LIBERAIS SIM, MAS SOBRETUDO REPUBLICANOS: A IDEOLOGIA DOS INTRODUÇÃO FARRAPOS ATRAVÉS DO PERIÓDICO O POVO. Aluno: Márcio Edimir Gonçalves. Orientador: Renato Lopez Leite. O objetivo deste trabalho 1 é analisar e identificar a ideologia dos líderes da República Rio-Grandense durante a Guerra dos Farrapos através de uma análise comparativa entre a historiografia existente sobre o tema e uma fonte primária - no caso, 160 edições de seu periódico oficial, O Povo. Enquadrando-se em um plano geral de História das Idéias e usando como norte metodológico a História dos Conceitos, o trabalho se foca nos conceitos relacionados À ideologia farroupilha, tentando compreendê-los em seu contexto temporal de então. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Não me limitei a obras que tratassem apenas da Guerra dos Farrapos, mas também analisei obras de escopo mais amplo sobre o Brasil Imperial, em especial o período regencial e início do segundo reinado épocas nas quais a questão dos farrapos se constituiu um assunto de peso na política nacional. Ao analisar cada obra, me foquei nos diversos conceitos citados liberalismo, republicanismo, federalismo, democratismo, etc... assim como na origem de tais conceitos na realidade riograndenses e suas possíveis procedências externas norte-americanas, italianas, inglesas, platinas, etc... Nesta revisão bibliográfica podemos notar alguns pontos comuns entre os vários autores, algumas unanimidades, alguns pontos polêmicos, além de questões recorrentes. Por exemplo, o caráter liberal da revolta farroupilha é praticamente uma unanimidade na historiografia porém tal liberalismo raramente é definido ou conceituado, e quando o é, normalmente é feito de forma passageira. Ora é apresentado como máscara de aspectos econômicos, ora como característica inerente ao povo rio-grandense. Não se especifica se esse liberalismo é ligado apenas a questões políticas, sociais ou econômicas (ou a todas elas), nem quais pensadores liberais teriam influenciado essa visão liberal. Um dos poucos autores a se preocupar 1 Esta monografia é uma versão revisada e ampliada do relatório resultante da bolsa de pesquisa PIBIC/CNPq no período 2006/2007. Tal relatório intitula A evolução do discurso e ideário político dos farroupilhas através da análise dos periódicos O Continentino e O Povo., tendo sido apresentado no 15º Evinci, recebendo o primeiro lugar em seu setor.
mais em definir o conceito de liberalismo farroupilha é Moacyr Flores 2, que o coloca como derivado do Liberalismo Inglês, com certa influência norte-americana. Outro termo recorrente é o republicanismo dos farrapos, mas nesse caso o termo surge no meio de algumas questões perenes da historiografia, ligado ao conceito de federação do movimento (separatista ou ligada a autonomia dentro de uma união brasileira) e a relevância do republicanismo para o inicio do levante. A maior parte dos autores trata o republicanismo farrapo como um reflexo da impossibilidade de diálogo como Império e não como elemento ideológico preponderante no início da rebelião que iniciara como um movimento de reinvindicações administrativas dentro do sistema monárquico. Quem mais se distancia de tal posição é Varela, que defende o republicanismo como principal razão da Guerra. Moacyr Flores defende uma posição mais eqüidistante das duas posições: para ele o movimento farroupilha era dividido entre liberais monarquistas e liberais republicanos. Importante frisar que o republicanismo aqui surge basicamente como um ideal de forma de governo não como um conceito mais amplo de ética e costumes de tradição republicana. Sobre esse aspecto, comentarei com mais detalhe a seguir. Quanto às influências estrangeiras, as opiniões são diversas. Durante décadas, a influência dos italianos, em especial dos conceitos da Jovem Itália, foi considerado predominante no movimento farroupilha curiosamente, nenhum autor até a publicação da obra de Moacyr Flores comenta a incompatibilidade entre tais conceitos democráticos (democratismo) e o liberalismo farrapo. A influência anglo-saxã, na figura do Reino Unido, mas principalmente dos Estados Unidos, é citada por uma boa parte dos autores, ainda que poucos elaborem a questão mais a fundo. Varela, novamente, se destoa da historiografia geral, ao propor que a maior influência ideológica dos farrapos não seria italiana, nem alemã, mas sim platina, mais especificamente da Federação Argentina. Tendo isso em mente, irei analisar com mais detalhe a bibliografia sobre liberalismo e republicanismo no Brasil Império, dado a relevância de ambos os termos sobre o assunto tratado. ESTUDO DE CASO: O POVO 2 FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. 2
Feita a revisão bibliográfica, agora podemos contrastar as informações historiográficas com uma fonte primária, em um estudo de caso. Minhas fontes foram 160 números do periódico farroupilha O Povo, jornal surgido inicialmente como veículo de doutrinação ideológica que, com o decorrer do tempo, se tornou uma espécie de Diário Oficial da República Rio-Grandense. Cada um dos jornais foi digitalizado pessoalmente pelo autor desta monografia, no museu Hipólito José da Costa, em Porto Alegre. De todos os periódicos editados na região farroupilhas ou legalistas - durante o período da Guerra, O Povo é o mais citado na historiografia. Ao ler o jornal superficialmente, é fácil perceber por que uma geração inteira de estudiosos aceitou a hipótese de que a influência ideológica dos carbonários e da Jovem Itália havia sido determinante no movimento. Pois, já no primeiro número, podemos ler uma citação da Jovem Itália no cabeçalho 3 - citação que acompanharia o jornal até seu último número. O editorial inicial também diz que os ideais da Jovem Itália iriam nortear o periódico. Segue-se um breve texto sobre a importância de se inculcar valores democráticos no povo durante uma revolução, preparando-o para a vida de liberdade pós-revolução. O jornalista é colocado como alguém cuja verdadeira função é educar 4. Lendo o primeiro número, é fácil concluir que a Jovem Itália era um referencial importante aos farrapos. Porém isso não passa de uma ilusão, pois a leitura dos números subseqüentes mostra que as referências às mesmas começam a diminuir, até que desaparecem por completo, antes mesmo do término do primeiro ano de publicação do jornal. Tal observação se encaixa bem com a posição de Moacyr Flores, que nega qualquer relevância as influências italianas 5. Quanto ao liberalismo citado com unanimidade na historiografia como a ideologia dos farrapos ele é raramente citado por nome e também é raro encontrar situações onde os Rio-Grandenses se classifiquem como liberais. O que é inesperado, considerado a ênfase no liberalismo dos farrapos existente na historiografia. Isso não quer dizer que tais estudos estejam errados pois, se por um lado o liberalismo não surge nominalmente com muita freqüência, por outro algumas de suas 3 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 1. 4 idem 5 FLORES, Moacyr. op. cit. p. 49. 3
instituições intrínsecas são usadas até a exaustão, em especial os conceitos de Império da Lei e o Direito a Propriedade. A descrição do Império como um governo tirano que desrespeita as leis é recorrente durante quase todos os números do jornal. Por exemplo, já no primeiro número, temos uma crônica com tom indignado, protestando contra o tratamento indevido dado pelo Império a um dos prisioneiros farrapos, Francisco Xavier Ferreira (de quase setenta anos). Interessante notar que grande parte da indignação se deve não apenas aos maus tratos, mas pelo fato da prisão e seu processo serem inconstitucionais 6. A reafirmação da defesa da propriedade durante a Guerra é uma das preocupações perenes dos editores do jornal é claro o intuito de mostrar a Republica Rio-Grandense como um governo que respeita os direitos universais do homem como dita o liberalismo, em especial a propriedade. Por exemplo, na edição 38 do jornal, o presidente Bento Gonçalves, ao anunciar a mudança da capital para Cassapava, tenta manter a calma dos cidadãos da república ao reafirmar seu compromisso com estes valores 7. O papel de defensores da propriedade dos rio-grandenses é constantemente comparado com as ações do Império Brasileiro, como já dito, sempre caracterizado como não respeitador da propriedade. Tais desrespeitos são colocados como um dos motivos pelo qual os rio-grandenses foram obrigados se desligarem da união brasileira. Tais desrespeitos teriam raízes ainda no período colonial, continuando por décadas durante o Império. Por exemplo, na edição 10 do periódico, temos um longo artigo onde se reclama do desrespeito ao direito a propriedade, que era praticado pelo governo de Portugal e depois pelo Governo do Brasil, que durante as guerras contra as nações orientais desrespeitava o direito de propriedade dos rio-grandenses 8. Em varias das edições entre as 160 analisadas, podemos encontrar este tipo de retórica liberal porém, como dito, os termos liberalismo e liberal são raramente utilizados. Em contraste, temos o uso recorrente e abundante dos termos republica e republicanismo. É curioso notar como muitas características liberais, são classificadas no periódico como exemplos de virtudes de um verdadeiro republicano, como em uma passagem na edição 10, onde a defesa da propriedade é colocada como obrigação 6 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 1. 7 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 38. 8 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 10. 4
de um republicano 9. A ode a Republica como a panacéia para todos os males é uma constante durante toda a publicação do periódico. É neste contexto que é relevante nos remetermos ao conceito de tradição republicana como citado na revisão bibliográfica - como algo além de uma simples forma de governo, mas sim como um conjunto de valores, um estilo de vida, conceito esses elaborado nas obras de Wood 10 e Pocock 11. As abundantes referências a republica e/ou republicanismo são simplesmente consideradas provenientes da vertente republicana do liberalismo, sem se ater a possíveis diferenças ideológicas. Curiosamente, Moacyr Flores, um dos mais proeminentes estudiosos do tema, chegou a esbarrar nesta questão, quando diz que a forma republicana é muito mais exemplificada nos jornais farroupilhas com Roma de que com os Estados Unidos da América 12. Isso vai ao encontro do que Renato Lopes Leite no diz sobre a tradição republicana, ao citar a explicação de Philip Pettit sobre o assunto, uma tradição ligada a um conceito de liberdade como não-domínio, que teve suas origens na Roma clássica 13. Apesar de Moacyr Flores ter esbarrado nesta ligação, ele não deu importância a mesma, classificou tais influências simplesmente como parte da ideologia dos liberais republicanos. Em nossa análise do periódico O Povo encontramos uma situação diferente do que afirma Flores: neste jornal há muito mais referências aos EUA do que a Roma, e o mesmo é constantemente usado como exemplo a ser seguido pelos Rio Grandenses. Talvez esse seja o elo perdido entre esta tradição republicana e o movimento farroupilha. Se considerarmos os trabalhos de autores como Gordon S. Wood, o peso dessa tradição na independência americana é extremamente relevante é exatamente este período da história americana, o período da independência, o mais citado pelos farroupilhas em O POVO. Um editorial na edição 40, por exemplo, diz que todas as independências nas Américas começaram em 1776 e são devedoras da independência Americana. O americanos do sul seguiram bem o exemplo de seus irmãos no norte, mas erraram ao aceitar governos que nada tinham de comum com a realidade americana e sim com a 9 idem 10 WOOD, Gordon. Op. Cit.. 11 POCOCK, John G. A. Op. Cit. 12 FLORES, Moacyr. op. cit. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 91. 13 Philip Pettit. Republicanismo: uma teoria sobre la ibertad y el gobierno. Barcelona: Paidós, 1999. p. 39. apud LEITE, Renato Lopes. op. cit. p. 299. 5
realidade européia. O Brasil, ao aceitar Dom Pedro I, seria o melhor exemplo disso 14. E, ao se colocarem como aqueles que trarão a liberdade ao resto das províncias brasileiras (outro tema comum do periódico), eles citam o exemplo dos americanos e como eles estabeleceram um ideal a ser seguido 15. O exemplo americano é colocado em primeiríssimo plano, a ponto de afirmarem que toda a América Latina independente é devedora dos Estados Unidos 16. Mas é bom notar que a influência americana é sempre citada em termos de influência republicana, não liberal o que reforça a possível ponte da tradição republicana através da influência norte-americana. Logo, quando o periódico, em sua edição 70, publica um artigo do Aurora Fluminense elogiando Washington, eles o fazem colocando-o como exemplo de republicano 17. O mesmo pode ser notado na edição 56, onde quase todo o jornal é preenchido com um longo artigo biográfico sobre o mesmo Washington. Esta influência americana se liga diretamente a uma das questões sobre o federalismo farroupilha: se o mesmo tinha um sentido de maior autonomia dentro de uma União, tal como nos Estados Unidos, ou um sentido separatista. Um momento interessante para a análise da questão ocorre quando os farroupilhas, condizentes com seu discurso de libertadores brasileiros, invadem Santa Catarina e proclamam uma nova Republica. Assim, na edição 54, temos a publicação de uma proclamação de Bento Gonçalves ao povo de Lages, na nova Republica, onde se diz que os catarinenses uniram seu território ao rio-grandense, formando com ele uma sólida e compacta integridade 18. O mais interessante aqui é a ênfase na união entre as duas republicas e, mais relevante ainda, a idéia de que ao se transformar em Republica, Santa Catarina passou a se unir territorialmente ao Rio Grande do Sul. Se tal trecho ainda deixa alguma dúvida quanto ao conceito de Federação como União nos moldes norte-americanos, uma nova proclamação de Bento Gonçalves tira essas dúvidas, na edição 94. Nela se afirma que Santa Catarina agora faz parte do Rio Grande do Sul 19. O laço federal é usado no sentido de União. Ao se proclamarem como salvadores do Brasil e 14 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 40. 15 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 40. 16 idem 17 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 70. 18 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 54. 19 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 94. 6
pretenderem uma Federação Brasileira, tais citações remetem mais a uma união como a norte-americana e não a federação solta e abstrata como a proposta na tese de Varela. CONCLUSÕES A analise do periódico O POVO nos leva a crer que, apesar do liberalismo claro em várias passagens, há uma ênfase muito mais forte e explicita no discurso Farroupilha quanto ao republicanismo. Mesmo a influência norte-americana, citada por muitos autores e reforçada em nossa análise, se mostra mais relacionada à tradição republicana do que ao liberalismo. O liberalismo é claro pela ênfase nas Leis da humanidade e direitos naturais, porém tal influência é apagada se comparada com a ênfase dado ao republicanismo no periódico. Nota-se isso claramente pelas raríssimas ocorrências do termo liberal e/ou liberalismo enquanto, por outro lado, os conceitos de republica e sistema republicano são citados inúmeras vezes. O termo republicano também é o mais utilizado para se definir não somente o cidadão Rio-Grandense, mas como todo homem de bem e valores. Podemos ligar isto há uma tradição republicana existente no país desde antes do processo da independência e fundamental nesta que poderia ter se mantido até a eclosão da Revolução Farroupilha. Esta tradição não se resume a uma simples forma de governo, mas sim a um sistema de valores, a um estilo de vida, baseado em um certo conceito de liberdade e em um cidadão republicano ativo e valoroso. Considerando que tal tradição republicana teve papel preponderante na Independência Americana e esta última é constantemente utilizada pelos farrapos como exemplo a ser seguido, podemos considerar uma possível difusão indireta deste ideal republicano para os farrapos, através do modelo norte-americano. Pois a análise do periódico mostra que a influência norte-americana em diversas facetas, como no conceito de federalismo farroupilha, emulando uma união como a norte-americana. Isso abre o caminho para respostas mais satisfatórias a algumas das questões perenes na historiografia sobre a Revolução Farroupilha, tais como: 7