FIDELIDADE E GRATIDÃO 1

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simm1 2/6/04 18:43 Página 31 FIDELIDADE E GRATIDÃO 1 A fidelidade pertence a um dos modos de comportamento muito gerais que podem tornar-se importantes em todas as interacções 2 entre as pessoas por muito diferentes que elas possam ser, tanto material como sociologicamente. Nas sobreordenações, nas subordinações como nas coordenações; nas hostilidades colectivas contra uma terceira parte como nas amizades colectivas; nas famílias como em relação ao Estado; no amor como na relação com o nosso círculo profissional a fidelidade e o seu oposto tornaram-se importantes em todas estas estruturas, e examinada puramente nas suas constelações sociológicas. Mas a fidelidade é também significativa como uma forma sociológica de segunda ordem, como portadora de relações que já existem e perduram. Na sua forma geral, a relação entre a fidelidade e as formas sociológicas que ela suporta é, num certo sentido, como a relação entre estas formas e os conteúdos materiais e os motivos da existência social. Sem o fenómeno a que chamamos fidelidade a sociedade não poderia simplesmente existir, por um qualquer período de tempo, tal como existe. Os elementos que a mantêm viva o interesse próprio dos seus membros, a sugestão, a coerção, o idealismo, o hábito mecânico e o sentimento do dever, o amor, a inércia não poderiam salvá-la da desintegração se

simm1 2/6/04 18:43 Página 32 32 Georg Simmel não fossem todos eles complementados pela fidelidade. Todavia, a sua medida e o seu significado não podem ser determinados neste caso, pois a fidelidade, no seu efeito prático, substitui sempre um outro sentimento cujos vestígios dificilmente desaparecem por completo. A contribuição deste sentimento está inextricavelmente entretecida com o da própria fidelidade, num resultado composto que resiste à análise quantitativa. Devido ao carácter complementar da fidelidade, uma expressão como, por exemplo, «amor fiel» é algo enganadora. Quando numa relação entre duas pessoas o amor subsiste, para que precisa então da fidelidade? Se os indivíduos não estiverem, desde o primeiro momento, ligados pela fidelidade, mas sim pela primária e genuína predisposição psicológica do amor, porque deverá a fidelidade, como guardiã da relação, ser introduzida dez anos mais tarde se, por definição, o amor permanece idêntico mesmo então, e ainda detém a força do seu próprio poder de união inicial? Se o uso linguístico designa por amor fiel 3 o que é apenas amor duradouro 4 é claro que não existe qualquer objecção, pois não é das palavras que aqui se trata; o que é importante é a existência de um estado psíquico e sociológico específico, que assegura a continuação de uma relação para além das forças que primeiro lhe deram origem; um estado que sobrevive a essas forças com o mesmo efeito sintetizador que elas próprias tinham originalmente; e a que não podemos deixar de chamar fidelidade, apesar de esta expressão também ter um sentido muito diferente, nomeadamente o da perseverança destas próprias forças. Poderíamos chamar à fidelidade a perseverança da alma, pois ela mantém- -na no caminho que encetou, mesmo depois de a ocasião original que a ele conduzira ter deixado de existir. É evidente que falo aqui sempre e apenas da fidelidade como uma pura predisposição psicológica que actua de dentro para fora e não como um comportamento puramente externo como a fidelidade

simm1 2/6/04 18:43 Página 33 Fidelidade e Gratidão e Outros Textos 33 marital no seu sentido jurídico, por exemplo, que não se refere a nada de positivo, mas significa apenas a não ocorrência de infidelidade. É um facto da maior importância sociológica que inúmeras relações preservem intocada a sua estrutura sociológica, mesmo depois de o sentimento ou de a ocasião prática, que originalmente as criou, ter terminado. O carácter indesmentível da afirmação segundo a qual a destruição é mais fácil que a construção não se aplica a certas relações humanas, embora seja válido para as restantes. Sem dúvida que o surgimento de uma relação requer um certo número de condições positivas e negativas e a ausência de apenas uma delas pode, de imediato, impedir o seu desenvolvimento. Mas, uma vez começada, ela não é de maneira nenhuma sempre destruída pelo subsequente desaparecimento da condição que, antes, não poderia ter ultrapassado. Por exemplo, uma relação erótica originada pela beleza física pode muito bem sobreviver ao declínio dessa beleza e à sua transformação em fealdade. O que foi dito sobre os Estados que eles se mantêm apenas pelos meios pelos quais se fundaram é apenas uma verdade muito incompleta, e nada menos do que um princípio universal da sociação 5 em geral. A ligação sociológica, qualquer que seja a sua origem, desenvolve uma autopreservação e uma existência autónoma da sua forma que são independentes dos seus motivos iniciais de ligação. Sem esta capacidade de perseverança das sociações existentes, a sociedade como um todo entraria constantemente em colapso ou modificar-se-ia de forma inimaginável. A preservação das unidades sociais é psicologicamente sustentada por múltiplos factores, de índole intelectual e prática, positiva e negativa. A fidelidade é o factor afectivo 6 entre eles, ou melhor, é ela própria sob a forma de sentimento, na sua projecção sobre o plano do sentimento. A qualidade deste sentimento será aqui avaliada apenas na realidade psíquica, quer

simm1 2/6/04 18:43 Página 34 34 Georg Simmel a aceitemos quer não como uma definição adequada da ideia de fidelidade. A cada relação corresponde um sentimento, um interesse, um impulso específico que lhe são dirigidos pelos indivíduos que dela participam. Se a relação perdurar, desenvolve-se um sentimento particular em interacção com esta continuação ou melhor, muitas vezes, embora não sempre, os estados psíquicos originais mudam para uma forma particular a que chamamos fidelidade. É como que um reservatório psicológico, um molde geral ou unitário para os mais variados interesses, afectos e motivos para a existência de laços recíprocos. Apesar da grande variedade da sua origem, os estados psíquicos originais adquirem, sob a forma da fidelidade, uma certa semelhança, a qual, compreensivelmente, favorece o carácter duradouro da própria fidelidade. Por outras palavras, a questão aqui não diz respeito ao chamado amor fiel 7, à afeição fiel 8, etc., que se referem a um certo modo ou quantidade temporal de um determinado sentimento, de resto já definido; o que quero dizer é que a própria fidelidade é um estado psíquico específico, que é dirigido para a continuação da relação enquanto tal, independentemente de quaisquer elementos particulares de natureza afectiva ou volitiva que sustenham o conteúdo dessa relação. Este estado psíquico do indivíduo é uma das condições apriorísticas da sociedade que, por si sós, são as que tornam a sociedade possível (pelo menos tal como nós a conhecemos), apesar das extraordinárias diferenças de grau no qual este estado psíquico existe. Talvez nunca atinja o ponto zero: a pessoa totalmente infiel essa pessoa para quem é impossível transformar sentimentos que produzem relações no sentimento designado para preservar a relação é um fenómeno impensável. Poderíamos, assim, designar a fidelidade como uma conclusão lógica indutiva do sentimento. Neste ou naquele momento existiu uma relação; e o sentimento em analogia formal com a indução teórica retira a seguinte conclusão:

simm1 2/6/04 18:43 Página 35 Fidelidade e Gratidão e Outros Textos 35 a relação também existe num momento posterior. E, tal como na indução intelectual, o momento posterior já não precisa de ser confirmado como um facto, por assim dizer, pois a indução significa precisamente que podemos passar sem esta confirmação, e então aqui, muitas vezes, o momento posterior já não apresenta um verdadeiro sentimento ou interesse, mas substitui-os apenas por aquele estado indutivamente desenvolvido a que se chama fidelidade. Ao considerarmos um grande número de relações e ligações entre pessoas, devemos contar com o facto (que pertence aos fundamentos sociológicos) de que a mera convivência 9 habitual, a mera existência da relação durante um certo período de tempo, produz esta indução por sentimento. Isto amplia o conceito de fidelidade acrescentando-lhe um elemento muito importante: o estado sociológico externo de convivência apropria-se dos sentimentos particulares que lhe correspondem propriamente, mesmo quando não justificam o começo da relação. Num certo sentido, o processo da fidelidade exerce aqui um efeito retroactivo. Os motivos psíquicos que produziram a relação dão ao sentimento específico de fidelidade espaço para que esta relação se desenvolva, ou transformam-se a si próprios neste sentimento. Embora a relação possa ter surgido por razões externas, ou pelo menos por razões íntimas que são extrínsecas a este significado, ela desenvolve, ainda assim, a sua própria fidelidade, a qual, por sua vez, dá origem a estados sentimentais mais profundos e mais adequados: a relação é legitimada, por assim dizer, per subsequens matrimonium animarum 10. A sabedoria banal que muitas vezes se ouve relativamente a casamentos celebrados por razões convencionais ou outras de natureza puramente externa o amor virá depois, durante o casamento nem sempre, de facto, está errada. Uma vez que a existência da relação tenha encontrado o seu correlato psicológico, a fidelidade, então a esta seguem-se, finalmente,