1 A Volta do Medo. Liubova Kozinchenka, Exército Vermelho, 58ª Divisão de Guardas. Al Aronson, Exército dos EUA, 69ª Divisão de Infantaria 1



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1 A Volta do Medo Esperamos que eles chegassem até nossa margem. Podíamos ver os rostos. Parecia gente comum. Tínhamos imaginado algo diferente. Bem, eram americanos! Liubova Kozinchenka, Exército Vermelho, 58ª Divisão de Guardas Acho que não sabíamos o que esperar dos russos, mas quando a gente olhou bem para eles, podiam ser uma coisa ou outra, sabe? Se botar um uniforme americano neles, podiam ser americanos! Al Aronson, Exército dos EUA, 69ª Divisão de Infantaria 1 Era assim que a guerra devia acabar: com vivas, apertos de mão, bebida, dança e esperança. A data era 25 de abril de 1945, o local a cidade de Torgau sobre o Elba, leste da Alemanha; o evento, primeiro encontro entre os dois exércitos que tinham cortado a Alemanha nazi em duas, convergindo de extremos opostos da terra. Cinco dias depois, Adolf Hitler estourou os miolos debaixo dos escombros que eram tudo que restara de Berlim. Cerca de uma semana depois, os alemães se renderam incondicionalmente. Os líderes da vitoriosa Grande Aliança, Franklin D. Roosevelt, Winston Churchill e Iosef Stalin já tinham trocado seus apertos de mão, brindes e esperanças de um mundo melhor em duas reuniões de cúpula durante a guerra Teerã, em novembro de 1943, e Yalta, em fevereiro de 1945. Todavia, estes gestos pouco significariam se as tropas que comandavam não fossem capazes de fazer suas próprias e ruidosas celebrações onde realmente importava: nas linhas de frente de um campo de batalha do qual o inimigo agora desaparecia.

6 Por que motivo, então, os exércitos se aproximaram um do outro tão cuidadosamente em Torgau, como se estivessem esperando encontrar visitantes interplanetários? Por que a semelhança que notaram lhes pareceu tão surpreendente e reconfortante? Por que, apesar disso, seus comandantes insistiram em cerimônias de rendição separadas, uma para o ocidente, em Reims, França, dia 7 de maio, e outra para a frente leste, em Berlim, dia 8 de maio? Por que as autoridades soviéticas tentaram conter as manifestações pró-americanas espontâneas que surgiram em Moscou depois do anúncio oficial da capitulação alemã? Por que as autoridades americanas, na semana seguinte, suspenderam abruptamente embarques críticos da ajuda do Lend-Lease para a União Soviética e depois os retomaram? Por que Harry Hopkins, assessorchave de Roosevelt, que desempenhara papel crucial na criação da Grande Aliança, em 1941, teve que correr a Moscou seis semanas após a morte de seu chefe para tentar salvá-la? Por que, aliás, anos mais tarde, Churchill intitularia suas memórias desses acontecimentos Triunfo e Tragédia? A resposta a todas estas perguntas é praticamente a mesma: venceu a guerra uma coalizão cujos membros mais importantes já estavam em guerra ideológica e geopoliticamente, se não militarmente entre si. Quaisquer que fossem os triunfos da Grande Aliança na primavera de 1945, seu êxito sempre dependera da busca de objetivos compatíveis por sistemas incompatíveis. A tragédia foi esta: aquela vitória exigiria que os vencedores deixassem de ser o que eram ou desistissem de muito do que esperavam atingir com aquela guerra. I Houvera de verdade um visitante extraterrestre nas margens do Elba em abril de 1945, ele ou ela ou a coisa poderia, de fato, ter notado semelhanças superficiais nos exércitos americano e russo que ali se encontraram, bem como nas sociedades de que provinham. Ambos, Estados Unidos e União Soviética, nasceram em revoluções. Ambos abraçaram ideologias com aspirações globais: o que funcionou para eles em casa, presumiram os líderes, funcionaria para o resto do mundo. Ambos, estados continentais, avançaram por extensas fronteiras

A volta do medo 7 e, naquele momento, eram o primeiro e o terceiro maiores países do mundo. E ambos tinham entrado na guerra em resultado de ataques de surpresa: a invasão alemã da União Soviética começada em 22 de junho de 1941 e o ataque japonês a Pearl Harbor de 7 de dezembro de 1941, que Hitler usou como escusa para declarar guerra aos Estados Unidos, quatro dias mais tarde. As semelhanças, no entanto, ficariam nisto. As diferenças, que qualquer observador habitante da Terra apontaria rapidamente, eram muito maiores. A revolução americana, ocorrida mais de um século e meio antes, refletiu uma grande desconfiança da concentração de autoridade. Liberdade e justiça, tinham insistido os Fundadores, só viriam pela constrição do poder. Graças a uma constituição engenhosa, a seu distanciamento geográfico dos rivais em potencial e à magnífica dotação de recursos naturais, os americanos puderam construir um estado extraordinariamente poderoso, fato que ficou óbvio durante a Segunda Guerra Mundial. Porém chegaram a este resultado limitando fortemente a capacidade do governo de controlar a vida quotidiana, fosse pela difusão de idéias, pela organização da economia ou pela conduta da política. Apesar da herança da escravidão, do quase extermínio dos americanos nativos e de persistente discriminação racial, sexual e social, os cidadãos dos Estados Unidos podiam perfeitamente proclamar, em 1945, que viviam na mais livre sociedade da face da Terra. A revolução bolchevique, que ocorrera apenas um quarto de século antes, tinha, em contraste, adotado a concentração da autoridade como forma de derrubar os inimigos de classe e consolidar uma base da qual a revolução proletária se pudesse espalhar pelo mundo. Karl Marx asseverou, no Manifesto Comunista de 1848, que a industrialização que os capitalistas haviam desencadeado expandia e explorava ao mesmo tempo a classe operária, que, mais cedo ou mais tarde, se libertaria. Não querendo esperar que isso acontecesse, Vladimir Ilyich Lênin procurou acelerar a história em 1917, assumindo o controle da Rússia e impondo o marxismo, ainda que o país estivesse contrariando a predição de Marx, segundo a qual a revolução só poderia acontecer em uma sociedade industrial avançada. Por sua vez, Stalin resolveu este problema redesenhando a Rússia a fim de caber na ideologia

8 marxista-leninista: forçou um país eminentemente agrário com pouca tradição de liberdade a virar uma nação fortemente industrializada e absolutamente sem liberdade. Em conseqüência, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era, ao final da Segunda Guerra Mundial, a sociedade mais autoritária da face da Terra. Se as nações vitoriosas não podiam ser mais diferentes, o mesmo se pode dizer com relação às guerras que travaram entre 1941 e 1945. Os Estados Unidos enfrentaram guerras separadas simultaneamente contra os japoneses no Pacífico e os alemães na Europa mas sofreram baixas notavelmente pequenas: pouco menos de 300 mil americanos morreram em todos os teatros de operações. Geograficamente distante de onde ocorriam os combates, o país não sofreu grandes ataques, com exceção do primeiro, em Pearl Harbor. Com sua aliada, a Inglaterra (que teve cerca de 357 mil mortos de guerra), os Estados Unidos foram capazes de escolher onde, quando e em que circunstâncias combateriam, fato que reduziu muito os custos e riscos de entrar na luta. Mas, ao contrário dos ingleses, os americanos emergiram da guerra com sua economia próspera: as despesas de guerra tinham causado a quase duplicação do produto interno bruto em menos de quatro anos. Se já houve uma coisa chamada boa guerra, esta, para os Estados Unidos, chegou perto. A União Soviética não teve tais vantagens. Travou apenas uma guerra, mas talvez a mais terrível da história. Com grandes e pequenas cidades e o interior devastados, suas indústrias arruinadas ou transferidas às pressas para além dos Urais, a única opção, afora render-se, era a resistência desesperada, em terreno e circunstâncias escolhidos pelo inimigo. As estimativas de baixas, incluindo civis e militares, são notoriamente inexatas, mas é provável que uns 27 milhões de cidadãos soviéticos tenham morrido em conseqüência direta da guerra, isto é, quase noventa vezes mais do que os mortos americanos. A vitória não poderia ter preço mais alto: em 1945, a URSS era um país destruído, feliz só por sobreviver. A guerra, disse um observador da época, era tanto a mais apavorante como a mais orgulhosa lembrança do povo russo. 2 Chegada a hora de dar forma aos acertos de pós-guerra, porém, os

A volta do medo 9 vitoriosos estavam mais equilibrados do que esta assimetria poderia indicar. Os Estados Unidos não tinham compromisso de reverter sua longa tradição de alheamento dos assuntos europeus. Roosevelt chegara a garantir a Stalin, em Teerã, que as tropas americanas voltariam para casa dentro de dois anos após o fim da guerra. 3 Tampouco, em face da depressão que caracterizara os anos 30, podia haver certeza de que a expansão econômica do tempo de guerra persistiria, ou que a democracia lançaria raízes além das relativamente poucas nações em que ainda existia. A rematada verdade de que os americanos e ingleses não teriam derrotado Hitler sem a ajuda de Stalin significou que a Segunda Guerra Mundial foi só uma vitória sobre o fascismo não sobre o autoritarismo e suas perspectivas para o futuro. Já a União Soviética contou com vantagens, a despeito das imensas perdas. Sendo parte da Europa, suas forças militares não se retirariam da Europa. Sua economia dirigida mostrara-se capaz de manter o pleno emprego, enquanto as democracias capitalistas, nos anos anteriores à guerra, tinham fracassado neste intento. Sua ideologia gozava de amplo respeito na Europa, pois lá os comunistas tinham comandado a maior parte da resistência aos alemães. Finalmente, a carga desproporcional que recaiu sobre o Exército Vermelho para derrotar Hitler deu à URSS a reivindicação moral de uma influência substantiva, talvez predominante, na formulação dos acordos de pós-guerra. Em 1945, foi no mínimo tão fácil acreditar que a onda do futuro era o comunismo autoritário quanto crer que era o capitalismo democrático. A União Soviética teve ainda a vantagem de ser a única das nações vitoriosas a sair da guerra com uma liderança experimentada. A morte de Roosevelt em 12 de abril de 1945 catapultara seu inexperiente e pouco informado vice-presidente Harry S. Truman para a Casa Branca. Três meses depois, a inesperada derrota de Churchill na eleição geral inglesa fez primeiro-ministro o líder do Partido Trabalhista, Clement Attlee, homem de muito menos estatura. A União Soviética, em contraste, tinha Stalin, seu indiscutível chefe desde 1929, o homem que reconstruíra o país e o trouxera à vitória na Segunda Guerra Mundial. Astucioso, temível e aparentando calma determinação, o ditador do

10 Kremlin sabia bem o que queria após a guerra. Truman, Attlee e as nações que eles governavam pareciam muito menos fixos. II Bem, e daí? Que queria Stalin? Faz sentido começar por ele, pois só ele, entre os três líderes do pós-guerra, tivera tempo com autoridade para identificar e escolher suas prioridades. Com sessenta e cinco anos de idade ao final da guerra, o homem que governava a União Soviética estava fisicamente exaurido, rodeado de sicofantas, pessoalmente solitário mas ainda no controle de modo firme, amedrontador. Como assinalou um diplomata americano, o bigode mal cuidado, os dentes manchados, o rosto com marcas de varíola e os olhos amarelos davam-lhe o aspecto de um tigre velho curtido na luta. ( ) Um visitante desinformado não imaginaria o quanto de maquinação, ambição, amor ao poder, desconfiança, crueldade e dissimulada índole vingativa se escondiam por trás daquela aparência despretensiosa. 4 Por uma série de expurgos na década de 30, havia muito Stalin tinha eliminado todos os seus rivais. Um arquear de sobrancelha ou estalar de dedos, como sabiam seus subordinados, poderia ser a diferença entre vida e morte. Surpreendentemente baixo apenas 1,63m apesar disso o homenzinho barrigudo era um gigante que dominava um país gigantesco. Os objetivos de Stalin no pós-guerra eram segurança para si mesmo, para seu regime, para seu país e para sua ideologia, exatamente nesta ordem. Procurou se assegurar de que nenhum desafio no plano interno pudesse jamais pôr em risco seu governo pessoal e que nenhuma ameaça externa pudesse algum dia pôr de novo em risco seu país. O interesse de comunistas noutras partes do mundo, admiráveis como fossem, nunca poderia se sobrepor às prioridades do estado soviético como ele as estabelecera. Narcisismo, paranóia e poder absoluto juntaram-se em Stalin: 5 dentro da União Soviética e do movimento comunista internacional, ele era tremendamente temido mas ao mesmo tempo, idolatrado. Stalin achava que o custo da guerra em vidas e bens devia ditar, após a guerra, quem ficava com que: logo, a União Soviética ficaria com muito. 6 Não apenas retomaria os territórios perdidos durante a

12 Segunda Guerra, mas reteria aqueles que tomara em razão do oportunista porém míope Pacto de não-agressão que Stalin celebrara com Hitler em agosto de 1939 porções da Finlândia, da Polônia e da Romênia, além dos estados bálticos inteiros. Exigiria que os estados além destas fronteiras expandidas ficassem na esfera de influência de Moscou. Queria concessões territoriais às custas do Irã e da Turquia (inclusive o controle dos Estreitos turcos), assim como bases navais no Mediterrâneo. Finalmente, uma Alemanha derrotada e devastada ele puniria com ocupação militar, expropriação de bens, pagamento de indenizações e transformação ideológica. Contudo, havia aqui um penoso dilema para Stalin. Prejuízos desproporcionais durante a guerra podiam perfeitamente valer para a União Soviética ganhos desproporcionais no pós-guerra, mas também retiravam do país o poder indispensável para garantir unilateralmente esses ganhos. A URSS precisava de paz, de ajuda econômica e do assentimento diplomático de seus antigos aliados. Por ora, não teve escolha a não ser buscar a cooperação de americanos e ingleses; tanto quanto eles tinham dependido de Stalin para derrotar Hitler, agora Stalin dependia da constante boa-vontade anglo-americana para alcançar seus objetivos de pós-guerra a um custo razoável. Portanto, não queria uma guerra, quente ou fria. 7 Se ele seria hábil o suficiente para evitar estas alternativas, era outra questão bem diferente. Pois a compreensão de Stalin dos seus aliados do tempo da guerra e dos objetivos deles se baseava mais no que ele desejava que fossem do que numa avaliação criteriosa das prioridades conforme Washington e Londres as enxergavam. Foi aqui que a ideologia marxista-leninista influenciou Stalin, pois suas ilusões derivaram dela. A mais importante foi a crença, que recuava até Lênin, de que os capitalistas nunca seriam capazes de cooperar entre si por muito tempo. A ganância inerente ao capitalismo a irresistível necessidade de pôr o lucro acima da política mais cedo ou mais tarde prevaleceria, exigindo simplesmente que os comunistas tivessem paciência para esperar a autodestruição de seus adversários. A aliança entre nós e a facção democrática dos capitalistas está dando certo porque eles tinham interesse em impedir o domínio de Hitler, comentou Stalin

A volta do medo 13 quando a guerra chegava ao fim. No futuro, estaremos contra essa facção dos capitalistas também. 8 A idéia de uma crise interna do capitalismo era até certo ponto plausível. Afinal, a Primeira Guerra Mundial fora uma guerra entre capitalistas; e veio por ali a oportunidade para surgir o primeiro estado comunista do mundo. A Grande Depressão deixou os países capitalistas restantes engalfinhados entre eles para salvar-se em vez de cooperar na reabilitação da economia global e em vez de sustentar o acordo de pós-guerra: como resultado, surgiu a Alemanha nazi. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, achava Stalin, a crise econômica ressurgiria. Então, os capitalistas precisariam da União Soviética e não o contrário. Eis porque ele esperava firmemente que os Estados Unidos emprestassem à União Soviética vários bilhões de dólares para a reconstrução: os americanos de outra forma não teriam mercado para seus produtos durante a crise que se avizinhava. 9 Seguia-se daí, naturalmente, que a outra potência capitalista, a Inglaterra cuja fraqueza Stalin nunca percebeu bem mais cedo ou mais tarde romperia com seu aliado americano em função de rivalidades econômicas. A inevitabilidade de uma guerra entre os países capitalistas continua, insistiu ele, já em 1952. 10 Da perspectiva de Stalin, as forças históricas de longo prazo compensariam a catástrofe que a Segunda Guerra Mundial fora para a União Soviética. Não seria preciso confrontar diretamente americanos e ingleses a fim de alcançar seus objetivos. Podia simplesmente esperar que os capitalistas começassem a brigar uns com os outros e que os europeus desgostosos abraçassem o comunismo como alternativa. Portanto, a meta de Stalin não era restaurar o equilíbrio de poder na Europa, mas dominar o continente tão completamente quanto Hitler quisera. Ele reconheceu, num pensativo comentário muito revelador, feito em 1947, que se Churchill retardasse mais um ano a abertura da segunda frente no norte da França, o Exército Vermelho teria chegado à França. ( ) Chegamos a entreter a idéia de entrar em Paris. 11 Ao contrário de Hitler, porém, Stalin não tinha um calendário fixo. Acolheu satisfeito os desembarques do Dia-D, apesar do fato de impedirem o Exército Vermelho de chegar em pouco tempo

14 à Europa ocidental: a derrota da Alemanha era a primeira prioridade. Também não ia abandonar a diplomacia na conquista do objetivo, em boa parte porque esperava ao menos pelo momento a cooperação americana para alcançá-lo. Pois não havia Roosevelt dado a entender que os Estados Unidos não procurariam ter uma esfera de influência própria na Europa? Visão grandiosa a de Stalin: o domínio da Europa atingido pacificamente mas determinado historicamente. Defeituosa visão também, pois deixou de levar em conta os desdobrados objetivos americanos de pós-guerra. III Que queriam os americanos após a guerra? Sem dúvida, também segurança, só que, ao contrário de Stalin, tinham muito menos certeza do que fazer para isso. A razão tinha a ver com o dilema que a Segunda Guerra Mundial lhes armara: os Estados Unidos não podiam continuar servindo de modelo para o resto do mundo e, ao mesmo tempo, permanecrem isolados do resto do mundo. Exatamente o que ao longo da maior parte de sua história os americanos tentaram. Não tinham de se preocupar muito com segurança porque oceanos separavam-nos de todos os outros países que pudessem representar eventual ameaça. Sua própria independência da Inglaterra resultou, tal como Thomas Paine predisse em 1776, da impropriedade de um continente ser governado perpetuamente por uma ilha. 12 Malgrado sua superioridade naval, os ingleses jamais conseguiram projetar suficiente poder militar por 3 mil milhas de água para manter os americanos no império ou para impedi-los de dominarem o continente norte-americano. A probabilidade de outros europeus virem a fazê-lo era ainda mais remota, pois sucessivos governos em Londres concordaram com os americanos que não haveria qualquer outra colonização no hemisfério ocidental. Os Estados Unidos desfrutavam, portanto, o luxo de manter uma vasta esfera de influência sem o risco de, com isso, reptar os interesses de qualquer outra grande potência. Os americanos buscaram a influência global no plano das idéias: sua Declaração de Independência, afinal, promovera a radical afirmação de que todos os homens nascem iguais. Mas não mostraram empenho, nas

A volta do medo 15 primeiras quatorze décadas de independência, em dar conseqüência a essa assertiva. Os Estados Unidos lá estavam como exemplo; o resto do mundo que decidisse como e em que circunstâncias seguiria o exemplo. Nossa nação deseja a liberdade e independência de todas as outras, declarou o ministro do Exterior John Quincy Adams em 1821, mas é paladina e vindicante da idéia apenas para si mesma. 13 Apesar de ostentarem uma ideologia internacional, portanto, as práticas americanas eram isolacionistas: a nação ainda não chegara à conclusão de que sua segurança requeria o transplante de seus princípios. Sua política externa e militar era muito menos ambiciosa do que se poderia esperar de uma nação de tal tamanho e força. Só com a Primeira Guerra Mundial os Estados Unidos quebraram o padrão. Temeroso de que a Alemanha imperial pudesse vencer a Inglaterra e a França, Woodrow Wilson convenceu seus compatriotas de que o poderio militar americano era necessário para restaurar o equilíbrio de poder na Europa mas ele mesmo justificou este objetivo geopolítico em termos ideológicos. O mundo, insistiu ele, tinha de se tornar seguro para a democracia. 14 Wilson foi além ao propor, como base para um acordo de paz, a criação de uma Liga de Nações que imporia aos estados algo semelhante ao império da lei que os estados ao menos os esclarecidos impunham aos seus cidadãos. A idéia de que só força cria direito devia, esperava ele, desaparecer. Tanto a visão quanto a restauração do equilíbrio foram prematuros. A vitória na Primeira Guerra Mundial não fez dos Estados Unidos uma potência global: ao contrário, para muitos americanos confirmou o perigo do excesso de comprometimento. Os planos de Wilson para uma organização de segurança coletiva no pós-guerra iam muito além do que seus compatriotas estavam dispostos a ir. Enquanto isso, a desilusão com os aliados ao lado da mal concebida e tíbia intervenção militar contra os bolcheviques na Sibéria e no norte da Rússia, em 1918-1920 azedaram os frutos da vitória. A conjuntura externa estimulou um retorno ao isolacionismo: as visíveis iniqüidades do Tratado de Paz de Versalhes, os primeiros sinais de uma depressão global, depois, a ascensão de estados agressores na Europa e na Ásia oriental tiveram o dom de convencer os americanos de que melhor estariam evitando

16 de todo envolvimentos internacionais. Para um estado poderoso, foi uma retirada insólita de responsabilidades além-fronteiras. Chegado à Casa Branca em 1933, Franklin D. Roosevelt se esforçou sempre muitas vezes por vias tortuosas para levar os Estados Unidos a um papel mais ativo em política mundial. Não foi fácil: Sinto-me tateando por uma porta na parede nua. 15 Mesmo depois que o Japão foi à guerra com a China, em 1937, e da eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, FDR fez apenas mínimo progresso em persuadir a nação de que Wilson estava certo: a segurança do país podia ver-se ameaçada pelo que sucedia na outra metade do mundo. Foram necessários os terríveis acontecimentos de 1940-1941 a queda da França, a Batalha da Inglaterra e, por fim, o ataque japonês a Pearl Harbor para causar um retorno dos americanos à tarefa de restabelecer um equilíbrio de poder fora dos limites do hemisfério ocidental. Aprendemos com nossos erros no passado, assegurou o presidente em 1942. Desta vez, saberemos fazer pleno uso da vitória. 16 Roosevelt teve quatro grandes prioridades na guerra. A primeira foi sustentar aliados principalmente a Inglaterra, a União Soviética e (com menos sucesso) a China nacionalista porque não havia outro caminho para chegar à vitória: os Estados Unidos não poderiam lutar sozinhos contra a Alemanha e o Japão. A segunda foi assegurar a cooperação aliada em dar forma ao acerto de pós-guerra, pois, sem isso, haveria pouca esperança de paz duradoura. A terceira tinha a ver com a natureza de tal acerto. Roosevelt esperava que seus aliados endossassem um arranjo que afastasse as causas mais prováveis de guerras futuras. Isto queria dizer um novo órgão de segurança coletiva com poder para dissuadir e se necessário punir agressão, bem como o restabelecimento de um sistema econômico global equipado para prevenir nova depressão mundial. Finalmente, o acordo deveria ser vendável ao povo americano: FDR não pretendia repetir o erro de Wilson levando a nação além do que queria ir. Não haveria reversão ao isolacionismo, então, depois da Segunda Guerra Mundial. Mas os Estados Unidos tampouco estavam dispostos não mais do que a União Soviética a aceitar um mundo pós-guerra que lembrasse o mundo de antes da guerra.