uma relação sistemática que existe entre dois domínios de conhecimento. Alguns elementos do domínio alvo são utilizados pela lingua- Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2426

gem para conceituar de forma relevante alguns pontos do domínio fonte. Em outras palavras, os elementos existentes nos dois domínios de conhecimento se alinham um ao outro. Na teoria da mesclagem conceptual, ao contrário da teoria da metáfora conceptual, a base organizacional cognitiva não é produzida nos domínios, mas no espaço mental (FAUCONNIER, 1994) e envolve normalmente quatro espaços que incluem dois espaços input, um espaço genérico que representa a estrutura conceitual compartilhada pelos dois inputs e o espaço mescla, onde é realizada a integração das partes apresentados nos inputs. Em suma, no modelo bidimensional da metáfora conceptual como proposto por Lakoff e Johnson (1980), a projeção, ou mapeamento, segue do domínio-fonte para o domínio-alvo, ou seja, é unidirecional. Na proposta de múltiplos espaços presentes na teoria da mesclagem conceptual proposta por Fauconnier e Turner (1985), as projeções são multidirecionais, de um espaço de input para outro ou de ambos para o espaço de mescla e nem sempre as inferências são geradas da fonte para o alvo, sendo possível que haja várias projeções de ida e volta entre espaços para a derivação de inferências. 5. O dito popular e a música Inicialmente, esboçaremos sobre as construções condicionais proverbiais, elementos que dão origem a este estudo, nas próximas subseções exploraremos a análise do dito popular Quem corre cansa de forma isolada e depois guiaremos nossa atenção para a análise do mesmo dito retomado na música Quem corre cansa de Jacinto Limeira. Acreditamos que as diferenças de sentido encontradas no dito trasposto para a música encontram justificativa no tipo de rede de integração. Nossa língua possui um grande repertório de construções. Dentre essas, encontra-se a construção proverbial. Os ditos populares, como parte da memória coletiva, são construções proverbiais situadas no topo da escala de idiomaticidade. Há várias construções proverbiais, dentre essa variedade, existe o predomínio da construção condicional proverbial. Como condicional, a construção universal se estrutura através de orações casadas. A primeira oração expressa uma condição para o resultado expresso na segunda, há entre elas uma clara relação de implicação que define a causa e o efeito. p. 2427 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

O que podemos apresentar como forma de ilustração com o dito popular quem semeia vento, colhe tempestade. De acordo com Ferrari (2001), a utilização de condicionais requer que os eventos descritos estejam relacionados. A autora assinala que o primeiro evento é uma condição suficiente para a ocorrência do segundo evento. 5.1. Quem corre cansa: a projeção metafórica presente no dito isolado A projeção metafórica no dito isolado emerge do esquema imagético de trajeto. Fazemos uma projeção entre a atividade (deslocamento de um trajeto) e a experiência (posição adotada diante da vida). O indivíduo pode deslocar-se de forma normal ou acelerada, podendo agir ou não precipitadamente (correr) e não ser bem sucedido e assim tornar-se frustrado (cansar). A rede de integração para a conceptualização do dito isolado apresenta a seguinte configuração: Espaço-input (1) composto de elementos relativos ao frame de trajeto, no qual temos um individuo que tem a possibilidade de correr e ficar cansado em um trajeto. Espaço-input (2) composto de elementos relativos ao frame de vida, no qual temos um indivíduo que pode tomar decisões em sua existência. Espaço genérico configurado com a compressão de vida em termos de trajeto e nos remete a metáfora conceptual VIDA É UM TRA- JETO. Espaço mescla resultado da projeção das contrapartes dos dois inputs interconectados que nos leva ao dito popular Quem corre cansa. Temos aqui uma compressão por identidade, haja vista que a conexão dos indivíduos só é determinada na mescla, há também uma compressão por causa e efeito, pois o cansaço poderá ocorrer como resultado do ato de correr. O diagrama da rede de integração, que envolve a conceptualização do dito isolado, ficaria da seguinte forma: Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2428

Metáfora Conceptual A VIDA É UM TRAJETO.Indivíduo.Trajeto.Corrida.Cansaço.Indivíduo.Existência.Decisão com reflexão ou preciptada.frustração Quem corre cansa Temos aqui uma rede de escopo duplo, pois os espaços de inputs são organizados por diferentes frames e a topologia é projetada de ambos os frames para a estrutura de organização do espaço mesclado. Em outras palavras, as estruturas dos espaços de input contribuem para a formação do espaço mesclado. 5.2. Quem corre cansa: o dito retomado na letra da música A construção de sentidos de um texto resulta da mescla de elementos dos espaços de input, o que é interpretado pelo leitor é recuperado em elementos que já existem em sua memória de trabalho. O leitor circula pelo texto e pelas pistas que identifica no texto, esse processo não acontece de forma linear ou sequencial, a construção de sentido se movimenta em várias direções, fazendo o leitor buscar informações textuais e extratextuais. Assim, a interpretação de uma música pode possibilitar algumas leituras. De acordo com exposto anteriormente neste artigo, a integração conceitual envolve sempre, pelo menos, quatro espaços: dois espaços de entrada, um espaço genérico e um espaço mescla, mas existem também p. 2429 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

as mesclas múltiplas que podem ser configuradas duas maneiras: (i) várias entradas são projetados em paralelo, (ii) os espaços são projetados sucessivamente em mesclas intermediárias, que servem de espaços para outras mesclas. A construção de sentidos da música escolhida como corpus é alcançada através de uma rede múltipla de integração, onde vários espaços mesclas funcionam como espaços de entrada para novas mesclas. Apresentaremos, neste momento, a letra da música que será analisada. Quem Corre Cansa Quem corre cansa, devagar também se alcança Atrás de uma bola corre sempre uma criança Meu caro amigo se você é motorista Siga na pista com cuidado e com critério Velocidade nunca trás bom resultado Antes chegar tarde em casa do que cedo ao cemitério Repare os freios muito antes da partida E no volante não se deve conversar Marcha continua é sinal que tem lombada Não ultrapasse que o perigo vem de lá Vem de lá, vem de lá, vem de lá Não ultrapasse que o perigo vem de lá Jacinto Limeira - 1975 O autor inicia a letra da música expondo o dito popular quem corre cansa, mas o apresenta com um desdobramento, pois segundo ele, devagar também se alcança. A rede que configura a música apresenta logo em seu início um elemento contrafactual, pois no trecho em que é apresentada a frase meu caro amigo, se você é motorista é criada a possibilidade de o indivíduo ter uma profissão que pode ser motorista ou não. Da junção do espaço input individuo e do espaço input profissão, teremos os espaços mesclados motorista e não motorista. Entendendo que a construção de espaços mentais discursivos a- través de formas linguísticas se dá para autorizar e garantir a coerência do discurso, vários novos espaços serão abertos para dar conta da construção de sentido na letra da música. Tendo a possibilidade de o indivíduo ser motorista, abrem-se dois novos espaços, em um espaço, teremos um indivíduo que não toma decisões com cautela e, em outro espaço, teremos um indivíduo que toma decisões com cautela. Ao integrarmos o espaço motorista com o espaço indivíduo que não toma decisões com cautela, teremos o espaço mescla de motorista que corre em uma trajetória, o esquema imagético Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2430

trajetória é acionado pelo frame de motorista. Ao integrarmos o espaço motorista com o espaço indivíduo que toma decisões com cautela, emerge o espaço mesclado motorista cauteloso que não corre durante seu trajeto. Neste momento, para dar conta da construção de sentidos na música, dois novos espaços são abertos, um espaço de morte causa vazia (tautologia causal) e outro espaço de lar/família. Os novos espaços serão integrados aos espaços resultantes das mesclas anteriores motorista que corre em uma trajetória e motorista cauteloso que não corre durante seu trajeto. Ao integrarmos o espaço morte causa vazia com o espaço motorista que corre em uma trajetória, teremos como mescla o espaço motorista morto, porque correu em uma trajetória e ao integrarmos o espaço lar/família com o espaço motorista cauteloso que não corre durante seu trajeto, teremos como espaço mesclado motorista que chega tarde a sua casa, porque não correu durante seu trajeto. A integração agora é feita entre os dois últimos espaços mesclados, o espaço mesclado motorista morto, porque correu em uma trajetória e o espaço mesclado motorista que chega tarde a sua casa, porque não correu durante seu trajeto, onde teremos como mescla o dito popular quem corre cansa, mas desdobrado como apresentado no início da letra da música, quem corre cansa, devagar também se alcança. O diagrama de representação da conceptualização do dito retomado na música será apresentado no gráfico seguinte. De acordo com Fauconnier e Turner (2002), a compreensão alcançada por meio da mesclagem de relações conceptuais é denominada de relações vitais. Na letra da música analisada, temos as seguintes relações vitais: (a) relação vital de mudança, pois o indivíduo transforma-se em motorista e motorista transforma-se em motorista cauteloso ou não; (b) compressão por identidade, pois o indivíduo é idêntico em todos os inputs, apesar de ser motorista ou não e cauteloso ou não. A conexão do individuo com motorista não se deve a uma semelhança objetiva de traços partilhados, é estipulada somente na mescla; (c) Compressão por causa e efeito; (d) compressão papel e valor, dado o papel de motorista, o indivíduo que corre será um valor para motorista em motorista que não tem cautela e corre em um trajeto e (e) analogia e desanalogia com base na compressão papel-valor. p. 2431 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

Indivíduo Profissão Não Motorista Motorista Indivíduo que não toma decisões com cautela Indivíduo que toma decisões com cautela Morte Causa Vazia Motorista que corre em uma trajetória Motorista cauteloso que não corre durante seu trajeto Lar/Família Motorista Morto, porque correu em uma trajetória Motorista que chega tarde a sua casa, porque não correu durante o trajeto Quem corre cansa, devagar também se alcança As projeções propostas produziram novos sentidos que só poderiam existir no espaço mesclado, visto que não estavam disponíveis em nenhum dos inputs isolados, sejam inputs iniciais ou espaços mesclas que serviram de inputs para novos espaços mesclas. Assim, podemos afirmar que a complementação do sentido só ocorreu no espaço mesclado final. 6. Considerações finais Ao analisarmos a letra da música Quem corre cansa (1975) de Jacinto Limeira com ferramentas disponíveis nas teorias da metáfora e da integração conceptual, confirmamos a hipótese inicial de que metáforas conceptuais subjacentes aos ditos populares também estruturam a retomada desses ditos em letras de músicas do cancioneiro popular. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2432

A metáfora conceptual a vida é um trajeto que estrutura o dito popular isolado, também estrutura o dito retomado na letra da música, mas com uma extensão da metáfora conceptual, onde teremos a metáfora a vida é um trajeto que deve ser feito com cautela. Confirmamos também a segunda hipótese, segundo a qual as diferenças de sentido observadas nos ditos transpostos para letras de músicas poderiam ser explicadas pelo tipo de rede de integração conceptual ativada durante o processo de mesclagem. No dito popular isolado, temos uma rede simples de integração e no dito retomado na música, temos uma rede complexa de integração com espaços de input iniciais que geraram espaços mesclados que serviram como espaço para novos espaços mescla até a mescla final. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FAUCONNIER, Gilles. Mental spaces. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. & TURNER, Mark. The way we think: conceptual blending and the mind s hidden complexities. New York: Basis Books, 2002.. Mappings in thought and language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. FERRARI, Lilian Vieira. Postura epistêmica, ponto de vista e mesclagem em construções condicionais na interação conversacional. Veredas. Juiz de Fora: EDUFJF, 1999, v. 3, n. 1, p. 115-128. KÖVECSES, Z. Metaphor in culture: universality and variation. Nova York: Cambridge University Press, 2005. LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: Chicago University Press, 1980. ;. Metáforas da vida cotidiana. Tradução de M. S. Zanotto e V. Maluf. São Paulo: EDUC, 2002. ; TURNER, M. More than cool reason: field guide to poetic metaphor. Chicago: University of Chicago Press, 1989. p. 2433 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011