Eficácia de normas inconstitucionais: considerações sobre artigo 27 da Lei nº 9.866 de 1999 Resumo Leonardo Goulart Pimenta 6 Este artigo trata de demonstrar a possibilidade estabelecida no artigo 27 da Lei nº9866 de 1999 de uma norma declarada inconstitucional ainda produzir efeitos em função da autonomia do fato jurídico. A partir da diferenciação entre os âmbitos analíticos da norma jurídica e do fato jurídico, torna-se possível identificar a possibilidade teóriconormativa da norma inválida ainda apresentar eficácia jurídica. Palavras-chave: Inconstitucionalidade; Norma jurídica; Validade; Eficácia; Funcionário de fato. Introdução Uma norma inconstitucional pode produzir efeitos? A constitucionalidade de uma norma é condição sine qua non para sua eficácia? O ordenamento jurídico pátrio admite efeitos de uma norma inconstitucional? Para responder as questões apresentadas, esse artigo trata da possibilidade de haver efeitos jurídicos, ou, de um ponto de vista da teoria do fato jurídico, eficácia jurídica, de uma norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o que significa afirmar, em termos de uma teoria da norma, de uma norma inválida. Tal possibilidade, além de previsível de um ponto de vista teórico, é contemplada pela legislação pátria no artigo 27 da Lei n 9.868 de 1999. Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Para entender essa possibilidade teórica-normativa, deve-se necessariamente partir do pressuposto de que a existência de um fato jurídico não depende da validade da norma. No plano normativo, a validade e a eficácia de uma norma estão relacionados apenas de forma deôntica, com efeito, a existência ou a mera manutenção da existência de um fato jurídico não depende da constitucionalidade da norma que lhe deu causa a partir de sua incidência. Observe-se, portanto, que a exegese do citado artigo 27 apela para a diferenciação entre uma teoria da norma e uma teoria do fato jurídico, mais especificamente, para relação entre os âmbitos analíticos da norma e do fato jurídico. 6 Mestre e Doutor em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Filosofia do Direito, Direito Romano e História do Direito da Puc/Minas e da Newton Paiva. Direito Izabela Hendrix Belo Horizonte vol. 7, nº 7, novembro de 2011 59
Âmbitos analíticos da norma jurídica constitucionalidade como momento da validade Para contextualização dessa discussão, deve-se diferenciar quatro âmbitos analíticos da norma jurídica, quais sejam: existência; vigência, validade e eficácia. Outros âmbitos podem parametrizar a analítica normativa (justiça, legitimidade, codificação, efetividade), mas não interessam diretamente essa discussão. Sem buscar ampliar a discussão para pressupostos sociológicos, especialmente para o realismo ou pluralismo jurídicos, uma norma é existente quando é publicada ou promulgada. A partir de sua publicação ou promulgação a norma tem sua existência fática, empiricamente demonstrável. Existe a norma jurídica que está posta no mundo, independente de ser vigente, válida ou eficaz. No ordenamento jurídico brasileiro, a técnica legislativa adotou duas espécies de atos que definem o termo inicial da existência das normas: (a ) a promulgação e (a ) a publicação. (a ) O ato de promulgar constitui a declaração formal pela autoridade competente da existência do ato legislativo. Nem todos os atos estão sujeitos a promulgação. Na atualidade, apenas a Constituição, as emendas constitucionais e as leis complementares, ordinárias e delegadas são objeto de promulgação. Promulgado a ato legislativo, começa ele a existir, mesmo que só venha a ser publicado posteriormente. (a ) As demais espécies normativas, tais como medidas provisórias, resoluções, decretos e outros atos infralegais, não estão sujeitas a promulgação. Por isso, começam a existir a partir de sua publicação. Os tratados internacionais passam a integrar o ordenamento jurídico nacional (=existir como ato normativo) após a publicação de sua ratificação pela autoridade (MELLO, 2008, p. 16-17). A vigência, atributo apenas de normas existentes, trata da possibilidade de uma norma incidir, de ter eficácia jurídica, de criar fatos jurídicos. A vigência, que tem por pressuposto a publicação regular da norma jurídica, constitui dado que lhe atribui a força de incidência; a norma jurídica só pode incidir se vigente (MELLO, 2008, p. 17). A vigência caracteriza-se pela possibilidade de incidir a norma. A validade refere-se à situação da norma ter obedecido a todos os padrões formais e materiais de imposição normativa previstas no ordenamento. Em termos constitucionais, uma norma é válida quando obedece aos padrões normativos formais de materiais determinados na Constituição. Uma norma constitucional é uma norma válida, ao passo que uma inconstitucional é um exemplo de uma norma inválida. Eficaz é uma norma que incide sobre um suporte fático concreto, gerando um fato jurídico. É o que Marcos Bernardes de Mello e Francisco Cavalcante Pontes de Miranda chamam de eficácia normativa ou eficácia legal. Não havendo a realização dos fatos descritos na hipótese normativa, a norma não adquire eficácia, pois não incide. Observe-se que a noção de eficácia para compreensão do artigo 27 da Lei nº 9868 nada se relaciona à noção de eficácia fática de Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Norberto Bobbio ou de efetividade de Marcos Bernardes de Mello. Eficácia da norma, para efeitos e compreensão desse artigo, nada se adéqua à ideia de uma observação geral e empírica do comportamento dos destinatários da norma diante do comando normativo. É preciso observar ainda que a eficácia que trata o artigo é a eficácia da sentença do Supremo Tribunal Federal, e não da norma declarada inconstitucional. A sentença, como tipo de norma jurídica, também apresenta uma eficácia, mas a eficácia Direito Izabela Hendrix Belo Horizonte vol. 7, nº 7, novembro de 2011 60
que se refere esse artigo é a da norma declarada inconstitucional pela sentença do Supremo Tribunal Federal. Relações entre os âmbitos da norma jurídica e o fato jurídico Visto sumariamente cada um dos conceitos normativos da norma, torna-se possível estabelecer relações entre os conceitos. Primeiramente, para a norma ser vigente precisa necessariamente ser existente. A vigência é um atributo tão somente das normas existentes só é vigente uma norma existente. Em contrapartida, uma norma existente não é necessariamente vigente tendo em vista a possibilidade da vacatio legis prevista legislativamente no artigo primeiro Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro; momento em que uma norma tem existência mas não tem vigência. Art. 1 - Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada. Ainda, a Lei Complementar n.º 95/98, com modificações posteriores, disciplina o tema desta forma: Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão. 1º A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral. 2º As leis que estabeleçam período de vacânc ia deverão utilizar a cláusula esta lei entra em vigor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial. Enquanto dura a vacatio legis, o que ocorre quando a norma é promulgada ou publicada para entrar em vigor em certo dia no futuro, não imediatamente, ela existe, mas a falta de vigência a impede de incidir e criar fatos jurídicos (MELLO, 2008, p. 17). Para norma ser válida, ou seja, constitucional, precisa apenas ser existente, não carecendo de vigência. Vide assim o fato de que durante o prazo de vacância a norma poder ser valorada como válida ou inválida, ou seja, constitucional ou inconstitucional. Lógica e faticamente, há a possibilidade de se valorar a constitucionalidade de qualquer norma ou ato normativo que simplesmente exista, mesmo que ausente um de seus elementos acidentais (vigência, eficácia, etc.). Com efeito, em hipótese já ventilada por Alexandre Sturion de Paula, a ação direta de inconstitucionalidade ou constitucionalidade pode ser manejada sobre norma no período de vacância, situação em que a norma tem existência, mas não tem vigência. Em nível de controle concentrado de constitucionalidade, os Tribunais podem conhecer da constitucionalidade de uma norma sem que a mesma tenha mesmo alcançado a condição de vigente. Se o judiciário não admite tal situação, certamente apoia-se em argumentos de ordem material ou política, e não em argumentos de uma teoria lógiconormativa. Em síntese, uma norma pode ser válida sem ser vigente, bastando para aferição de sua validade a sua existência. No entanto, mais importante que observar que a validade da norma não depende de sua vigência, é constatar que a eficácia da norma não depende de sua constitucionalidade, i.e., para a norma ser eficaz ela não precisa ser válida. Como bem Direito Izabela Hendrix Belo Horizonte vol. 7, nº 7, novembro de 2011 61
apontou Marcos Bernardes de Mello, a condição para que a norma incida é a vigência. A partir da vigência da norma e da formação de um suporte fático concreto (realização empírica do fato descrito abstratamente na hipótese de incidência), a norma poder criar fato jurídico, e, portanto, ser eficaz. O que, dessarte, distingue a norma simplesmente existente da norma jurídica vigente é, exatamente, a possibilidade de ser eficaz, quer dizer, a possibilidade de incidir sobre os pressupostos fácticos quando concretizados, subordinando-os as sentido que lhes impõe. Daí se conclui que é a eficácia o que caracteriza a vigência. Não é a eficácia constatada, mas apenas, a possibilidade de eficácia, quando materializados os dados do suporte fáctico, porque a eficácia (=incidência) constada tem como pressuposto a concreção do suporte suficiente, sendo que certo é que é possível não ocorra tal concreção. Além disso, a incidência, quando se dá, cria uma situação nova na existência da norma jurídica, diferente da pura vigência, porque é plus em relação a ela. Por isso, basta que a norma jurídica esteja incidir sobre o seu suporte fáctico, se quando materializar -se para que possamos considerá-la vigente. Se, porém a, a norma jurídica não tem a possibilidade lógica de ser eficaz, não pode ser considerada vigente. (MELLO, 2003. p. 81, grifos do autor). Em relação à constitucionalidade, a norma tão somente deve ser válida, mas não necessariamente é válida quando incidente. Basta para incidência da norma a sua vigência. É necessário admitir que uma norma inconstitucional possa criar fatos jurídicos, portanto ser eficaz. A validade não é condição necessária e indispensável, em termos teóricos, da eficácia da norma. Como afirmam Marcos Bernardes de Mello (2008, p. 18), Pontes de Miranda (1972, p. 39), Paulo Barros de Carvalho (1998, p. 56), se a norma existe com vigência e é válida, ou mesmo sendo inválida, i.e., ainda não teve sua nulidade decretada por quem, dentro do sistema jurídico, tenha poder para tanto, poderá ser eficaz desde que se concretizem os fatos descritos abstratamente no seu suporte fático. Tanto que, ao ser declarada inconstitucional, os efeitos jurídicos do fato jurídico tendem a ser retirados por meio dos efeitos retroativos da sentença - ex tunc. Mas para se retirar os efeitos jurídicos de um fato, é absolutamente necessário reconhecer que algum efeito jurídico ocorreu, mesmo diante de uma norma inconstitucional. Para atribuir-se efeitos ex tunc à sentença declaratória de inconstitucionalidade, é necessário reconhecer que os efeitos existiram em algum momento e que precisam ser retirados para recomposição do status quo ante. A maioria da doutrina considera que as decisões devem ter efeito ex nunc - vide assim Paulo Luiz Netto Lôbo. Não se trata, no entanto, de justificar-se que os efeitos ex tunc como regra, mas que podem ocorrer, bem como explicitar qual a justificativa dessa possibilidade. Mas o que a exegese do artigo 27 da Lei nº 9868 de 1999 quer apontar é que, mesmo diante da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, os efeitos jurídicos podem permanecer no mundo jurídico. Mesmo diante de uma norma declarada de forma inconteste como inválida, a eficácia dos fatos jurídicos existentes podem permanecer no mundo jurídico. Reconhecidos os elementos exigidos do artigo 27 da Lei nº 9868 de 1999 ( segurança jurídica ou excepcional interesse social ), o ordenamento admite que a eficácia de uma norma inconstitucional possa manter-se no mundo jurídico. Quando o artigo afirma que a sentença declaratória de inconstitucionalidade só tenha efeitos a partir de outro momento a ser fixado, ele abre a possibilidade de que fatos jurídicos anteriores, criados sob o pálio da norma inconstitucional, possam produzir seus efeitos. Direito Izabela Hendrix Belo Horizonte vol. 7, nº 7, novembro de 2011 62
Para exemplificar a possibilidade ventilada, há decisões do Supremo Tribunal Federal em que se declarou que seriam ex nunc seus efeitos quanto a atos praticados no exercício da função pública a respectiva percepção de remuneração pelos servidores nomeados, irregularmente, com fundamento em lei considerada inconstitucional. O RE 78.533-Sp, de junho 1982, relator para o Acordão o Min. Décio Miranda (RTJ 100/1086), deu aplicação à doutrina do funcionário de fato. Na justiça do Trabalho há o entendimento de que o servidor público admitido por ato inconstitucional não tem direito a permanecer no serviço. No entanto, o mesmo funcionário faz jus à remuneração pelo trabalho prestado ao Estado. A decisão baseou-se, entre outros argumentos, no fato de que, por se tratar, o salário, de contraprestação pelo serviço prestado, haveria enriquecimento sem causa pelo Estado (=patrão) se não houvesse o pagamento. O fundamento de atribuir-se eficácia ex nunc a certas decretações de inconstitucionalidade relativamente a servidores públicos reside, ao que parece, na circunstância de que não se pode apagar do mundo a realidade do serviço prestado e o enriquecimento sem causa que haveria com restituição de que foi pago por eles (MELLO, 2008, p. 58).Vale ainda citar o RE 94.414, relator Min. Moreira Alves (RDA 160/144-51, abr./jun. 1985), o qual apela como precedentes os RREE 90.391 e 100.144. A justificativa de tal situação está na chamada autonomia do fato jurídico. Depois de criado o fato jurídico, a norma pode perder qualquer de suas qualidades sem que tal situação afete sua eficácia. No caso, a norma pode perder a existência (revogada), perder a validade (declarada inconstitucional), até mesmo perder o reconhecimento social (efetividade), sem que sua eficácia seja teoricamente comprometida. Ou seja, uma vez existente, nada que ocorra como a validade ou existência da norma implicam necessariamente sobre o fato jurídico existente. Considerações Finais Em função da distinção entre os âmbitos analíticos da existência, vigência, validade e eficácia é possível observar que uma norma inconstitucional pode produzir efeitos. A constitucionalidade de uma norma não é condição sine qua non para eficácia de uma norma. O ordenamento jurídico pátrio, por meio do artigo 27 da Lei nº 9866 de 1999, admite a possibilidade de haver efeitos de uma norma inconstitucional. Effectiveness of rules unconstitutional: considerations on article 27 of Law No. 9.866 of 1999 Abstract This article is to demonstrate the possibility provided in Article 27 of the Law nº 9866 of 1999 declared unconstitutional a provision has effect according to the autonomy of the legal fact. From the analytical distinction between the fields of rule of law and legal development, it becomes possible to identify the possibility of theoretical and normative rule invalidates still has legal effect. Direito Izabela Hendrix Belo Horizonte vol. 7, nº 7, novembro de 2011 63
Keywords: Unconstitutionality; Rule of law; Validity; Effectiveness; Employee actually. Referências BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 2. ed. rev. Bauru, SP: Edipro, 2003. CARVALHO, Paulo Barros de. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. LÔBO, Paulo Luiz Netto. O controle de constitucionalidade das leis e o direito adquirido. Revista de Informação Legislativa, ano 27, n. 106, p. 37, abr./jun. 1990. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano de eficácia 1º parte. São Paulo: Saraiva, 2008. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano de existência. São Paulo: Saraiva, 2001. PAULA, Alexandre Sturion de. A Viabilidade da Declaração de Inconstitucionalidade de Lei no Período da "Vacatio Legis". Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_56/artigos/art_alexandre.htm. Acesso: em 19 abr. 2012 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Bosch, 1972. Direito Izabela Hendrix Belo Horizonte vol. 7, nº 7, novembro de 2011 64