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Fernando Giestas O DIA DEPOIS DA NOITE e (têm entre si uma porta de madeira) (está encharcada, deitada numa cama, vestida e calçada debaixo dos cobertores; tem uma pedra numa mão e um guarda- -chuva aberto sobre a cabeça noutra; pinga água em cima do guarda-chuva) (está encharcado, de pé, de costas sobre uma porta de madeira) Cai uma chuva de pedras próximo de (sustém a respiração) (permanece em silêncio e indiferente) (começa a respirar aos bocadinhos pouco depois de terminada a chuva de pedras) Cai nova chuva de pedras ainda mais próximo de 33

(sustém a respiração) (permanece em silêncio e indiferente) (começa a respirar aos bocadinhos pouco depois de terminada a chuva de pedras) (aproxima-se da porta, sem sair da cama; escuta) Silêncio O dia já acabou, não já? Já, já ouço respirar a noite. (imita a respiração de ) O dia foi longo. Eu já não aguento dias assim com tantas horas. Dias assim com tantas horas imagino um caminho de alcatrão quente, os meus pés nus a caminhar no alcatrão quente e eu a tentar olhar para o fim do caminho e não há fim do caminho. Quando acordo e vou à janela e não vejo o fim do dia Eu estou em casa, finalmente, pronta para passar toda a noite acordada. Finalmente. 34

Hoje cheguei a casa no tempo certo. Depois que seja noite eu não entro em casa. Fica muito escuro. É muito mais noite dentro de casa do que fora de casa. Hoje, eu consegui chegar aqui antes que fosse muito escuro dentro de casa. Abri a porta, entrei, fechei a porta, encostei-me à porta, sustive a respiração, (deixa de respirar) porque ainda não era muito escuro mas nunca se sabe. Não respirei, não respirei, não respirei e... quase morri. (volta a respirar) Voltei a respirar aos bocadinhos. Deitei-me sobre a porta, os pés no chão, as costas e a cabeça encostadas à madeira, e voltei a expirar o ar que inspirava. Os meus pés empurraram o meu corpo pesado, ainda moribundo, para a frente. Empurraram, empurraram, empurraram e 35

(faz rodar o puxador da porta) (põe-se de pé, na cama, com o guarda-chuva sobre a cabeça; fica paralisada) Escuro Fim de escuro (está encharcada, de pé, de costas sobre a porta de madeira; continua com o guarda-chuva numa mão, aberto sobre a cabeça) (está encharcado, deitado na cama, vestido e calçado debaixo dos cobertores; tem uma pedra na mão; pinga em cima da cama) Cai uma chuva de pedras em cima do guarda-chuva de (respira como se tivesse estado sem respirar e voltasse a respirar) Uma volta à chave, duas voltas à chave e deitei-me de pé sobre a porta. Quase morri. Fechar a porta à chave demora muito tempo para quem deixa de respirar durante esse tempo todo. Não sei se percebi o que acabei de dizer: Fechar a porta à chave demora muito tempo para quem deixa 36

de respirar durante esse tempo todo. Percebeu o que eu acabei de dizer? Deitei-me assim vestido e calçado debaixo dos cobertores e aqui tenho estado a noite toda: os olhos arregalados e uma pedra na mão. Não consigo adormecer em minha casa. É demasiada noite. Não consigo fechar os olhos. Uma vez fechei os olhos, debaixo dos cobertores, e quando voltei a abri-los a porta estava toda aberta. Alguém abriu a porta. A noite toda a entrar porta adentro Eu preparei a mão para atirar a pedra. Deixei completamente de respirar. Naquele momento eu estava morto. Não respirei o resto da noite toda. Se estivesse debaixo de água eu tinha morrido. A sorte foi estar aqui, debaixo dos cobertores. Só voltei a respirar quando ouvi o sol a nascer. A porta aberta durante a noite toda. Por causa disso acho que me constipei. Comece a falar para eu me calar. Escuro Fim do escuro A porta está aberta 37

(está escondida atrás da porta aberta, não visível para o público) (aproxima-se da porta, surpreendido por encontrá-la aberta; avança com uma pedra na mão; entra, fecha a porta à chave, com duas voltas, e deita-se de pé sobre a madeira; deixa de respirar, arrasta-se até à cama e deita-se debaixo dos cobertores) (senta-se de costas apoiadas sobre a porta; parece morta; tem um guarda-chuva numa mão, aberto sobre a cabeça) Empresta-me o teu guarda-chuva. Não pára de chover. 40 dias a chover assim. É um mar de água doce, às pinguinhas. Tem morrido para aí gente que nunca mais acaba. E eu também vou morrer afogado. Esta água vai entrar-me pelo corpo todo e vai alagar-me. Quando eu estiver todo cheiinho de água por dentro, o que é que eu faço? Nesse dia eu morri. (pausa; aproxima-se da porta, mantendo-se em cima da cama) Emprestas-me o teu guarda-chuva? Posso tratar-te por tu? Respira mais alto para eu ouvir-te. Estás a ouvir? Respira mais alto. 38

(exasperado, levanta-se de cima da cama e atira a pedra contra a porta, com estrondo) (desperta da imobilidade) (escuta) Isso. Isso. Um pouco mais alto. Inspira. (inspira) Expira. (expira) Inspira. (expira) Não, Respira bem. Expira depois de inspirar. Ouviste? 39

Expira depois de inspirar. Nunca mais acaba a noite. Escuro Fim escuro A porta está aberta (está atrás da porta aberta, não visível para o público) (está debaixo dos cobertores, sem respirar, de olhos arregalados e com a pedra na mão) Escuro Fim escuro A porta está fechada (está encostado à porta; cai-lhe uma chuva de pedras sobre a cabeça; cai sobre si próprio, cedendo à força da chuva de pedras) (está debaixo dos cobertores; senta-se na cama; escuta) Já é dia. 40