CONSEQUÊNCIAS DA DESCLASSIFICAÇÃO EM PLENÁRIO DE UM CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PARA UM DELITO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. Vamos imaginar um processo em que o réu tenha sido denunciado e pronunciado como incurso no artigo 121, caput, combinado com o artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, e que, quando submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri, os jurados tenham negado o animus necandi, operando-se, assim, a chamada desclassificação da imputação atribuída a ele para delito de outra natureza. Imaginemos, ainda, que essa soberana decisão do Conselho de Sentença venha a ser alcançada pelo trânsito em julgado e que em face das circunstâncias do fato concreto o magistrado formou sua convicção no sentido de que o crime remanescente é o de lesão corporal dolosa de natureza leve (CP, art. 129, caput), ou seja, uma infração penal de menor potencial ofensivo. Por meio deste trabalho fomentarei o debate sobre qual deve ser a providência a ser adotada pelo magistrado oficiante no Tribunal do Júri em face dessa hipótese. Deve ele proferir sentença desde logo? Deve ele adotar as medidas processuais previstas na Lei 9.099/95? Nessa segunda hipótese, deverá o Ministério Público, naquele ato, formular proposta de transação penal? Estamos diante de um assunto pouco discutido pela doutrina ou pela jurisprudência, mas que reclama uma abordagem mais exauriente. Pois bem. A primeira conclusão que devemos levar em consideração é a de que, como estamos diante de um delito de menor potencial ofensivo, a Constituição Federal, em seu artigo 98, inciso I, reservou uma previsão especial segundo a qual ao Juizado Especial Criminal competirá o processo e julgamento dessa espécie de infração penal, adotando-se os procedimentos oral e sumaríssimo. 1
Por outro lado, a competência do Tribunal do Júri também é constitucionalmente prevista. De fato, consoante estabelece o artigo 5º., inciso XXXVIII, alínea d da Carta Maior, ao Tribunal Popular compete o julgamento dos casos de crimes dolosos contra a vida. Voltando ao problema proposto, entendo, respeitando os abalizados entendimentos em sentido oposto, que o magistrado oficiante no Tribunal do Júri, por não dispor de competência ratione materie, deverá remeter o processo para o chamado JECRIM, onde deverão ser adotadas as providências legalmente previstas para os casos de delitos de menor potencial ofensivo. É certo que o artigo 492, 1º., do Código de Processo Penal estabelece que caberá ao juiz presidente do Tribunal do Júri proferir sentença, aplicando-se, quando o delito resultante da desclassificação reconhecida pelos jurados for considerada pela lei como infração de menor potencial ofensivo, o disposto nos artigos 69 e seguintes da Lei 9.099/95. Assim, se adotarmos o quanto estabelecido no artigo 492, 1º., do Código de Processo Penal, deverá o magistrado do Tribunal do Júri proferir sentença após colhido o veredicto desclassificatório, aplicando-se, se o caso, os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, ambos previstos na Lei 9.099/95. Ocorre que, em meu sentir, essa previsão, data venia, é manifestamente inconstitucional. Com efeito, como dito, o artigo 98, inciso I da Constituição Federal estabelece que na União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados deverá ser criado o JECRIM para analisar os processos que envolvam as infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; e o artigo 5º., inciso XXXVIII, alínea d da Lei Maior prevê que ao Tribunal do Júri competem os processos que envolvam os crimes dolosos contra a vida. 2
Quando os jurados desclassificaram a conduta atribuída ao acusado, afirmando que ele não praticou um crime doloso contra a vida e sendo a lesão corporal dolosa de natureza leve a infração remanescente, reconheceram que ele perpetrou um delito de menor potencial ofensivo, fato que, em meu pensar, faz cessar a competência do juiz oficiante no Tribunal do Júri, exigindo, então, a atuação do JECRIM. É que a lesão corporal dolosa de natureza leve é um delito de menor potencial ofensivo, cabendo, como constitucionalmente previsto, ao JECRIM a apreciação dos casos que envolvam fatos deste jaez. Diferentemente do que ocorre quando os jurados promovem a desclassificação de uma acusação para delito que não tenha essa natureza, quanto às infrações de menor potencial ofensivo há um diferencial: o Juízo competente para sua análise é previsto pela Constituição Federal. Em sentido contrário, ad exemplum, tomemos um caso em que os jurados digam que um acusado praticou o delito de lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129, 3º.) e não um homicídio consumado. Nesse caso, o juiz presidente do Tribunal do Júri poderá e deverá se manifestar, porquanto não há previsão na Constituição Federal do Juízo competente para apreciar esse tipo de caso. Não é o caso, contudo, dos processos envolvendo as infrações de menor potencial ofensivo, uma vez que repousa no artigo 98, inciso I, da Lei Maior essa regra especial de competência, impondo a atuação do JECRIM. E, sendo verdade que uma lei não pode maltratar o texto constitucional, o Código de Processo Penal não pode afastar a atuação do JECRIM nas hipóteses de delitos de menor potencial ofensivo, uma vez que, como mencionado, essa regra de competência tem assento na Lei Suprema. 3
Assim, no momento em que se constatar em um processo a presença de uma infração penal de menor potencial ofensivo, ainda que isso ocorra após atuação dos senhores jurados, os autos deverão ser imediatamente remetidos ao JECRIM, pena de ser desrespeitada a mencionada regra constitucional. vejamos. Esse é o entendimento da rara doutrina que arrosta o presente assunto. Senão Guilherme Madeira Dezem e Gustavo Octaviano Diniz Junqueira 1 assim se manifestam sobre o assunto: Caso haja desclassificação em Plenário, cabe ao Juiz Presidente proferir sentença. Se da desclassificação resultar infração de menor potencial ofensivo, deve-se proceder de acordo com o artigo 69 e seguintes da Lei nº 9099/95. Nessa situação, por se tratar de hipótese de competência absoluta, entendemos que não há que se falar em aplicação do artigo 60, parágrafo único, que cuida tão-somente da reunião de processos por conexão ou continência. Assim, deve o magistrado determinar a redistribuição do feito para a vara do Juizado Especial Criminal, para nela prosseguir de acordo com a sistemática própria Guilherme de Souza Nucci, da mesma forma, tem esse entendimento 2 : [...] A competência do JECRIM advém da Constituição Federal. Inexiste viabilidade jurídica para a legislação ordinária alterá-la. Portanto, se há ou não conexão ou continência com outra infração penal comum (entendida como sendo a que não é de menor potencial ofensivo), 1 Nova lei do procedimento do júri comentada: atualizado de acordo com as Leis 11.689, 11.690/08 e 11.719/08. Campinas: Millennium Editora, 2008, página 145) 2 Código de Processo Penal Comentado. 13ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2.014. página 982. 4
pouca importa. O delito comum deve ser julgado pela Vara igualmente comum. No presente cenário, o crime doloso contra a vida fica circunscrito ao Júri; infrações de menor potencial ofensivo a ele conexas devem seguir ao JECRIM. Se houver desclassificação, impõe-se a mesma solução: será remetida ao Juizado Especial Criminal, seu juiz natural. A Lei 11.689/2008 insistiu no mesmo parâmetro (art. 492, 1º., segunda parte), o que reputamos, igualmente, inconstitucional. Neste sentido, há também o magistério de Ada Pelegrini Grinover e outros 3 : Nos processos de Júri pode haver desclassificação para infração de menor potencial ofensivo. É o que sucede, por exemplo, na desclassificação de tentativa de homicídio para lesão leve ou vias de fato. Surge com a desclassificação problema de competência. Pelo sistema do Código de Processo Penal, em face da desclassificação cabe ao juiz presidente do Tribunal do Júri proferir sentença (artigo 492, 2º) 4. Mas, quando a desclassificação for para infração de menor potencial ofensivo, outra deve ser a solução, pois a competência passa a ser do Juizado Especial Criminal. Transitada em julgado a decisão desclassificatória, os autos serão remetidos ao Juizado competente, onde será designada audiência prevista nos artigos 70-76 da lei. Não há outra solução, pois a competência dos Juizados para as infrações de menor potencial ofensivo, por ser de ordem material e ter base constitucional, é absoluta. Confirmando esse entendimento, já se inclinou a jurisprudência, sendo que o Superior Tribunal de Justiça, por sua 5 a Turma, assim decidiu: 3 Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Editora Atlas, 1997. Página 156. 4 Atual 492, 1º., do CPP. 5
PROCESSUAL PENAL. JÚRI. DESCLASSIFICAÇÃO DA TENTATIVA PARA LESÕES CORPORAIS LEVES. Juizado Especial Criminal. Competência para casos dessa natureza, conforme a Lei 9099/95, cujos arts. 60 e 61 se sobrepõem ao art. 492, 2 o, do CPP 5. Decisão: por unanimidade, dar provimento ao recurso, para conceder a ordem, anulada a sentença condenatória, com remessa dos autos ao juízo especial criminal para que julgue o remanescente delito de lesão corporal classificado pelo tribunal do júri 6. Seguindo esse caminho, também já se manifestou o Tribunal de Justiça gaúcho 7 : DESCLASSIFICAÇÃO PRÓPRIA. LESÕES CORPORAIS LEVES. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. APELO MINISTERIAL IMPROVIDO. Quando ocorre desclassificação própria - declaração de incompetência - e o crime residual permite a aplicação da Lei nº 9.099, para o Juizado Especial Criminal deve ser remetido o processo, após o trânsito em julgado da decisão do Júri. Decisão monocrática acertada. Negaram provimento. Unânime. Pelo que ficou explícito, data venia, devemos receber o quanto disposto no artigo 492, 1º., do Código de Processo Penal com reservas e analisá-lo aplicando uma interpretação conforme a Constituição Federal. Não há, respeitosamente, outra forma de apreciar essa questão. 5 Atual 492, 1º., do CPP. 6 RHC 7601-AC, Rel., Min. José Dantas. 7 TJRS. Rel. Des. José Eugênio Tedesco, RJTJRS, 189/201. No mesmo sentido: RJTJRS, 191/174. 6