Educação, Interdisciplinaridade e Desenvolvimento Sustentável: a Experiência de um Projeto de Formação Técnico-Agropecuária na Transamazônica, Pará Soraya A. de Carvalho 1 ; Flávio B. Barros 2 ; Ana Lúcia M. da Silva 3 ; Thomeson Nascimento 3 ; Danielle W. Silva 3 e Simão L. de Souza 4 1 Zootecnista, Doutoranda pela AgroParisTech/França, Docente da UFPA/NEAF/Campus de Altamira; Pesquisadora do Lab. Agroecológico da Transamazônica (LAET). 2 Biólogo, Doutorando em Biologia da Conservação pelo Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa/Portugal, Docente da UFPA/Campus de Altamira; Pesquisador do LAET. 3 Educador (a) do Projeto Curso Técnico Agropecuário; 4 Lic. em Ciências Agrícolas, Docente da UFPA/Campus de Altamira; Pesquisador do LAET. E-mail para correspondência: soraya@ufpa.br. Resumo A região da Transamazônica e Xingu, situada no sudoeste do Pará, tem na agropecuária a atividade principal. A falta de políticas públicas voltadas à Educação se apresenta como um dos principais entraves para o desenvolvimento local. Com base na perspectiva de um desenvolvimento embasado na formação de sujeitos críticos e transformadores da realidade local; e considerando as especificidades do território em questão, a ausência histórica do Estado brasileiro no âmbito da Educação e o perfil agropecuário regional, a UFPA/Campus de Altamira, por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), que atua no território desde 2002 com a implantação do Programa Educação-Cidadã, surgiu então a proposta da construção de um curso de formação técnico-profissionalizante em nível médio em agropecuária com ênfase em desenvolvimento sustentável como uma estratégia para a formação de jovens agricultores dos Projetos de Assentamento (PA) da região. O projeto está fundamentado na Pedagogia da Alternância, que considera momentos formativos denominados Tempo-Escola e Tempo-Comunidade. Esta fundamentação leva em conta, entre outros fatores, a possibilidade dos educandos de obter uma formação integrada, mais contextualizada com sua vida no Campo. O projeto concebe a formação a partir de eixos temáticos, como opção de uma formação profissional embasada na idéia do pensamento complexo, sistêmico, integrativo. O exercício do rompimento da formação pautada no paradigma disciplinar, cartesiano, nãointegrativo, descontextualizado, tem sido um eterno desafio no cotidiano do projeto. Assim, o presente ensaio traz uma socialização da experiência do projeto que se encontra em andamento.
Introdução O acesso a uma Educação de qualidade no Campo tem sido um desafio histórico travado pelos sujeitos que nele vivem e constroem suas histórias de vida. Há muito que existe a idéia de que o Campo é um lugar do atraso e da ignorância, do homem e da mulher que deve aprender o suficiente para saber ler, escrever e contar. Esse pensar, infelizmente, ainda permeia a mentalidade de boa parte da nossa sociedade contemporânea. Pode até não ser explicitada, mas muitas das vezes aparece num ou outro discurso, fortalecendo a tese de que o Campo é muito mais um espaço de trabalho do que um lugar de produção da vida, da cultura, do desenvolvimento embasado na valorização dos múltiplos saberes que são peculiares desse lugar, o Campo. Até hoje, em pleno limiar do século XXI, um dos maiores anseios dos atores (crianças, jovens, homens e mulheres do campo, educadores e educadoras do campo, Movimentos Sociais, entre outros) que têm uma forte ligação com o Campo, tem sido a consolidação de uma política de Educação do Campo que considere o contexto do lugar, pautada na diversidade sociocultural inerente ao espaço campesino, com todas as suas complexidades. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), vinculado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) tem se constituído como uma ação do Governo Federal a fim de dirimir as agruras da Educação na reforma agrária do Brasil. É importante salientar, no entanto, que este Programa é fruto da luta histórica dos Movimentos Sociais, que de forma organizada exigiram do Governo a implementação de ações que fossem dirigidas para o povo do campo. O Programa atende especificamente os assentados (e seus dependentes ou agregados diretos e indiretos) dos Projetos de Assentamento (PA's) da reforma agrária brasileira e tem apoiado, nos últimos anos, diversos projetos de Educação nos diferentes níveis da Educação Básica e Superior. A Universidade Federal do Pará (UFPA), com uma sólida inserção neste Programa, tem desenvolvido diversas experiências de formação envolvendo os sujeitos do campo dos PA's de diferentes regiões do Estado do Pará. Nossa trajetória no âmbito do PRONERA tem ocorrido desde a alfabetização de jovens e adultos até os Cursos de Nível Superior. O presente texto, nesta perspectiva, pretende socializar a experiência de um projeto de formação em nível médio e técnico-profissionalizante no Território da Transamazônica, no Pará, que está inserido no âmbito do Programa Educação Cidadã na Transamazônica, que reúne outros projetos, todos vinculados ao PRONERA. O Território da Transamazônica como espaço de luta por uma Educação do Campo O Território da Transamazônica está localizado no sudoeste do Estado do Pará (Figura 1) numa extensão de 227.144,30 Km 2, sendo formado pelos seguintes municípios: Altamira, Anapu, Brasil Novo, Medicilândia, Pacajá, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu. Com 226.370 habitantes, dos quais 119.839 (52,94%) vivendo na área rural, o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) médio do território é 0,70. É constituído por 13.267 agricultores familiares, 22.554 famílias assentadas, 66 PA s, 831 pescadores e 15 terras indígenas (CADERNO TERRITÓRIO/SDT/MDA, s.d.). A Transamazônica tem a sua história marcada por uma colonização agrícola iniciada nos anos 1970 com a abertura da Rodovia Transamazônica BR 230, pelo então governo militar General Emílio Médici, onde se tinha como slogan homens sem terra, para terra sem homens. Este plano de ação, então chamado de Plano de Integração Nacional (PIN), tinha como objetivos resolver conflitos agrários no Sul e a seca no Nordeste, bem como ocupar a Amazônia. Até então a região era isolada por via terrestre do restante do Brasil. Com a construção da rodovia, milhares de migrantes chegaram à região, estes oriundos de diversas partes do Brasil, mas principalmente das regiões Nordeste e Sul. O projeto de colonização foi marcado por diversos problemas, a começar pela falta de planejamento e implementação do mesmo. No momento da instalação dos assentamentos não se teve o cuidado necessário com relação aos solos que seriam mais apropriados para a atividade agrícola. Não se tinha naquela época conhecimentos dos cultivos mais adequados à região; somado a isso as famílias que vieram de outras regiões do país não tinham familiaridade com as condições edafoclimáticas e ambientais da Amazônia, além disso, faltou assistência técnica e o apoio à comercialização. Nesse processo surgiram vários tipos de efeitos, o qual não se pode deixar de citar o uso inadequado dos recursos naturais, grilagem de terra, conflitos no campo, dentre outros. Como nos retrata MCGRATH (s.d), "Os custos sociais, econômicos, ecológicos da Transamazônica foram elevados". Mediante as várias dificuldades existentes na região, o acesso a uma educação de qualidade se configura entre os entraves enfrentados pela sociedade local, principalmente a camada mais jovem. A falta de políticas públicas voltadas à Educação do Campo que valorize o campo como território legítimo de produção da existência humana e não só da produção agrícola, e conforme nos diz JESUS (2004), uma visão da Escola como espaço para a construção do conhecimento, mas um conhecimento pautado no contexto local, e, para se discutir que futuro se quer para o Campo, considerando seu contexto na totalidade; observância da temporalidade como forma de atribuir vida àquilo que se considera primitivo e tradicional, mas não é; assim, possibilitando a produção de conhecimento de qualidade com temporalidades diferentes, respeitando o ritmo e a cultura de cada grupo social e o ambiente físico, bem como a valorização por parte dos sujeitos, considerando seus ciclos de vida e os ciclos de vida na terra, se apresenta como um dos principais problemas para o desenvolvimento local, pois os jovens, na falta de oportunidades nas comunidades onde estão inseridos, muitas vezes vêem na cidade a possibilidade de obtenção de uma formação educacional-profissional mais conduzente. Com base nesta expectativa e considerando as especificidades do território em questão, a ausência histórica do Estado brasileiro no que diz respeito à Educação e o perfil agropecuário regional, a Universidade Federal do Pará/Campus de Altamira, por meio do Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (PRONERA) que atua no território desde 2002 com a implantação do Programa Educação-Cidadã, através dos cursos de alfabetização e escolarização, surgiu então a proposta da construção de um curso de formação técnico-profissionalizante em nível médio em agropecuária com ênfase em desenvolvimento sustentável como uma estratégia para a formação de jovens agricultores dos PA s da região. Figura 1: Mapa de localização da Transamazônica. Contextualizando o Projeto A dinâmica de construção do projeto se deu com base em diversas reuniões de trabalho, envolvendo os parceiros (Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios abrangentes, ONG s, INCRA, e diversas outras instituições locais), a fim de discutir sobre os pressupostos político-pedagógicos que norteariam a proposta, como metodologia, avaliação e currículo. O exercício da construção coletiva do curso foi essencial para o seu bom andamento. O projeto está fundamentado na Pedagogia da Alternância, dividido em momentos formativos denominados Tempo-Escola (TE), com 20 dias e Tempo-Comunidade (TC), com 40 dias, tendo como carga horária total 3384 horas. Esta fundamentação considera, entre outros fatores, a possibilidade dos educandos de obter uma formação integrada, mais contextualizada com sua
vida no Campo, pois, o momento vivenciado durante o TC oportuniza ao educando refletir sobre os conteúdos trabalhados no TE, havendo assim uma integração entre os saberes formais e empíricos, entre a teoria e a prática, que são, enfim, indissociáveis. Considerando a demanda levantada pelo INCRA e Organizações de Agricultores nos municípios, chegou-se a um total de 180 jovens assentados aptos a participarem do curso. Entretanto, o projeto foi concebido para atender oitenta educandos, em duas turmas, tendo sido necessário a realização de uma seleção, a qual foi previamente discutida de forma democrática entre todos os parceiros do projeto, sendo que o TE ocorre ao mesmo tempo e no mesmo local para as duas turmas, permitindo inclusive que algumas atividades sejam desenvolvidas conjuntamente. Um dos critérios utilizados foi garantir que em ambas as turmas fosse contemplado tanto a diversidade de gênero, bem como PA s e municípios de origem de cada educando. Os 80 educandos são oriundos de 17 PA s da Transamazônica (Figura 2). Desses, 58 são homens e 16 são mulheres, com faixa etária variando de 15 a 55 anos (Figura 3). Relação PA x Número de Educandos N de PA e Educandos 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 PA Educandos Altamira Brasil Novo Medicilândia Uruará Anapu Pacajá Senador José Porfírio Municípios Figura 2: Número de educandos por Projeto de Assentamento.
Educandos por Gênero e Faixa Etária Número de Educandos 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 15-19 20-25 26-35 36-45 46-55 Homens Mulheres Faixa Etária Figura 3: Número de educandos por faixa etária e gênero. O caráter inovador e interdisciplinar do Curso também se dá no desenho curricular, quando se optou pela conexão orgânica dos conteúdos relacionados ao ensino médio e ao campo profissional. A partir dessa opção, o projeto propõe momentos de seminários de planejamento, os quais se realizam nas comunidades dos educandos, com o envolvimento do maior número e diversidade de atores locais a fim de discutir e identificar os temas mais relevantes a serem tratados durante o ano. O projeto não concebe a formação com base disciplinar, mas a partir de eixos temáticos, como opção de uma formação profissional embasada na idéia do pensamento complexo, sistêmico, integrativo. A adequação do Curso a realidade dos educandos se dá também na perspectiva do planejamento integrado, onde as temáticas centrais abordadas correspondem às expectativas identificadas e discutidas nas comunidades dos referidos educandos. Assim, o projeto concebe uma formação profissional centrada numa relação ao mesmo tempo dialógica, contextualizada e pensada em sintonia com estratégias de desenvolvimento regional. A parceria com a Escola Agrotécnica Federal de Castanhal (EAFC) foi essencial para o funcionamento do Curso, pois a UFPA não dispõe de uma Unidade Acadêmica voltada para a formação na área de Ciências Agrárias em nível médio. Neste sentido, o diálogo junto a EAFC foi fundamental, tanto no sentido da construção do Projeto, quanto no que diz respeito aos detalhamentos pedagógicos do mesmo para que pudesse atender formalmente as exigências (carga horária, sistema de notas, nome formal do Curso para registro junto ao Ministério da Educação, etc.) da Escola, que está vinculada ao Ministério da Educação. Além desses fatores, contar com a sensibilidade e com a abertura da EAFC quanto ao formato curricular e didáticopedagógico foi igualmente importante, pois pensar um Projeto de formação nestes moldes
constitui ainda hoje um desafio em nosso meio. A EAFC é, portanto, a Instituição certificadora do Projeto. A interdisciplinaridade no contexto da Educação do Campo: um desafio O reducionismo é um recurso incorporado ao nosso modo de pensar, trazido pelo princípio cartesiano de descontextualizar, simplificar e reduzir cada vez mais, quando um fenômeno é complexo (DESCARTES, 1973, apud. SANTOS, 2005). A interdisciplinaridade surge como um processo produtor de novos conhecimentos, através do entrelaçamento de diversas disciplinas que procurem redefinir o objeto de conhecimento. Não se trata apenas da integração sociedade-natureza, mas da abertura de um diálogo e da hibridização entre ciência, tecnologia e saberes para a produção de novos paradigmas e sua articulação para transformar a natureza e a sociedade (RATTNER, 2005). A cultura da formação disciplinar e fragmentada está há muito inserida nos nossos espaços educativos, desde a escola básica até a Universidade. Nossa opção de trabalhar com esse enfoque reflete a trajetória e o esforço de pensar e materializar a interdisciplinaridade no nosso cotidiano. Por isso, como diz POMBO (s.d), é possível olhar a floresta e não somente as árvores; para contemplarmos um todo, não esquecendo que as partes são importantes. Também entendemos que esse todo organizado produz qualidades e propriedades que não existem nas partes isoladamente (MORIN, 2006), o que acontece na maioria das vezes nos currículos disciplinares, aspecto que o projeto tenta romper. Não existe um conteúdo único para interdisciplinaridade, cada enfoque depende basicamente da linha teórica de quem pretende definí-la. Contudo, os diferentes trabalhos apontam para uma noção de interdisciplinaridade como princípio de unificação e não unidade acabada (SANTOS, 2005). Segundo PIETROCOLA et. al. (2003) apud. SANTOS (2005), a interdisciplinaridade se constitui como uma forma de se fazer uma leitura mais adequada da realidade. Esses autores sugerem que no lugar de transformar os objetos de mundo de forma a integrá-los às teorias, é possível proceder de forma inversa, ou seja, submeter os conhecimentos disponíveis a projetos de ação sobre o mundo. Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, a interdisciplinaridade parte do princípio de que...todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos, que pode ser de questionamento, de negação, de complementação, de ampliação, de iluminação de aspectos não distinguidos. Propõe-se, portanto, neste projeto, tanto uma estrutura curricular quanto alguns procedimentos operacionais que possam garantir, de fato, uma formação interdisciplinar. O desafio de pensar a interdisciplinaridade esteve presente em
toda trajetória do projeto, desde sua concepção. Este enfoque interdisciplinar tornou-se ainda mais desafiador porque até então a equipe de docentes da UFPA nunca antes tinha tido a experiência de trabalhar um projeto de formação voltado para o ensino médio. Unir sujeitos de diferentes municípios, de grandes distâncias quilométricas, de diferentes histórias de vida, de diversas faixas etárias, de diferentes níveis de formação (muito embora todos tivessem concluído o Ensino Fundamental); tudo isso representou um arsenal de complexidade para a equipe que pensou o projeto; mas sempre com a expectativa de construção de uma experiência significativa - o rompimento de barreiras epistemológicas, formação de sujeitos do campo para atuar no campo, o respeito aos contextos da região e, principalmente, a instituição de um diálogo com a diversidade. Não somente para a equipe de trabalho de elaboração da proposta este desafio se fez presente, mas também para grande parte dos educandos, que nunca tinham vivido uma realidade escolar pensada a partir de uma visão sistêmica. Por outro lado, para os educandos oriundos das Casas Familiares Rurais, onde a concepção de formação está fundamentada na Pedagogia da Alternância, tal dificuldade não se fez presente. Um ponto a se refletir é o quadro de recursos humanos envolvidos nas atividades pedagógicas. O pensar a partir da metodologia interdisciplinar requer do profissional uma formação também interdisciplinar, o que de fato não existe. Nesse sentido, é relevante destacar também que a equipe de formadores foi composta inicialmente por três pedagogos e um licenciado em Ciências Agrárias. Esses formadores foram selecionados por uma comissão composta por diversos representantes da equipe de elaboração do Curso e vários critérios foram alocados para a apreciação desses profissionais, como perfil sistêmico, experiência docente, disponibilidade de deslocamento, dedicação exclusiva. Atualmente, esta equipe está composta por dois Agrônomos, uma Pedagoga e uma Licenciada em Letras, que vem respondendo a contento os desafios cotidianamente impostos pelo projeto. Nele trabalha-se com uma concepção mais abrangente do que seja o educador. Neste caso, consideramos que o educador é aquela pessoa que tem no trabalho principal o fazer e o pensar a formação humana e não somente restringir a repassar os conhecimentos; pelo contrário, estes conhecimentos são construídos de forma recíproca, onde educador e educando dialogam coletivamente neste processo de construção do conhecimento. É importante destacar ainda que a Educação do Campo, no nível do Ministério da Educação, tem pouco mais de quatro anos, sendo que esta bandeira de luta é muito mais antiga. Reconhecendo a diversidade do campo, do povo que nele vive, da produção que neste campo se faz, não somente a produção alimentar, mas a produção da cultura e da vida, trazer o debate da interdisciplinaridade entrelaçada com as idéias do Desenvolvimento Sustentável é mais do que urgente. Assim, a interdisciplinaridade pode se configurar como uma porta para a quebra das deficiências históricas dos processos educativos vivenciados na escola do campo; por isso, é preciso pensar em um ambiente educativo que combine múltiplas atividades voltadas às diversas
dimensões de formação da pessoa (KOLING et. al. 1999). Nosso maior campo de batalha tem se dado no sentido de priorizar o alcance desses sonhos, dessas realidades. Assim, o projeto concebe uma formação profissional centrada numa relação ao mesmo tempo dialógica e contextualizada; em que a Educação do Campo assume sua particularidade, que é o vínculo com sujeitos sociais concretos, e com um recorte específico de classe, mas sem deixar de considerar a dimensão da universalidade: antes (durante e depois) de tudo ela é educação, formação de seres humanos (CALDART, 2004) O enfoque do Desenvolvimento Sustentável A idéia de Desenvolvimento Sustentável é colocada como um novo paradigma para a sociedade contemporânea e que muitas vezes é utilizada de maneira errônea, tornando-se, inclusive, um modismo. Hoje, essa terminologia é comentada e discutida nos mais diferentes setores da sociedade, mas a grande reflexão surge na questão do que vem a ser o Desenvolvimento Sustentável, ou seja, para quê e para quem se destina tal desenvolvimento. De acordo com o Relatório de Brundtland, divulgado no Brasil em 1987 como Nosso Futuro Comum, a idéia de Desenvolvimento Sustentável aparece como sendo aquela capaz de garantir as necessidades das gerações futuras. Segundo BECKER et. al. (2002), a noção de Desenvolvimento Sustentável vem sendo utilizada como portadora de um novo projeto para a sociedade, capaz de garantir, no presente e no futuro, a sobrevivência dos grupos sociais e da natureza. Dentro das discussões ocorridas no GRUPO PERMANENTE DE EDUCAÇÃO DO CAMPO/MEC (2003), a educação deve ser uma estratégia para o Desenvolvimento Sustentável, onde neste ponto leva-se em consideração o respeito às diversidades, da situação histórica particular de cada comunidade, dos recursos disponíveis e, os anseios e necessidades dos que vivem no campo. A participação coletiva dos diversos atores está inserida num projeto maior de estabelecimento de uma melhoria na qualidade de vida, considerando todos os elementos que constituem o cenário rural em conexão com o cosmos. Pelo caráter de produção agrícola e pecuária que a Transamazônica apresenta, onde muitas vezes essas atividades produtivas são feitas de maneira inadequada, é que se pensou em construir um curso baseado nos pressupostos do Desenvolvimento Sustentável, onde o perfil do profissional que se quer formar possa atender de maneira equilibrada as diferentes características socioeconômicas, culturais e ambientais da região, a partir de uma produção agropecuária. Desse modo, busca-se a médio ou longo prazo, fundamentar na região uma formação profissional voltada para a prática adequada do uso do solo e de outros recursos naturais (floresta, água, etc.), considerando para isso todas as especificidades locais.
Neste sentido buscou-se construir um Projeto Político-Pedagógico, onde se primou por um currículo onde o eixo transversal do curso é o Desenvolvimento Sustentável e o tema central dos três anos é o AMBIENTE, considerado na sua complexidade, ou seja, envolvendo todos os aspectos biofísicos e socioculturais. Assim, considera-se que o ser humano, a família e a comunidade fazem parte do ambiente. Cada ano possui um foco temático dentro do AMBIENTE, que possui, por sua vez, sub-temas que envolvem os diversos conteúdos trabalhados. No primeiro ano foi realizado o diagnóstico socioambiental envolvendo a família e principalmente a comunidade. Através deste diagnóstico preliminar, o aluno trouxe elementos da realidade em que vive, passando a conhecer melhor o ambiente e refletindo sobre ele (como é o solo, os demais recursos naturais, o que as famílias fazem, que problemas existem no nível do uso dos recursos, que conseqüências sobre a sustentabilidade, que relações entre as famílias, religião, parentesco, formas de organização, discussão dos problemas e soluções no PA, etc.). No 2 o ano, o foco temático foi a Análise e Aprofundamento do Diagnóstico. O aluno teve a oportunidade de aprofundar cada elemento que ele observou do cenário do PA no ano anterior, conhecendo melhor os sistemas de produção, o manejo das culturas, do solo, etc. No 3 o ano, está se trabalhando o Plano de Ação com experimentações no nível dos estabelecimentos agrícolas e comunidade. Avanços e Fragilidades Muitos avanços foram obtidos desde o decorrer do projeto até o momento, a saber: sensibilização quanto ao modo inovador de concepção de formação profissional (não-disciplinar e nãofragmentado) por parte dos educandos; relações humanas pautadas no exercício da ética e do respeito ao outro como verdadeiro outro; desenvolvimento e sensibilização aos aspectos ligados a arte e cultura (estímulo a música, ao teatro, a pintura, desenho, produção literária, poesias, etc.); visão integrada ser humano x meio ambiente; percepção da importância de um profissional técnico que saiba respeitar diferentes saberes, entre outros. Outro avanço que se tem observado é quanto a percepção dos educandos sobre sua própria realidade, por meio do exercício do uso da abordagem sistêmica na realização das atividades de campo e diagnóstico do estabelecimento e comunidade, passando a perceber o estabelecimento agrícola como Agroecosistema e valorizar o saber local. Nas atividades pedagógicas desenvolvidas tanto no TE (Figuras 5 e 6) como no TC, se investe muito no exercício dos diagnósticos pautados nas temáticas abordadas na alternância e a partir desses diagnósticos são levantados debates acerca da realidade dos municípios. O diagnóstico é uma ferramenta importante por influenciar diretamente na metodologia interdisciplinar, pois além de apontar a realidade sobre a qual se debate, é a partir dos dados observados que se tenta construir os momentos formativos.
No âmbito da interdisciplinaridade, um avanço importante no processo da educação é a didática usada pelos educadores, como é o exercício do feedback na construção do conhecimento, estabelecendo uma relação dialógica para exercitar a capacidade crítica dos educandos. Além do diagnóstico feito a partir de pesquisa de campo, são feitas problematizações a partir de questõeschave que acabam induzindo a novos diagnósticos e que instigam os educandos a perceberem a sua realidade e o seu papel dentro desse contexto (tanto no campo técnico da produção, como no âmbito ambiental e humanitário). O que vem se percebendo no ensaio do exercício da atividade profissional no TE (através de atividades pedagógicas, como seminários, dramatizações e debates), os educandos se posicionam como agentes de desenvolvimento e, apesar da discussão sobre Agroecologia ainda ser timidamente compreendida pelos educandos, concebem o Desenvolvimento Sustentável como inerente ao Desenvolvimento Rural. A partir da intenção de se pensar os conteúdos a serem trabalhados de acordo com um tema gerador elencado pelos agricultores (educandos e comunidade), a falta de domínio de conteúdos específicos, principalmente da Base Nacional Comum do Ensino Médio, dificultou algumas vezes o exercício da construção dos conteúdos da Base Profissionalizante. Neste caso, foi previsto no projeto a contratação de profissionais, chamados de facilitadores, para intervenção pedagógica durante os TE s. Esses facilitadores atuam em determinados momentos dos TE s, quando os educadores permanentes do projeto sentem necessidade da intervenção. Esse tipo de inserção é considerado importante no sentido de aprofundamento dos conteúdos e temáticas das áreas do conhecimento a qual o facilitador é requisitado. Todavia, a inserção de profissionais que não trabalham a partir do princípio da interdisciplinaridade na equipe, mesmo que somente em algum período do TE, pode vir a fragilizar o processo de interligação dos conteúdos pelo risco do não entendimento da metodologia do curso por parte do facilitador. Assim, a preocupação de escolher facilitadores que minimamente percebam o enfoque do projeto se apresenta sempre como uma preocupação da coordenação pedagógica do curso, muitas vezes fomentada a partir de reuniões e oficinas de preparação e discussão da dinâmica do projeto.
Figura 4: Educandos em aula prática sobre curva de nível. Figura 5: Educandos em aula prática sobre a cultura do cacau. Considerações Finais O rompimento da formação baseada nos princípios da visão cartesiana, disciplinar, fragmentada, não constitui tarefa fácil. O exercício diário deste projeto nos mostrou claramente que muito temos ainda para caminhar, aprender, experimentar; mas o exercício inicial tem sido possível. O desafio se fez presente desde a elaboração da proposta aos dias de hoje. A quebra de nossa estrutura educacional enraizada no sistema disciplinar surge como um grande anseio, pois esse tal sistema, muitas das vezes burocratizado, deixa-nos amarrados a seguir regras que dificultam a prática e o cotidiano da viagem pelo caminho da interdisciplinaridade. O exercício vivenciado mostra-nos que um outro formato de formação profissional é viável, apesar dos entraves que nos são colocados permanentemente. A prática diária dos educandos em suas localidades, seus discursos, suas
produções escritas, suas expectativas, tornam-se elementos vivos dessa possibilidade. O enfoque no Desenvolvimento Sustentável se mostrou igualmente relevante como uma mudança de paradigma que pode ser seguida, mas antes de tudo, uma reflexão a ser feita, um caminho a ser trilhado. Os efeitos significativos do projeto são de sobremaneira importantíssimos para o desenvolvimento da Transamazônica, um território historicamente esquecido no âmbito das políticas públicas voltadas para uma educação libertadora, pautada nos princípios da dialogicidade, do senso crítico e da figura humana como elemento-chave da transformação da realidade. A escolha do tema Ambiente, como ponto norteador de toda trajetória do Curso, possibilitou um cenário riquíssimo de debates e reflexões, o que não podia deixar de ser, pois a Transamazônica tem sido até os nossos dias um território fértil de luta pela justiça no campo, pela educação pública, gratuita e de qualidade, pela reforma agrária e pelo desenvolvimento baseado nos princípios do respeito a diversidade socioambiental, bem como sua proteção. Agradecimentos Agradecemos imensamente aos agricultores e agricultoras da Transamazônica e Xingu, aos Movimentos Sociais da região; ao INCRA - Superintendência de Belém, na pessoa do Donato Alves; às Casas Familiares Rurais de Uruará e Brasil Novo; à Embrapa Amazônia Oriental; à CEPLAC-Altamira; ao Laboratório Agroecológico da Transamazônica (LAET); e todos aqueles que direta ou indiretamente contribuem de alguma forma para o sucesso do Projeto. Referências bibliográficas BECKER, D. F. et. al. Desenvolvimento Sustentável: necessidade e/ou possibilidade? 4ª edição. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2002. CADERNO DO TERRITÓRIO/SDT/MDA. Transamazônica, Volume I. <http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/transamaznicapa2>. Acesso em: 21 de abril 2008. CALDART, R. S. Elementos para construção do Projeto Político e Pedagógico da Educação do Campo. In: MOLINA, M. C. & JESUS, S. M. S. A. (Orgs.). 2004. Por uma Educação do Campo: contribuições para a construção de um Projeto de Educação do Campo. Brasília, Vol. 5. 2004. JESUS, S. M. S. A. de. Questões paradigmáticas da construção de um projeto político da Educação do Campo. In: MOLINA, M. C. & JESUS, S. M. S. A. de (Orgs.). 2004. Por uma Educação do Campo: contribuições para a construção de um projeto de Educação do Campo. Coleção por uma Educação do Campo, n 5. Brasília, DF, 130 p., 2004.
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