diplomata substantivo comum de dois gêneros um estudo sobre a presença das mulheres na diplomacia brasileira
ministério das relações exteriores Ministro de Estado Secretário-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira fundação alexandre de gusmão Presidente Embaixador Gilberto Vergne Saboia Instituto Rio Branco Diretor Embaixador Georges Lamazière A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo, Sala 1 70170-900 Brasília, DF Telefones: (61) 3411-6033/6034/6847 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br
viviane rios balbino Diplomata. Substantivo comum de dois gêneros Um estudo sobre a presença das mulheres na diplomacia brasileira Brasília, 2011
Direitos de publicação reservados à Fundação Alexandre de Gusmão Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo 70170-900 Brasília DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: funag@itamaraty.gov.br Equipe Técnica: Henrique da Silveira Sardinha Pinto Filho Fernanda Antunes Siqueira Fernanda Leal Wanderley Juliana Corrêa de Freitas Revisão: André Yuji Pinheiro Uema Programação Visual e Diagramação: Juliana Orem Impresso no Brasil 2011 Balbino, Viviane Rios. Diplomata : substantivo comum de dois gêneros : um estudo sobre a presença das mulheres na diplomacia brasileira / Viviane Rios Balbino. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. 212 p. ISBN 978-85-7631-322-9 1. Diplomacia. 2. Mulher. 3. Política Internacional. 4. Carreira Diplomática Feminina. Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Sonale Paiva - CRB /1810 CDU: 341.71(81) Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.
Dedico este trabalho ao homem que mudou minha vida, convidando-me a educar um menino partícipe da igualdade de gênero ao Nuno, meu príncipe. Que eu esteja à altura desse desafio, filhote.
Agradecimentos Sou muito grata aos funcionários do Ministério das Relações Exteriores, especialmente na Divisão do Pessoal e na secretaria do Instituto Rio Branco, que forneceram informações e dados númericos e estatísticos. Ao Centro de Seleção e Promoção de Eventos da Universidade de Brasília, ao Departamento de Pessoal do Banco Central, às Escolas de Magistratura dos Tribunais Regionais Federais da 1ª, 3ª e 5ª Regiões, à Coordenação de Recursos Humanos do Departamento de Polícia Federal, ao Centro de Informações e Pesquisa da Embaixada Americana em Brasília, pelos dados sobre a participação de mulheres em suas instituições. Aos meus queridos colegas de turma (Viva os 39 de 2003!), que sempre incentivaram minha pesquisa. Obrigada ademais às colegas Ana Beatriz Nogueira Nunes, nossa caloura, e Claudia Angélica Vasques, nossa veterana de Rio Branco. E aos colegas Sandra Pitta, Juan Carlos Eyzaguirre Fuentes e Raúl Mariano Martínez Villalba, respectivamente da Argentina, da Bolívia e do Paraguai, companheiros bolsistas do IRBr, que, muito gentilmente, me encaminharam dados sobre a participação de mulheres em suas chancelarias. Meus agradecimentos às orientadoras da dissertação, Professora Doutora Mariza Velloso e Embaixadora Thereza Quintella. Agradeço por me acolherem e por todo o trabalho que tiveram. Tive muita sorte
em encontrá-las. Aos meus orientadores invisíveis: meus amigos e ex-professores, especialmente à Professora Lourdes Bandeira, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Muito especialmente, agradeço a todas as entrevistadas que me ofereceram seu tempo e que se dispuseram a compartilhar suas experiências pessoais comigo. Se hoje posso publicar este trabalho é porque me receberam e se interessaram por ele. Muitíssimo obrigada a todas. O meu muito obrigado, por fim, à minha família, aos meus amigos, e às minhas amigas-irmãs, que sabem quem são provas vivas para mim da força da amizade que une mulheres. Obrigada ao Oto, meu amor, com grande orgulho, por ser sempre e há tantos anos meu crítico, revisor e incentivador maior e por ter me trazido o Nuno. Aos meus pais, Vivina e Olivio, além de tudo, por me fazerem crer que sempre poderia alcançar o que quisesse. Apenas agora sei o quanto lhes devo. Obrigada. E ao meu único irmão, Jader, por ser, desde o berço, meu maior companheiro.
Lista de abreviaturas e siglas Achan ou AC ADB ASOF CACD CAD CAE CESPE CPCD IBGE INEP IRBr MRE Ofchan ou OC PNAD PROFA REL/RI SGAP SERE SPM UnB Assistente de Chancelaria Associação dos Diplomatas Brasileiros Associação Nacional dos Oficiais de Chancelaria do Serviço Exterior Brasileiro Concurso de Admissão à Carreira Diplomática Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas Curso de Altos Estudos Centro de Seleção e Promoção de Eventos da Universidade de Brasília Curso de Preparação à Carreira Diplomática Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Instituto Rio Branco Ministério das Relações Exteriores Oficial de Chancelaria Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Programa de Formação e Aperfeiçoamento Relações Internacionais Subsecretaria-Geral Política Secretaria de Estado das Relações Exteriores Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Universidade de Brasília
Sumário Apresentação, 13 Introdução, 21 Capítulo 1 Gênero e sexo: definições necessárias, 25 1.1 Identificação de gênero, 27 Capítulo 2 A representação social das mulheres, 33 2.1 Impacto político de gênero, 36 2.2 A mulher e o mercado de trabalho, 40 2.2.1 A participação das mulheres na política internacional, 49 Capítulo 3 A baixa representação feminina na carreira diplomática brasileira uma proposta de análise, 55 3.1 O Concurso de Admissão à Carreira Diplomática, 55 3.1.1 A estrutura atual do CACD novos rumos, 59 3.2 A hierarquia na carreira diplomática brasileira classes e critérios de promoção, 61 3.3 Proposta de análise para a sub-representação feminina na carreira diplomática, 65 Capítulo 4 Coleta de dados, 71 4.1 Sujeitos, 72 4.2 Instrumento, 73 4.3 Procedimentos, 74
Capítulo 5 As mulheres no Ministério das Relações Exteriores: resultados, 77 5.1 Número de mulheres divididas por carreira e classe, 77 5.2 Desempenho feminino no CACD entre 1993 e 2003, 78 5.3 Desempenho feminino no concurso de acesso à carreira de Oficial de Chancelaria entre 1993 e 2003, 82 5.4 Resultados das entrevistas, 83 5.4.1 Oficiais de Chancelaria, 83 5.4.2 Diplomatas, 112 Capítulo 6 Conclusão: resultados vs. hipóteses, 167 Bibliografia, 193 Apêndice A Roteiro de entrevista com diplomata, 201 Apêndice B Roteiro de entrevista com oficial de chancelaria, 207
Apresentação Para o bem e para o mal, seis anos separam esta publicação da dissertação que lhe deu origem, apresentada no âmbito do programa de Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco em 2005. Para o bem, tem-se o benefício do poder contemplar a evolução do tema tanto institucional, quanto nacional e mesmo internacionalmente. Constato, por exemplo, que a preocupação com uma maior representatividade das mulheres na carreira diplomática brasileira encontra-se respaldada como legítima e pertinente, a julgar pelas ações desenvolvidas pelo MRE desde então em termos de promoção e visibilização de mulheres diplomatas. Em 2005, minha escolha de tema gerou debate. Cheguei a ser desaconselhada a prosseguir em meu intento de buscar as razões para o fato de praticamente não ter colegas mulheres no Instituto Rio Branco. Temia-se que eu pudesse ficar marcada por eleger, para meu primeiro trabalho no Ministério das Relações Exteriores, um assunto que, na melhor das hipóteses, não parecia muito relevante. Hoje, o tema é parte do currículo das aulas de Teoria das Relações Internacionais ministradas aos alunos do Instituto Rio Branco (IRBr). Percebe-se, igualmente, dos pronunciamentos realizados em cerimônias no Itamaraty e por entrevistas concedidas à imprensa, que ao menos os últimos dois chanceleres e mesmo o ex-presidente da 13
viviane rios balbino República partilham da preocupação com a sub-representação feminina na diplomacia brasileira a qual mencionam, em repetidas ocasiões. Esse período de seis anos foi de inflexão. Para alguém que teve a oportunidade de acompanhar, estando no MRE, esse intervalo, é visível que o Itamaraty começava a passar por grande mudança interna que não agrada a todos, certamente, mas que mudou suas feições, com efeito que durará provavelmente muitas décadas. O fato de que a dissertação tenha sido bem recebida e de que o tema possa ser abertamente discutido é emblemático de tal mudança. Há que se registrar, com satisfação de minha parte, que seis anos contemplam muito avanço. Em 2005, anunciava-se como auspiciosa a presença de nove diplomatas do sexo feminino entre os Ministros de Primeira Classe, chamados de Embaixadores. De fato, considerando-se a história da instituição, o número significava progresso. Atualmente, em julho de 2011, 26 mulheres são Ministras de Primeira Classe, em um total de 130. O MRE parece partilhar da tese de que a projeção de mulheres diplomatas conta, de fato, para que mais meninas se interessem pela carreira, tendo presente esforço da chefia do Itamaraty e, mais recentemente, da presidenta Dilma Roussef, em promover mulheres diplomatas tanto em termos de progressão funcional dentro da carreira, quanto em termos de nomeação para postos-chave para a diplomacia brasileira. Essa foi, sem sombra de dúvida, decisão política. E a chefia da Casa pagou o preço de enfrentar eventuais críticas, internas, em sua maior parte, por conta do que se entendeu como política afirmativa para mulheres. Ao que se sabe, em realidade o que existiu foi recomendação, da alta chefia, para que houvesse mulheres entre os promovidos, para todos os níveis, a cada seis meses (período regular de promoções). Ao mesmo tempo, nomear duas Embaixadoras, de carreira, para as duas representações permanentes do Brasil junto às Nações Unidas foi mensagem política forte. É uma ação afirmativa, em si, do papel da mulher na sociedade, no Governo e na política internacional. Além disso, trata-se de mudança com potencial de repercussão entre mulheres jovens. Afinal, a imagem do Itamaraty na imprensa está sendo associada a essas novas Embaixadoras. Pelo que tenho conhecimento, nenhum outro país do mundo tomou a mesma decisão na história recente. E as recentes nomeações de embaixadoras em postos do Oriente Médio somam-se a 14
apresentação essas, corroborando visão de que não há posto ou tema mais propício à atuação da mulher diplomata. E mais: que o desenvolvimento de qualquer tema ou situação, seja de que natureza for, pode se beneficiar de um olhar diferente do tradicional que é o masculino. Seja à frente da atuação brasileira no maior palco de negociações multilaterais em termos globais, seja representando o Brasil em dois dos lados de questões da maior complexidade geopolítica do mundo atual, seja chefiando divisões de grande relevância do Ministério em Brasília, o MRE está confiante no trabalho que desempenham as diplomatas. Isso é algo que terá repercussões positivas que extrapolarão o atual Governo e, creio, o caso brasileiro. Para o mal, contudo, os dados, especialmente numéricos, citados na dissertação e mantidos na presente publicação, não estarão atualizados. Optei por manter a grande parte dos números referentes ao ano de apresentação da dissertação, de maneira a cumprir com a intenção inicial de prover um retrato de um momento histórico específico. Apenas em alguns casos, a exemplo de números de mulheres eleitas para cargos públicos, buscou-se atualizá-los, de vez que, nesse caso, a atualidade é mais relevante. Nesta apresentação, também, são apresentados alguns dos números atuais referentes ao ingresso de mulheres no Itamaraty, para fins de comparação com o retrato apresentado em 2005. A estrutura do Concurso de Admissão à Carreira Diplomática (CACD) mudou consideravelmente entre o período da pesquisa e os dias atuais. Não há mais provas orais. As provas de línguas estrangeiras (inglês, francês e espanhol) passaram a ter caráter classificatório, ao contrário da prova eliminatória de inglês (exclusivamente) vigente durante os anos a que se refere a pesquisa realizada para a dissertação. Permanece a aplicação da primeira fase do Concurso em diferentes cidades do País e o número de inscrições segue aumentando ano após ano. Em 2005, aguardava-se ainda o impacto do que seriam as turmas de 100 alunos do IRBr o que teve início justamente a partir daquele ano e prosseguiu até 2010. Em termos práticos, trata-se de uma revolução na estrutura do Itamaraty: se antes mal se selecionavam 30 ou 40 pessoas a cada ano, os mais de 500 aprovados, desde 2005, demonstram, com o trabalho que já desenvolvem, que a diplomacia brasileira precisava de reforço, de renovação verdadeira, especialmente em termos de diversidade. 15
viviane rios balbino É inegável que as novas turmas têm, em conjunto, fisionomia bastante diferente do que os diplomatas estavam acostumados a encontrar após cada concurso. Muito mais mestiços, um pouco mais de negros. Quanto às mulheres, infelizmente teremos oportunidade de constatar, não se cumpriu a propalada profecia do aumento automático. Muitos, dentro e fora do Itamaraty, acreditavam que o aumento do número de mulheres na instituição dar-se-ia de maneira natural, frente ao crescimento de mulheres entre os estudantes que concluem cursos de graduação no Brasil e, posteriormente, tendo em conta o fato de que o MRE aumentou para 100 o número de vagas oferecidas a cada ano. De fato, com relação a determinados cursos, as mulheres já ultrapassam os homens por ocasião da conclusão da graduação no Brasil. E, sem dúvida, o aumento do número de vagas do Concurso que costumava ser entre 30 e 40 a cada ano, até 2005, contribuiu para a democratização do acesso à carreira diplomática em diversos aspectos, mormente no que tange à origem étnico-racial, geográfica e social dos novos diplomatas. O percentual de mulheres entre os diplomatas brasileiros, porém, não vem crescendo com a velocidade que se poderia imaginar e desejar. A participação relativa de mulheres nas turmas de 100 integrantes permaneceu, em média, inalterada com relação às turmas de 30 ou 40 alunos. Em 1993, as mulheres representaram 21% dos novos diplomatas aprovados. Com o último concurso a oferecer 100 vagas, concluído em meados de 2010, 27 mulheres, dos 108 novos diplomatas brasileiros, (exatamente 25% do total) passaram a integrar os quadros do MRE. E, com pouca variação durante o período, a situação se repetiu. Para se ter noção, dos concursos mais recentes, o que mais aprovou mulheres, tanto absoluta quanto relativamente, foi o de 2008 ano em que ingressaram 31 mulheres de um total de 115 novos diplomatas, ou seja, 26,96%. Contrariamente ao aumento automático da parcela feminina no Itamaraty previsto por alguns, pode-se verificar que o percentual de aprovadas nos Concursos de Admissão permanece assustadoramente constante, na casa dos 20% do total, desde o início da década de 90, vinte anos atrás. Antes do primeiro Concurso a oferecer 100 vagas, em meados de 2005, as mulheres representavam 19,28% do total de diplomatas brasileiros. Preenchidas mais de 500 novas vagas para o cargo de diplomata, as mulheres mal chegaram a ultrapassar 21% do total. 16
apresentação Ainda assim, em termos absolutos, um contingente de mais de 100 novas mulheres diplomatas, admitidas em um período de cinco anos, certamente contribuirá para a mudança no que tange à participação de mulheres na carreira diplomática brasileira. Na década de 70, há quase 40 anos, portanto, as mulheres eram cerca de 10% do total de diplomatas no Brasil. Em 2003, a parcela de mulheres era de 19,45%. Atualmente, ao entrarmos na segunda década dos anos 2000, há 21,84% de mulheres entre os diplomatas, de acordo com dados da Divisão do Pessoal do MRE. O que mudou a olhos vistos, nos últimos dez anos, como mencionado acima, foi a presença de mulheres na categoria funcional mais alta da carreira diplomática brasileira fruto das decisões políticas citadas anteriormente. Em 2001, as mulheres eram apenas 5,15% do total de Ministros de Primeira Classe convencionalmente chamados de Embaixadores. Atualmente, as mulheres já são 20% desse contingente representando, portanto, no último estamento da carreira, precisamente a proporção de mulheres na diplomacia brasileira. Trata-se de intervalo razoavelmente curto de tempo, dez anos, e da quadruplicação da presença feminina nessa categoria. Como todos sabem, a carreira diplomática é consideravelmente competitiva. São poucas vagas em cada promoção. Conforme mencionado acima, não é sem esforço e sem resistências internas que as políticas de promoção de mulheres estão se dando e possibilitando o crescimento aqui aludido. A chefia da Casa demonstra estar ciente de que, a fim de corrigir a tendência de baixa representação de mulheres na carreira, será necessário mais do que o aumento do número de vagas no Concurso de Admissão à Carreira Diplomática. Vagas, afinal, são abertas a todo e a qualquer cidadão. Se a intenção é a de que mais mulheres integrem o quadro diplomático brasileiro, elas terão de ser atraídas. Nesse diapasão, não posso deixar de enfrentar, ainda, a questão das dificuldades específicas que a carreira diplomática apresenta às mulheres, mormente às mulheres brasileiras, partes de uma cultura ainda francamente androcêntrica e patriarcal. É um debate que me segue instigando e que continua a provocar discussões interessantes com colegas de ambos os sexos. Admito que, com a maior vivência que hoje possuo, alguns dos argumentos propostos por mim em 2005 talvez não estivessem presentes em um trabalho inédito que viesse a elaborar sobre o assunto. Acredito estar em melhores condições hoje que há seis anos para compreender que a resposta não é tão simples. 17
viviane rios balbino De maneira bastante resumida, percebo que se impõem, até os dias atuais, maiores dificuldades para uma mulher diplomata casada com alguém que não seja colega de profissão, do que para um homem diplomata nas mesmas condições, no que se refere à manutenção da união familiar em face da carreira. E isso se deve, precipuamente, à necessidade de deixar o País a cada intervalo de tempo para o serviço no exterior. Permanece sendo socialmente mais aceito que a mulher esposa de diplomata se afaste, ainda que momentaneamente, de suas atividades profissionais para acompanhar seu cônjuge no exterior do que o homem marido de diplomata fazendo o mesmo. Mesmo que o marido seja aberto à possibilidade característica também ainda pouco prevalente na população masculina, no Brasil e alhures o ambiente social não é equânime. Ouvem-se comentários sobre mulheres diplomatas que teriam de sustentar seus maridos, ao passo que nunca, jamais se ouve qualquer tipo de crítica à esposa do diplomata no exterior que se afastou de suas funções, ou que tenha chegado a optar por não ter atividade profissional. Enquanto ainda são muito poucos os elogios aos maridos que acompanham suas esposas diplomatas (embora já se veja reconhecimento, especialmente entre diplomatas mais jovens, de ambos os sexos), as esposas de diplomatas permanecem ocupando, socialmente, o legítimo papel de anfitriã, de braço direito, de responsável pela paz do lar. Ainda que o marido da diplomata tenha o mesmo papel, percebe-se certo desconforto entre colegas, particularmente homens, mais antigos ao deparar com a situação. No longo prazo, tal disparidade acaba impactando negativamente para a mulher diplomata em comparação a seu colega homem. Dito isso, fazem-se necessárias diversas ressalvas. Em primeiro lugar, nem todas as mulheres nem os homens diplomatas são casados. Em segundo lugar, entre aquelas que são casadas, muitas são com colegas diplomatas, brasileiros ou estrangeiros, e podem servir no exterior junto a seus maridos. Em terceiro lugar, existem exemplos de diplomatas casadas com homens que não são colegas, que permanecem casadas e que tiveram carreira de grande sucesso. As atuais Embaixadoras do Brasil junto às Nações Unidas, em Genebra e em Nova York, são exemplos. Por isso, mantenho a firme convicção de que a carreira não é feita para homens, como se dado da natureza. Suscitar a dificuldade de conciliar a vida pessoal com a carreira diplomática é injusto com as mulheres. 18
apresentação Em primeiro lugar, tem-se tornado cada vez menos frequente a esposa tradicional de diplomata, que se dedica, por opção própria e com total satisfação, exclusivamente a casa e aos filhos. A maior parte das mulheres nos dias atuais deseja ter autonomia econômica e satisfação profissional. Dessa forma, é cada vez mais difícil também para os homens diplomatas casados com mulheres de fora da diplomacia manterem seus casamentos em face das exigências da carreira. Entretanto, isso em nenhum momento, em nenhuma cirscuntância é mencionado como algo que um jovem que deseje ser diplomata tenha de considerar. Em segundo lugar, porque acredito firmemente que certas condições (refiro-me a disposições da Lei do Serviço Exterior, por exemplo) poderiam ser aprimoradas pelo bem das mulheres e dos homens diplomatas. Permaneço não comungando, portanto, da tese, a meu ver simplista e preconceituosa, de que as mulheres estão sub-representadas na carreira diplomática porque não desejam abrir mão de constituir família. Apesar de viver na própria pele o resultado das diferenças de expectativas sociais entre os gêneros, não posso me furtar a defender que, ao tratarmos da dicotomia vida pessoal vs carreira apenas quando são as mulheres os sujeitos, estamos mantendo os papéis tradicionais de gênero relegando à mulher o papel do ser humano cuja realização depende da constituição e da manutenção da família e deixando ao homem o papel de ser que elege sua forma de realização. Cada mulher e cada homem saberá conciliar vida pessoal e carreira de acordo com suas prioridades, em qualquer profissão que escolha. Nesse contexto, parece-me oportuno o parágrafo final do capítulo dedicado à mulher na diplomacia no livro Inside a US Embassy - How the Foreign Service Works for America, de 2005. Diz a diplomata Phyllis E. Oakley (Dorman, 2005, p. 130): Would I recommend the Foreign Service career to young women today? You bet I would. In spite of the danger, sharp shards left in the breached glass ceiling, and complexities of family life, I still see the Foreign Service as the most interesting and worthwhile career in the world. I am pleased that so many outstanding young people still seem to agree. Por fim, tão relevante quanto a evolução dos números e a mudança de atitude dentro do Itamaraty é a nova conjuntura política no Brasil de 19
viviane rios balbino 2011, ano que começou com a diplomação da primeira mulher eleita para a Presidência da República. Em seu discurso de posse, a presidenta Dilma Roussef conclamou todos os pais e as mães brasileiras a olharem nos olhos de suas filhas e dizer-lhes que elas podem [conquistar o que desejarem] 1. Pela primeira vez na história brasileira, a representação feminina nos espaços de poder ganhou contornos de questão de Estado. Desde o sufrágio universal, a participação da mulher brasileira, não como eleitora, mas como eleita para os cargos eletivos e como ocupante de cargos de comando na estrutura de governo do País como um todo, não apareceria como destaque das grandes questões do Brasil. O Itamaraty será afetado por essa mudança, assim como as demais instituições brasileiras. Assim sendo, e em uma perspectiva otimista, pode-se entrever nos seis anos de idade da dissertação um atrativo a mais, tendo em conta as considerações tecidas acima, bem como o incremento no interesse, ao menos do ponto de vista da imprensa, sobre o tema da mulher na diplomacia e em posições de poder, em geral. Muitíssimo mudou, dentro e fora do Itamaraty nesse intervalo, embora em termos concretos ainda nos falte muito para a almejada e democrática paridade. Considera-se adequado, portanto, respeitar a sincronicidade da dissertação, como um retrato, visto pelos olhos de uma neófita, de um cenário felizmente mutável e mutante. 1 Em uma alusão ao slogan de campanha do então candidato à presidência dos Estados Unidos, o primeiro negro eleito ao cargo, Barack Obama, em 2008: Yes, we can. 20
Introdução O presente trabalho tem como objetivo analisar a questão da sub-representação feminina na carreira diplomática brasileira. Essa situação é constatada, de início, ao se analisar o número de ingressantes no Concurso de Admissão à Carreira Diplomática de acordo com o sexo. Observa-se que há um recorrente déficit entre o número de homens e de mulheres aprovados no Concurso. O problema persiste ao longo da carreira, pois são homens que ocupam a maioria dos cargos de mais alto nível hierárquico. Busca-se investigar os motivos que levam à sub-representação feminina na Casa do Barão do Rio Branco 2 por meio da análise de dados sobre o ingresso de diplomatas no Instituto Rio Branco (IRBr) no último decênio (1993-2003), aliada a entrevistas realizadas com diplomatas e oficiais de chancelaria, pois, nesta carreira, também do Serviço Exterior, as mulheres são maioria. A escolha pelos últimos anos tem como intuito fornecer material o mais atualizado possível para a identificação de fatores de atração e de repulsão de mulheres em relação à carreira para 2 Ou simplesmente, Casa : termo que designa o Ministério das Relações Exteriores no jargão diplomático. Para discussão aprofundada sobre o assunto, ver Moura, 2007, originalmente publicado como dissertação de mestrado em 1999, cap. 4. 21
viviane rios balbino subsidiar eventuais ações institucionais que envolvam a temática de gênero no Itamaraty. Deseja-se explicitar que, embora o trabalho proposto esteja em parte baseado nos conhecimentos gerados por teorias e estudos feministas, não se trata de uma produção de cunho reivindicatório ou confrontacionista. Espera-se investigar uma faceta da inserção da mulher nas carreiras de Estado no Brasil, especificamente a maneira pela qual a diplomática dinâmica da carreira incorpora transformações sociais e políticas, nacionais e internacionais que envolvem a mulher. Ademais, vale ressaltar que a discussão sobre gênero no Itamaraty (iniciada na década de 90 por diplomatas de carreira, como veremos adiante), faz parte da discussão contemporânea mais ampla sobre inclusão social, que diz respeito a todos os fatores que limitam as oportunidades de usufruto dos direitos políticos, civis e econômicos, tais como cor, origem socioeconômica, origem geográfica, idade, orientação sexual, entre outros. Pode-se, também, justificar o estudo levando-se em conta o comprometimento do Brasil com o direito das mulheres, interna consagrado no estatuto da igualdade jurídica da Constituição de 1988 e corroborado por iniciativas como o advento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com status de ministério e internacionalmente, como se depreende da assinatura de diversos instrumentos internacionais, entre os quais: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (de 1979, ratificada em 1984); a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará (de 1994, promulgada em 1996); a Declaração de Beijing adotada pela IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (1995); o Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (promulgado em 2002); a Convenção nº 100 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa à Igualdade de Remuneração da Mão de Obra Masculina e Feminina por Trabalho de Igual Valor (de 1951); e, 22
introdução a Convenção nº 111 da OIT sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão (de 1958). Assim, uma análise sobre a situação da mulher em uma carreira de Estado, especialmente a carreira diretamente responsável pelas negociações que levam a acordos como os citados acima, prova-se de grande interesse. A reflexão sobre a situação da mulher na diplomacia é, sem dúvida, parte relevante da avaliação das ações de políticas públicas desenvolvidas para a construção de igualdade de gênero em face desses documentos e dos esforços do Governo brasileiro voltados para a mulher. 23
Capítulo 1 Gênero e sexo: definições necessárias Antes de prosseguir com as questões centrais e as hipóteses elaboradas, cabe proceder a uma delimitação conceitual dos termos empregados neste trabalho. No presente estudo, serão utilizados os termos sexo e gênero no tratamento da questão da representação feminina. Trata-se de termos com significados distintos. O primeiro refere-se à determinação genotípica e à manifestação fenotípica dos caracteres sexuais em dois grupos possíveis: o masculino e o feminino. Utilizar-se-á esse termo ao se tratar de dados numéricos porque, afinal, esse é o critério que se dispõe para levantamentos dessa natureza. O termo gênero, por sua vez, refere-se à identificação do indivíduo a um grupo sociocultural com papéis definidos, sendo a identificação um processo subjetivo complexo que envolve a relação psicológica do indivíduo com esses papéis. Gênero remete também a características da sociedade e a processos culturais, na medida em que os papéis, códigos, símbolos, atitudes, estereótipos, condutas, valores, tradições e costumes relacionados ao masculino e ao feminino variam no tempo e no espaço. Assim, o uso deste último termo, mais corrente na literatura especializada, busca fugir do determinismo biológico. Conforme Fagundes (2002, p. 71), (...) falar em gênero é indicar que a condição 25