Narrativa literária e narrativa histórica: Um estudo sobre questões de ensino de história.

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1 Narrativa literária e narrativa histórica: Um estudo sobre questões de ensino de história. Dislane Zerbinatti Moraes Faculdade de Educação - USP Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só literatura com seus meios específicos nos pode dar". (Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio) A disciplina de História tem acolhido com grande entusiasmo os objetos culturais, - obras literárias, cinema, fotografia, música, artes plásticas -, que são analisados como documentos históricos ou inseridos no cotidiano escolar como instrumentos de ensino. A investigação sobre estes objetos vem caminhando a passos largos, estabelecendo parâmetros para uma crítica bem fundamentada dessa documentação, que preserve a integridade e especificidade de cada linguagem. No que diz respeito à literatura, a pesquisa está iniciando. Curiosamente a mãe de todas as linguagens é a última a ser abordada na sua dimensão pedagógica. Talvez porque sobre ela há a atenção dos professores de literatura, na disciplina específica e os professores de história façam incursões tímidas, esporádicas e despretenciosas. Talvez se sintam coadjuvantes em uma área que pertence a outros. E, como coadjuvantes, freqüentemente os professores de história trabalham em conjunto com os professores de literatura, dando um suporte para a reconstrução histórica da época em que foi escrita ou a que se refere a obra literária. Acredito que a discussão deve caminhar para a produção de uma abordagem especialmente histórica do texto literário em sala de aula. Nosso objetivo é sugerir um roteiro de leitura e interpretação, sem prejuízo para o ensino de literatura, e com proveito para o campo de interesse historiográfico. Trata-se de delimitar os campos, depurar a análise, evitar a redundância de abordagens e procurar abarcar o maior número possível de relações entre história e literatura. Esta não é uma tarefa fácil!!! Iniciarei esta comunicação com a discussão de uma experiência de ensino de história desenvolvida no projeto de Pesquisa O texto literário e o ensino de história: uma análise das crônicas de Stanislaw Ponte Preta, realizado nos anos de 1998 a 2000 com os alunos do curso de Licenciatura em História da Universidade Ibirapuera, dentro da disciplina de História do Brasil Independente, 3 º. Ano.

2 Toda pesquisa é um processo amplo que caminha ao sabor de pistas, desejos pessoais e de possíveis dificuldades conceituais e práticas que afligem o pesquisador. Embora a nossa pesquisa tratasse de ensino de história, durante todo o processo levamos em conta a prática de leitura na sala de aula, na medida em que no horizonte de nossas intenções didáticas está a produção de hábitos de leitura e da difusão da literatura, entendida como bem cultural, entre os alunos do curso superior e da escola básica. Trata-se, talvez, de uma posição mais ou menos iluminista até de considerar a literatura como uma forma de conhecimento sobre a realidade e um instrumento poderoso de educação dos sentidos, assim como, de desenvolvimento da capacidade de interpretação, elemento fundamental nos estudos da área de Ciências Humanas. Posição que está na raiz da concepção de literatura desde os gregos até os contemporâneos, como Ítalo Calvino. Diário de uma pesquisa Os alunos do curso de História da Universidade Ibirapuera dedicavam muito pouco tempo à leitura. Os poucos livros que haviam lido foram indicados pelos professores do ensino fundamental e médio. Portanto, a escola foi a responsável pelo contato do aluno com livros e com a literatura. Percebeu-se que a entrada no ensino superior provoca uma redução ainda maior na prática de leitura, na medida em que os alunos se vêm atarefados com os estudos específicos das diversas disciplinas. Ainda assim, pudemos observar em alguns alunos, uma pequena parte deles, o gosto e a vontade de ler. Faziam leituras ocasionais de autores contemporâneos em evidência nos meios de comunicação de massa, à época, como Paulo Coelho; mas também liam Jack Kerouac, Thomas Mann, Sartre, Shakespeare. Os autores clássicos da literatura brasileira eram pouco lidos, mas conhecidos por intermédio do ensino médio. Os livros mais conhecidos eram O Cortiço, de Aluísio de Azevedo e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Durante os anos de l998, l999 e primeiro semestre de 2000, desenvolvemos uma atividade de seminários sob título de História do Brasil através da Literatura. Indicávamos a leitura de uma obra literária e de um texto de apoio da área de história ou de análise literária. Os alunos eram orientados a estabelecerem comparações entre os textos e a elaborarem questões relacionadas ao conhecimento histórico que por ventura tivessem adquirido com a leitura do texto literário. Escolhemos alguns seminários a título de exemplo:

3 1. A imigração italiana na obra de Antônio Alcântara Machado: Brás Bexiga e Barra Funda. 2. Política e Sociedade nos anos 20 e 30 através da obra de Mário de Andrade: Contos Novos. 3. O Coronelismo através da obra de Jorge Amado: Terras do Sem Fim. 4. Sociedade e Política nos anos 50 através da obra de Rubem Fonseca: Agosto 5. A industrialização do Brasil através da obra de Chico Buarque de Holanda: Ópera do Malandro. 6. A imigração nordestina através da obra de Clarice Lispector: A Hora da Estrela. 7. O golpe militar se l964 através da obra de Stanislaw Ponte Preta: FEBEAPÁ 1- Primeiro Festival de Besteira que assola o País. As orientações iniciais foram as seguintes: resumo do enredo e análise de personagens e situações escolhidas; levantamento de dados biográficos do autor e do contexto histórico e literário de produção dos textos; interpretação dos fatos históricos representados nos textos; comparação com a narrativa historiográfica sobre o mesmo tema ou fato histórico representado literariamente. A maioria dos alunos surpreendeu-se com a capacidade, que nunca imaginaram ter, de fazer uma leitura atenta de um livro de ficção e encontrar tanta informação nova, de cunho histórico. Eles expressaram um prazer muito grande ao final das leituras. Embora o significado da leitura variasse de aluno para aluno, percebia-se que a atividade possibilitou a reflexão sobre a especificidade do discurso histórico, sobre as diferenças entre documentos históricos e discurso do historiador, e sobre o entendimento da dimensão do ato de interpretação. Parece-me que pela observação do contraste entre diferentes gêneros de discurso - falas de contemporâneos aos acontecimentos tratados, exemplificados pelos documentos trabalhados em aula; elaboração ficcional do escritor e a interpretação do historiador os alunos aguçavam e ampliavam a capacidade de leitura. A atividade dava-lhes a noção de ponto de vista, tão importante na formação tanto do historiador, quanto do professor de história e do aluno do ensino fundamental e médio. Após a apresentação dos seminários, os alunos responderam a duas questões: 1. Quais as vantagens e dificuldades do uso de textos literários como fonte historiográfica?; 2. Reflita sobra a sua experiência de leitura e elaboração dos seminários.

4 Os alunos destacaram as seguintes vantagens na atividade de ensino proposta: 1. Obtenção de uma grande quantidade de informações sobre um período histórico; 2. Conhecimento aprofundado, detalhado e concreto sobre a visão de mundo ou mentalidade de uma época; 3. Ampliação dos horizontes, gosto pela leitura, valorização da literatura; 4. Atenção despertada para a problemática da interpretação de textos; 5. Instrumento didático lúdico para o ensino de história. Os alunos destacaram também as dificuldades: 1. Necessidade de leituras complementares, para a compreensão do documento literário; 2. Exigência de atenção na leitura, pois tudo tem importância ; 3. A interpretação do texto literário é uma técnica que o historiador não domina; 4. Dificuldade de compreensão do vocabulário; 5. Dificuldade de identificação dos aspectos históricos e sociais presentes nos textos. Citaremos agora algumas situações de ensino que parecem emblemáticas das possibilidades e obstáculos inerentes a esse tipo de proposta didática. O seminário sobre o livro de Antônio Alcântara Machado foi bem realizado. Os contos têm grande poder comunicativo e colocam em cena a vida urbana paulista com personagens como Gaetaninho, Carmela, Liseta. O conto Primeiro de Maio, do livro Contos Novos de Mário de Andrade, foi interpretado na sua dimensão de representação da realidade histórica do trabalhador no período getulista. Mas os alunos ficaram envolvidos com informações obtidas em livros didáticos de literatura brasileira do ensino médio, que afirmavam serem os contos, em larga medida, autobiográficos, e isso levou-os a centrar o seminário na questão da Semana de Arte Moderna, perdendo-se os temas específicos presentes nos livros. Terras do Sem Fim, Agosto e a peça Opera do Malandro transformaram-se em seminários bem sucedidos. Os alunos sentiram-se à vontade ao relatarem as tramas e identificarem os fatos históricos inseridos nos textos. Isto se deve à natureza dos mesmos, que trabalham a matéria histórica de maneira explícita e linear, e ao tipo de registro lingüístico, próximo do coloquial e conotativo. A Hora da Estrela de Clarice Lispector transformou-se em um seminário surpreendente. Uma das alunas era de origem nordestina e apresentava dificuldade de expressão oral e escrita. No entanto, isto não foi obstáculo para que ela entendesse o conteúdo do romance: a situação de desenraizamento do imigrante nordestino. Outra aluna do grupo, mais atenta ao processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, destacou a situação de alienação do proletariado urbano. Para se compreender bem um texto literário é preciso decifrar os recursos de linguagem usados pelo escritor: os uso de metáforas, alegorias, construções de personagens e efeitos retóricos. Esses elementos são fundamentais para se perceber

5 as dimensões históricas de um texto. Por exemplo, no caso de Incidente de Antares, de Érico Veríssimo, de l973, o autor transforma o AI.n.5 na situação fantástica do mundo dos mortos, acionando os recursos de citação distanciada e da sátira política. Procurou-se desenvolver a idéia de que as obras literárias são documentos históricos e culturais, e, portanto, os autores ao escreverem estão discutindo questões do tempo presente, mesmo quando tratam na ficção de outros períodos históricos. Esperava-se que os alunos, através do levantamento das condições de produção das obras e biografias dos autores, estabelecessem as distinções entre o tempo da narrativa e o tempo da narração. As crônicas humorísticas de Stanislaw Ponte Preta foram um desafio para o aluno. Elas exercem um grande poder de sedução, mas é difícil compreender todas as referências históricas citadas. Num primeiro momento pareceu muito complicado contextualizar historicamente a produção do autor, porque, ao contrário de outros textos, assuntos do cotidiano político eram citados em profusão. Os alunos demonstraram dificuldade em reconstituir o debate político-parlamentar. O excesso e fragmentação das informações impediam a leitura. E isso, por sinal é um recurso literário utilizado pelo autor para representar o caos político. Por fim os alunos acabaram por considerar que a matéria histórica tornada ficção no livro faz parte de uma certa essência da história política do Brasil: violência política, clientelismo, delação, corrupção, burocratização e a presença dos militares. A análise documental exigiria maior estudo da primeira fase da Ditadura Militar (l964-l948). Uma possibilidade interessante é comparar o preâmbulo do Ato Institucional n. 1 e a introdução feita por Stanislaw Ponte Preta ao FEBEAPÁ 1. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no Exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical de Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, com o Poder Constituinte, se legitima a si mesma (...). (apud. DINES, Alberto (et al.). 1964, p. 401) Como o discurso oficial era recebido por setores da sociedade? Os jornalistas, engajados na luta pela democracia e pela liberdade de expressão discutiram a expressão revolução em artigos sérios e ousados, como fizeram Carlos Heitor Cony e

6 Edmundo Moniz. Stanislaw Ponte Preta, muito popular como colunista do jornal Última Hora, aproveitou o espírito gozador do carioca, e assim se expressou: É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País. Pouco depois da redentora, cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem "otoridades" sentindo a oportunidade de aparecer, já que a redentora, entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo alguns apontavam dois dedos duros, para ambas as coisas), iniciaram uma feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar. (PRETA, Stanislaw Ponte, 1996, p.23) Com esta documentação, encontramos uma outra percepção social do Golpe de 1964, apreendendo de maneira mais ampla o fenômeno histórico. Mostramos uma das variantes de resistência possível. Além disso passamos a compreender o humor político como uma forma histórica, que produz um espaço imaginado de liberdade, de suspensão dos problemas, e ao mesmo tempo, uma possibilidade de reflexão sobre aos acontecimentos, para aqueles, é claro, que compartilhassem da mesma postura ideológica. A crônica no ensino de história A crônica se presta admiravelmente ao ensino de história porque é um gênero que mantém relações com o relato historiográfico e com o trabalho de reconstituição histórica. Traz na sua formação etmológica a idéia de tempo (chronos). A crônica nasceu como uma modalidade do texto historiográfico. A crônica dos reis, os sucessos encadeados cronologicamente, era o gênero cultivado pela nobreza e dinastias dos século XV e XVI. Depois, no século XVIII, assumiu nova forma com a difusão da imprensa diária. Ai aconteceu o seu segundo nascimento, no rodapé dos jornais, tratando dos fatos diversos e, de vez em quando, adotando o tom ficcional irmãgêmea do folhetim. No Brasil tem uma longa história, com identidade própria, escrita por escritores ilustres, desde José de Alencar a Machado de Assis, iniciadores do gênero, até Rubem Braga, com seu lirismo, e Luiz Fernando Veríssimo, atualizando o estilo humorístico. Em certos momentos, como no início do século XX, os cronistas refletiam sobre as transformações históricas no espaço do jornal e, estabeleciam verdadeiros debates públicos; como foi o caso de Lima Barreto e Olavo Bilac, que

7 tinham visões diferentes, diametralmente opostas, sobre o processo de modernização do Rio de Janeiro. Machado de Assis explicou na crônica O Folhetinista, de 30 de outubro de 1859. O folhetinista é a fusão do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredado como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal. Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio. O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal: salta, esvoaça, brinca, tremula, paira espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence, até mesmo a política. (MACHADO DE ASSIS, 1957, p. 33) Por isso a crônica é gênero híbrido: mistura de reportagem e literatura. Para alguns é uma forma simples, não sedimentada, em constante mutação; repositório de vários gêneros, do drama ao lirismo, lugar de perpetuação de uma produção popular coletiva (JOLLES, André, 1976). Enfim, o cronista tem o compromisso de refletir, nos dois sentidos, o seu tempo presente: citação distanciada do tempo e avaliação do assunto escolhido. Apesar da presença incisiva da matéria histórica, a crônica é criação literária, pois o cronista busca expressar a sua subjetividade, dar uma interpretação, apresentar o seu modo particular de ver um fenômeno histórico, um aspecto da natureza ou um sentimento humano. O tom da linguagem é despretensioso, sem a solenidade da grande literatura, usualmente com as marcas da leveza e do humor. Por isso mesmo ela carrega uma função pedagógica importante: aproxima os pequenos (e grandes) leitores da literatura e dos assuntos sérios. Faz amadurecer a visão das coisas. (CANDIDO, Antonio, 1993, p. 27). Até parece que Stanislaw usou a idéia de Machado sobre o cronista-colibri, que vai saltando de folha em folha, pois recolheu uma série de cenas da vida pública dos anos 60. Com isso talvez ele quisesse aproximar os leitores dos assuntos políticos, ajudar a amadurecer a visão das coisas. E eu acredito que, quarenta anos depois, essa documentação continua cumprindo o mesmo papel. Vejamos:

8 Em João Pessoa, no dia 17 de agosto de 65, era presa, quando almoçava num restaurante local, Dona Eunice Lemos Jekiel, paraibana mas que vivera vinte e dois anos nos Estados Unidos e esquecera o português. Para soltála, houve o empenho do próprio governador Pedro Gondim. Motivo da prisão: ela estava falando inglês em público e, portanto, talvez fosse comunista. Outra vez o Deputado Eurico de Oliveira: apresentava à Câmara um projeto para a importação de um milhão de portugueses para espalhar pela selva amazônica. Dias depois lascava outro: para tornar obrigatório, em todas as solenidades onde se tocasse o Hino Nacional, o canto do mesmo pelas autoridades presentes. (...) Segundo Tia Zulmira o policial é sempre suspeito e por isto mesmo a polícia de Mato Grosso não é mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá terminou seu relatório sobre um crime político com estas palavras: A vítima foi encontrada às margens do rio Sucuriu, retalhada em quatro pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio. (PRETA, Stanislaw Ponte, 1996 pp. 32-33) Não podemos desenvolver a análise aprofundada destes trechos do FEBEAPÁ. Queremos apenas destacar que esses textos humorísticos, bem explorados e comparados com outros documentos de época, permitem compreender os sentimentos, mentalidade e questões políticas dos anos 60. Questões metodológicas: 1. A literatura permite conhecer os desejos não realizados, os conflitos e tensões sociais. Por isso a escolha deve ser estratégica. Muitas vezes pode apresentar a história a contrapelo, isto é, trazer para o estudo grupos sociais sobre os quais não temos outra documentação. Por exemplo, no caso de Hemingway, no livro Por quem os sinos dobram, o autor desejava contar a história dos republicanos, os vencidos da guerra civil: Sim, eu queria escrever essas cenas, a história que nós fizemos, não do que os fascistas nos fizeram. (GAGNEBIN, Jeanne Marie, 1982, pp. 67 e 68). 2. Assim, os documentos literários se aproximam da história oral, pois é possível apreender os testemunhos e as opiniões de sujeitos e grupos

9 sociais. Ainda citando Heminguay: Não existe imaginação pura em literatura. Ninguém extrai idéias, conceitos e caracteres do nada. Meus próprios romances podem ser considerados biográficos, num certo sentido, pois longe de ser pura ficção, eles propanam de uma experiência vivida.. (apud. GOMES, Eustáquio, 1982, p. 54) 3. Diferentemente da narrativa histórica estruturalista, ou da narrativa didática, que, muitas vezes, trabalha com seres genéricos o operário, a classe dominante, os burgueses -, a literatura constrói, a partir do conceito de verossimilhança, personagens com identidade, profundidade, memória, ações, como se fossem de carne e osso. 4. Os romances e crônicas constituem a memória social. Eles marcam uma imagem colorida dos acontecimentos, ajudam a criar e reproduzir interpretações. A literatura, como parte das estruturas mentais, transforma-se, portanto, em referência para a constituição do presente. São de Georges Duby as palavras: Com efeito, para compreender a ordenação das sociedades humanas e para discernir as forças que as fazem evoluir, é importante dedicar igual atenção aos fenômenos mentais, cuja intervenção incontestável é tão determinante quando a dos fenômenos econômicos e demográficos. Pois não é em função de sua condição verdadeira, mas da imagem que constróem e que nunca fornece o reflexo fiel, que os homens pautam sua conduta. Eles se esforçam para conciliá-la com modelos de comportamento que são produto de uma cultura e que mais ou menos se ajustam no decorrer da história às realidades sociais. (DUBY, Georges. 1976, pp. 130-131). 5. Para finalizar, é importante deixar claro que a inserção de documentos literários no ensino de história é tarefa dificílima. Entretanto, tem sentido porque estes documentos são um dos materiais de que é feita a história e a historiografia. O trabalho de análise tem-se mostrado muito complexo, com muitos fios a serem tecidos. Mas, mesmo que alguns nós não sejam desatados, ou alguns fios fiquem soltos, a experiência de ler romances ou crônicas nas aulas de história nunca mais é esquecida.

10 Bibliografia 1. Documentos: Romances, Crônicas, Contos e Dramaturgia ANDRADE, Mário. Primeiro de Maio. In.. Contos Novos. São Paulo: Martins, 1975. AMADO, Jorge. Terras do Sem Fim. Rio de Janeiro: Record, 1985. AZEVEDO. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1975. BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Edições de Ouro, s.d. FONSECA. Rubem. Agosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. HOLANDA, Chico Buarque de. Ópera do Malandro. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. MACHADO, António de Alcântara. Brás Bexida e Barra Funda. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1982. (ed. fac-similar) PRETA, Stanislaw Ponte. FEBEAPÁ 1 (1 º Festival de Besteira que Assola o País). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. VERÍSSIMO, Érico. Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. 2. Bibliografia: História e Literatura. CANDIDO, A. A vida ao rés-do-chão. In.. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. DINES, Alberto (et al.). Os idos de março e a queda de abril. Rio de Janeiro: Ed. José Álvaro., 1964. DUBY, G. História social e ideologia das sociedades. In. LE GOFF, J.; NORA, P. (orgs.) História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1982. GOMES, Eustaquio. Ernest Hemingway. São Paulo: Brasiliense, 1982 JOLLES, A. Formas Simples: Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Cultrix, 1976. MACHADO DE ASSIS, O Folhetinista. In.. Crônicas (l859-l863). São Paulo: W.M. Jackson, 1957.