ANÁLISE ACERCA DA CLASSIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS DOS AGRICULTORES FAMILIARES COMO VERBAS ALIMENTARES EM SEDE DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE EMPRESA Liane Tabarelli Zavascki Trata-se de análise jurídica sobre a classificação dos créditos em sede de recuperação judicial de empresa, a partir das disposições contidas na Lei nº 11.101 de 2005, e, em especial, sobre a possibilidade dos créditos dos agricultores familiares serem reconhecidos como alimentares. Para tanto, o presente estudo está estruturado em duas partes. A primeira parte analisa a ordem da classificação dos créditos em sede de recuperação judicial, bem como no âmbito de processo falimentar. Em um segundo momento, apresentam-se argumentos jurídicos para obtenção de reconhecimento dos créditos de agricultores familiares como alimentares no bojo de ações de recuperação judicial. I - DA ORDEM DA CLASSIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS De início, registre-se que, na recuperação judicial, a ordem de classificação dos créditos será estabelecida no plano de recuperação da empresa, garantida a prioridade dos créditos trabalhistas até determinado limite. Se o plano não a definir, a ordem a ser adotada é a prevista na Lei nº 11.101/2005 para a falência.
Consoante a Lei nº 11.101/2005 (a qual disciplina a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária), têm preferência no pagamento os credores trabalhistas (art. 83, I, LF), os que têm garantia real (uma hipoteca garantindo a dívida, por exemplo) (art. 83, II, LF), os credores tributários (art. 83, III, LF), os credores com privilégio especial (art. 83, IV, LF), os credores com privilégio geral (art. 83, V, LF) para, posteriormente, se houver ainda valores, os credores quirografários (art. 83, VI, LF) receberem. Ainda, se não houver valores suficientes para quitar as dívidas de todos do mesmo grupo - credores quirografários, por exemplo - haverá rateio. Esse rateio será proporcional ao valor dos respectivos créditos, se o produto não bastar para o pagamento integral de todos. No caso específico dos agricultores familiares produtores de leite, a prática comercial revela que, em sua imensa maioria, tais agricultores somente possuem a nota de remessa do produto, não tendo firmado qualquer contrato com a empresa adquirente do leite. Dessa forma, em caso de recuperação judicial (antiga concordata preventiva) do empresário, uma interpretação literal e rigorosa ao se elaborar o plano de recuperação pode conduzir ao reconhecimento dos créditos dos agricultores familiares junto a tais empresas como quirografários, não possuindo, pois, qualquer prioridade no recebimento, eis que não gozam de nenhuma garantia especial. II - DO PEDIDO DE CLASSIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS COMO ALIMENTARES Para afastar o reconhecimento dos créditos que os agricultores familiares possuem junto às empresas recuperandas como quirografários, podese sustentar que tais valores devem ser considerados créditos alimentares, já
que essas verbas são fundamentais para a subsistência dos próprios agricultores credores bem como de suas famílias. Assim, o reconhecimento de tais créditos como alimentares implica assegurar prioridade na ordem do pagamento, tal como a prevista para os créditos oriundos de relações de trabalho em caso de falência (art. 83, I, LF). É imprescindível, nesse passo, que se destaque a distinção entre agricultura familiar e agronegócio a fim de sublinhar que os créditos devidos aos agricultores familiares são vitais para seus sustentos e de seus grupos familiares. Para tanto, importante mencionar a definição legal de agricultor familiar, a partir da disciplina contida na Lei nº 11.326 de 2006 (a qual estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais), em especial em seu art. 3º, in verbis: Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família. [grifou-se]. Como antes mencionado, na recuperação judicial, os credores a ela sujeitos serão pagos de acordo com o Plano de Recuperação Judicial da empresa recuperanda. Desse modo, se a própria legislação dispensa tratamento diferenciado para os agricultores familiares, em virtude das peculiaridades da agricultura familiar e das atividades de subsistência do grupo familiar desenvolvidas no seu bojo, com a mesma razão deve o Plano de Recuperação da empresa recuperanda ser sensível a tais particularidades, reconhecendo
como alimentares os créditos pertencentes aos agricultores familiares e conferindo aos mesmos a mesma distinção conferida aos créditos trabalhistas na falência. Observe-se que tal reconhecimento tem sido feito em se tratando de honorários advocatícios. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, na oportunidade em que julgou o Recurso Especial nº 1.377.764/MS, decidiu pela sujeição dos honorários de advogado aos efeitos da recuperação judicial, assim como os equiparou ao crédito trabalhista. Neste julgamento citou-se a decisão datada de 27/03/2007 proferida no bojo do Recurso Especial nº 793.245/MG sob a relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros. Em seu voto, o Ministro Relator sublinha, do mesmo modo que já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, que: Os honorários são simplesmente os frutos do trabalho do advogado. Os honorários são a remuneração do advogado e - por isso - sua fonte de alimentos. Não vejo como se possa negar essa realidade. Por isso - e a experiência de advogado militante me outorga autoridade para dizê-lo - os honorários advocatícios têm natureza alimentar e merecem privilégio similar aos créditos trabalhistas. De fato, assim como o salário está para o empregado e os vencimentos para servidores públicos, os honorários são a fonte alimentar dos causídicos. Tratálos diferentemente é agredir o cânone constitucional da igualdade. Conforta-me saber que, nesse entendimento, estamos na boa companhia da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, que, em recente julgado, reformou acórdão desta Corte (RMS 17.536 DELGADO, Relator para acórdão Ministro FUX) e definiu a natureza alimentícia dos honorários de advogado, livrando-os da dolorosa fila dos precatórios comuns (cf. RE 470.407 MARCO AURÉLIO no Informativo do STF n. 426 de 17 de maio de 2006). Louvado nesses argumentos, empresto ao Art. 24 do EOAB, interpretação coerente com o princípio da proporcionalidade. Entendo que o termo "crédito privilegiado" transporta acepção que se harmonize com natureza laboral-alimentar - dos honorários como fruto do labor advocatício destinado às necessidades alimentares. Vale dizer: os honorários constituem crédito privilegiado, que deve ser interpretado em harmonia com sua natureza trabalhista e alimentar (EOAB, Art. 24). [grifou-se].
No mesmo sentido, há jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS). Veja-se: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. FALÊNCIA E CONCORDATA. HABILITAÇÃO EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ATRIBUÍDOS EFEITOS INFRINGENTES AO ARESTO EMBARGADO. H O N O R Á R I O S ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR. PRIVILÉGIO SIMILAR AOS CRÉDITOS TRABALHISTAS. Atribuídos efeitos infringentes para aclarar o aresto embargado, declarando que os honorários advocatícios se constituem em fonte de alimentos e de adequada sobrevivência ao advogado e seus familiares, e, ao referido crédito deve ser concedido privilégio no momento de sua habilitação em processo falimentar. Na medida em que eles possuem natureza alimentar, devem receber o mesmo privilégio dado aos créditos de natureza trabalhista. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS. (Embargos de Declaração Nº 70048476428, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Romeu Marques Ribeiro Filho, Julgado em 30/05/2012). [grifou-se]. AGRAVO DE INSTRUMENTO. FALÊNCIA. VERBA HONORÁRIA. SUCUMBÊNCIA. CRÉDITO DE CARÁTER ALIMENTAR. PRIVILÉGIO SIMILAR AOS CRÉDITOS TRABALHISTAS. CABIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Fundamentado no art. 527, II, do CPC, 2ª parte, admissível o recebimento do recurso como Agravo de Instrumento. POSSIBILIDADE DE DECISÃO MONOCRÁTICA. Com base no art. 557, 1º-A, do CPC, o R e l a t o r e s t á a u t o r i z a d o a d a r p r o v i m e n t o monocraticamente ao recurso. Primazia da ratio essendi. CRÉDITO DECORRENTE DE VERBA HONORÁRIA. SUCUMBÊNCIA. CARÁTER ALIMENTAR. PRIVILÉGIO S I M I L A R A O S C R É D I T O S T R A B A L H I S TA S. Independente do fato gerador (contratual ou sucumbencial), os honorários advocatícios possuem caráter alimentar, na linha dos atuais precedentes do STF e do STJ. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento Nº 70034256768, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Julgado em 14/01/2010). [grifou-se]. De igual modo, há quem advirta que [...]Já cheguei a participar de mais de uma assembleia
onde constavam inúmeros pequenos agricultores que tinham entregado toda a sua safra para a sociedade empresarial devedora que pleiteava recuperação. Se os advogados merecem tratamento diferenciado, sujeitos como esses também merecem. [grifou-se]. Assim, tal como os honorários de advogado, os créditos dos agricultores familiares constituem fonte de alimentos e de adequada sobrevivência aos agricultores e seus familiares. Portanto, tendo em vista a natureza alimentar, devem tais verbas receber o mesmo privilégio dado aos créditos de natureza trabalhista. Frise-se também que o reconhecimento dos créditos de agricultores familiares sujeitos aos efeitos da recuperação judicial de empresa que lhes deve como alimentares e, em razão disso, do direito de gozarem do privilégio conferido aos credores trabalhistas, é condição sine qua non para a manutenção da própria atividade desses agricultores. Isso porque é a partir dos valores obtidos com a comercialização de sua produção que os agricultores familiares, além de garantirem seu sustento e dos familiares, conseguem recursos para dar continuidade as suas atividades produtivas, bem como para efetuarem eventuais investimentos necessários para o seguimento dos trabalhos realizados. Ademais, tal reconhecimento importa a garantia de segurança alimentar para a sociedade como um todo, incluindo-se aí os demais credores da causa, os integrantes da recuperanda, o administrador judicial, bem como o juiz do processo. Por fim, não há que se olvidar que, dentre os princípios que regem a Lei nº 11.101/2005, além de comandos no sentido da preservação da empresa e estímulo à atividade econômica, o art. 47 da lei estabelece o princípio da função social da empresa:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômicofinanceira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. [grifou-se]. À vista disso, para fins de manutenção da atividade produtiva da recuperanda, bem como de seus postos de emprego, fundamental conceder um tratamento distinto no que se refere ao pagamento dos créditos dos agricultores familiares, já que são eles aliados indispensáveis para assegurar a recuperação da empresa. Nesse espectro, faz-se imprescindível a adoção de medidas prestigiando os credores que otimizam o processo de recuperação, tal como os agricultores familiares fornecedores de matéria-prima, eis que são parceiros essenciais para que a empresa tenha condições de manter suas atividades. Mais um robusto motivo, não bastassem os acima assinalados, que impõe o reconhecimento dos créditos dos agricultores familiares com o mesmo privilégio outorgado aos créditos de natureza laboral-alimentar. Advogada, assessora jurídica da FETAG/RS, doutora em Direito e professora da PUC/ RS. Ex-bolsista da CAPES de Estágio Doutoral (Doutorado Sanduíche) na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal. Instrutora do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS - Triênio 2013-2015. Integrante da CEDAA - Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio OAB/ RS - Triênio 2013-2015. Membro do corpo editorial da Revista Eletrônica Artigos Jurídicos e Direito em Debate.
Isso porque "no direito brasileiro, abstraída a hipótese de desistência, não há terceira alternativa: quem requer o benefício da recuperação judicial ou o obtém ou terá sua falência decretada." COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falência e Recuperação de empresas. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43. seguinte ordem: I - os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho; [...]." seguinte ordem: [...] II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado; [...]." seguinte ordem: [...] III - créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias; [...]." seguinte ordem: [...] IV - créditos com privilégio especial, a saber: a) os previstos no art. 964 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002; b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei; c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia; [...]." seguinte ordem: [...] V - créditos com privilégio geral, a saber: a) os previstos no art. 965 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002; b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei; c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei; [...]." seguinte ordem: [...] VI - créditos quirografários, a saber: a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo; b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento; c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo; [...]." Trata-se de respeito ao mandamento constitucional de isonomia, garantia insculpida no caput do art. 5º da Carta Magna de 1988. Consulte-se, ademais, os seguintes precedentes: Apelação Cível nº 70047085089, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Romeu Marques Ribeiro Filho, Julgado em 11/04/2012; e, Apelação Cível nº 70036436889, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Romeu Marques Ribeiro Filho, Julgado em 18/05/2011. RICCI, Henrique Cavalheiro. Recuperação judicial - Honorário advocatício é crédito com privilégio geral. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-set-12/henrique-riccihonorario-advocaticio-credito-privilegio-geral Acesso em: 22 set. 2014. Veja-se que a agricultura familiar tem ganhado cada vez mais a atenção dos governos, da mídia e do público. Não é à toa. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (ONU-FAO) estabeleceu 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. No Brasil, o segmento agrícola tem semeado profissionalismo, cultivado tecnologias e políticas públicas, colhido oportunidades e comercializado saúde. [...], ela representa cerca de 12 milhões de pessoas por todo o país, ocupa 74% da mão de obra no campo, o que a torna responsável por 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros, atingindo atualmente 33% do PIB agropecuário do País. [grifou-se]. Disponível em: http://www.fetaesp.org.br/fetaesp/index.php/ noticias?start=6 Acesso em: 16 set. 2014.