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Transcrição:

REPV - Núcleo de Estudos da Sociedade Contemporânea - NESC Raphael Nunes Nicoletti Sebrian 1 O presente trabalho tem como objetivo discutir brevemente algumas questões acerca do pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche, mais especificamente suas considerações sobre a história, seus problemas e suas possíveis soluções, a partir de suas obras Para a Genealogia da Moral e a segunda de suas Considerações Extemporâneas (ou Intempestivas), intitulada Da utilidade e dos inconvenientes (ou das desvantagens) da história para a vida. Utilizaremos também como referência um texto de Michel Foucault, Nietzsche, a genealogia e a história, de sua obra Microfísica do Poder. As questões que procuraremos discutir da filosofia nietzschiana se referem às características de sua genealogia, suas concepções de história, seus conceitos de tempo e suas contribuições para a criação de uma metodologia para o trabalho historiográfico. CARACTERÍSTICAS DA GENEALOGIA DE NIETZSCHE Sobre as características da genealogia de Nietzsche, poderíamos encontrar diversas interpretações. No entanto, nos basearemos fundamentalmente na interpretação de Foucault já citada anteriormente, além de procurarmos pensar a partir dos trechos da Genealogia que analisamos. Para Foucault, a genealogia de Nietzsche [...] é cinza; [...] é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos [...] Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda a finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história [...] apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram [...]. 2 1 Departamento de História, UNICENTRO, Guarapuava PR, Doutorando em História Social Universidade de São Paulo (USP). 2 FOUCAULT, 1986, p. 15. Páginas [ 69-75 ]

É preciso que tenhamos paciência e dominemos o saber em suas minúcias para que possamos criar genealogicamente. Nietzsche não cria sua genealogia em radical oposição à história, pois o genealogista deve ter o cuidado de escutar a história ao invés de crer na metafísica, e assim pode compreender que a essência das coisas não possui uma origem, mas que esta foi sendo construída aos poucos, evidenciando-se que não é possível encontrar no começo histórico dos eventos a identidade da origem, mas a discórdia entre as coisas, [...] o disparate. 3 Nietzsche genealogista recusa, em certas ocasiões, a pesquisa da origem, sobretudo quando esta procura recolher na origem [...] a essência exata da coisa [...] sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. 4 Realizar a genealogia, seja da moral, do conhecimento ou de qualquer objeto que se pretenda analisar, não deve ser, para Nietzsche, partir em busca de sua origem, mas se ater às meticulosidades e aos acasos dos começos. Deve-se partir em busca da proveniência e da emergência das coisas. É preciso ser metafísico para procurar uma alma para as coisas na idealidade longínqua da origem. NOÇÃO DE TEMPO HISTÓRICO SEGUNDO A GENEALOGIA A noção de tempo histórico presente na genealogia nietzschiana se constitui essencialmente a partir dos conceitos de Eterno Retorno e de Vontade de Potência. O conceito nietzschiano de Eterno Retorno procura apresentar uma alternativa para a interpretação que consiste em atribuir um sentido racional para a história, uma história que tenha como fim último a liberdade. Segundo o Eterno Retorno nietzschiano, que se baseia na teoria de enfrentamento das forças, o tempo se apresenta numa relação cíclica, mas distinta daquela criada pelos antigos, que ele chama de Eterno Retorno dos Antigos, segundo os quais o tempo teria uma origem que continha em si tudo que era possível desenvolver ao longo da história. Para Nietzsche, só seria possível justificar esse tipo de teoria se acreditarmos na existência de um Deus que simultaneamente seria responsável pela criação e também pela destruição das coisas. A ciência apresenta como contraponto a esta interpretação o Eterno Retorno dos Modernos, no qual já não existe um Deus, mas a ciência como a explicação para o Tempo. No entanto, a origem proposta pelos modernos e pela ciência também se situa em um evento que contém em si todos os pressupostos para o desenvolvimento das coisas (o Big Bang) e, portanto, também não é suficiente para compreender o tempo ao longo da história, pois também acredita em uma essência e em uma origem pura para a história, desconsiderando, de antemão, as especificidades e particularidades dos acontecimentos ao longo do tempo, fundamentais para Nietzsche. 3 Idem, ibid., p. 18. 4 Idem, ibid., p. 17. Páginas [ 70-75 ]

Como o princípio fundamental de organização nietzschiana é a Vida, se faz necessário que a história e o tempo histórico possam servir a Vida, assim como a vida deve servir a história. Como a vida dos indivíduos se constitui em relações de forças diversas aplicadas sobre os corpos dos mesmos, e como estas forças podem agir tanto em afirmação da vida como em negação, a história também pode vir a se desenvolver ativamente ou reativamente. No desenvolvimento ativo do tempo histórico (devir ativo), em que as forças ativas e criativas predominam sobre as forças reativas e destrutivas, o eterno retorno é o Eterno Retorno da Diferença, pois com as diferentes configurações de forças que variam ao longo da história, é impossível que retornemos ao ponto inicial de partida tal como alguns procuram encontrar em sua essência. No entanto, para Nietzsche, vivemos em um momento de desenvolvimento reativo do tempo histórico (devir reativo), em que as forças reativas não suportam a instabilidade da vida e procuram retornar à origem para possivelmente encontrar a estabilidade, efetivando um Eterno Retorno do Mesmo. Exemplos de expressão das forças reativas poderiam ser aqueles que constituem a Moral de Escravo, a Moral Cristã, que leva a impossibilidade de acreditar no mundo em que vivemos e na capacidade que temos de criar neste mundo, tentando fazer com que nos resignemos e acreditemos em entidades imaginárias como a Razão ou um Deus, que surgiria com o Fim dos Tempos e nos recompensaria pelo sofrimento causado pela vida. Portanto, para o filósofo, houve um tempo na história em que havia criação e atividade (tempo da cultura no sentido pré-histórico), em que as forças ativas tentavam adestrar as forças reativas, ou seja, tentavam fazer com que estas adquirissem capacidade de adaptação às forças criativas. No entanto, houve um momento em que as forças reativas deixaram de exercer seu poder de adaptação, fazendo com que as instituições que serviam ao adestramento se perpetuassem e acabassem se transformando em instrumentos da reatividade, destinados ao domínio das forças reativas sobre as ativas. Isto fez com que entrássemos no tempo da cultura no sentido histórico, em que as forças reativas e destrutivas predominam, gerando a degeneração da cultura da humanidade. Esta predominância das forças reativas sobre as ativas, segundo Nietzsche, se dá em três momentos: o ressentimento, a má consciência e, por fim, o niilismo. Para ele, se o adestramento tivesse sido realizado efetivamente, atingiríamos o tempo da cultura no sentido pós-histórico, no qual as forças reativas estariam totalmente convertidas para a criação. Estas diferentes configurações nas relações de forças ao longo do tempo são o objeto de estudo da Genealogia da Moral nietzschiana, que procura explicar, através da relação de forças implicadas pela moral, o motivo pelo qual vivemos em um período de devir reativo. A história tem um papel fundamental na constituição de um devir reativo, já que em geral nos sobrecarrega com o passado, fazendo com que deixemos de criar no presente e contribuindo para a separação entre existência e tempo histórico. Para que possamos criar uma história que esteja em interação com a vida e que nos possa ser útil, temos que utilizar o esquecimento, evitando assim a sobrecarga do passado sobre os indivíduos. A Páginas [ 71-75 ]

história nos é útil a partir do momento em que permite que o esquecimento dilate a fronteira existente entre a vida e a história. UM MÉTODO HISTORIOGRÁFICO A PARTIR DA GENEALOGIA Analisando as concepções de genealogia e de tempo histórico de Nietzsche, somos levados a pensar sobre o desenvolvimento de uma metodologia para o trabalho historiográfico a partir da genealogia nietzschiana. Nietzsche, na segunda de suas Considerações Extemporâneas ( Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida ), procura realizar a crítica da forma através da qual os historiadores do século XIX sobretudo os alemães, de formação hegeliana estavam realizando a construção de seus métodos para a aplicação no trabalho historiográfico. Ele critica, sobretudo, a busca constante de uma continuidade histórica, o estabelecimento de uma origem, uma procura da essência dos acontecimentos, e uma interpretação do tempo histórico como um processo decorrente das características desta origem, realizando-se assim a separação entre a existência, a vida dos indivíduos, e o tempo histórico em que estes estão inseridos. A história, do ponto de vista nietzschiano, da genealogia, deve ser uma história das variações e diversidades das práticas de poder sobre os indivíduos e entre estes indivíduos, ou seja, da descontinuidade e das especificidades destas práticas. Portanto, seria impossível encontrar desenvolvimentos contínuos na história, uma vez que esta está repleta de acontecimentos descontínuos e particulares. Para realizar esta crítica da historiografia corrente em sua época, Nietzsche, em sua segunda Consideração Extemporânea, descreve cuidadosamente cada uma das formas existentes de desenvolvimento historiográfico (naquele momento): a História Monumental, a História Tradicionalista e a História Crítica. Cada um destes tipos de história reflete uma das necessidades pelas quais o ser vivo precisa da história: a História Monumental reflete a necessidade do ser vivo de ser ativo e criativo na história; a História Tradicionalista reflete a necessidade do ser vivo de conservar e venerar a história; e a História Crítica reflete a necessidade de libertação do ser vivo. Contudo, Nietzsche nos mostra também os problemas contidos em cada uma destas concepções de história: a História Monumental, por buscar uma continuidade e uma interligação entre grandes momentos da história, faz com que os indivíduos percam a capacidade de perceber os acontecimentos em sua singularidade; a História Tradicionalista pode levar a perda de uma criação do novo, pois se preocupa em fazer com que os indivíduos reatem com suas origens e sintam satisfação e prazer e por conseqüência que se conformem com sua existência cotidiana, abafando assim a capacidade criativa da vida; e a História Crítica faz com que corramos o risco de, ao julgar o passado, julguemos também o presente, fazendo com que o presente perca o sentido e Páginas [ 72-75 ]

que venhamos a atingir uma ilusão de que poderíamos ter tido uma outra história. Assim, para que possamos realizar uma história que possa servir à vida na medida exata, uma história do ponto de vista da genealogia nietzschiana, devemos procurar compreender os objetos históricos a partir de sua emergência e de sua proveniência (ou procedência). A proveniência é uma categoria que nos permite descobrir as marcas sutis, singulares que podem se entrecruzar em um indivíduo, idéia ou sentimento, tornando possível ordenar as marcas diferentes e colocá-las à parte. Ela também permite, sob o prisma específico de um caráter ou de um conceito, reencontrar a proliferação dos acontecimentos através dos quais ( graças aos quais, contra os quais 5 ) eles se formaram. A proveniência faz com que mantenhamos o que se passou na dispersão que lhe é própria, demarquemos os erros, as falhas; nos possibilita descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos [...] não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. 6 A proveniência diz respeito ao corpo: O corpo [...] é o lugar da proveniência: sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito. O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo. 7 Já a emergência designa o ponto de surgimento, que se produz sempre em um determinado estado das forças. É o princípio e a lei singular de um aparecimento. A análise do ponto de vista da emergência deve procurar evidenciar de que forma as especificidades da proveniência dos objetos produzem diferentes estados de forças nestes objetos, e até mesmo nas relações entre os objetos. A emergência é, portanto, a entrada em cena das forças, sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude. [...] Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo, a emergência designa um lugar de afrontamento. [...] Ninguém é portanto 5 Idem, ibid., p. 21. 6 Idem, ibid., p. 21. 7 Idem, ibid., p. 22. Páginas [ 73-75 ]

responsável por uma emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela sempre se produz no interstício. 8 Ou seja, devemos perceber que [...] se interpretar era colocar lentamente em foco uma significação oculta na origem, apenas a metafísica poderia interpretar o devir da humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por violência ou subrepção, de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em um outro jogo e submetê-lo a novas regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes. Trata de fazê-las aparecer como acontecimentos no teatro dos procedimentos. 9 Portanto, através da genealogia podemos atingir a prática de uma história efetiva, na medida em que ela reintroduzir a descontinuidade em nosso próprio ser. A história efetiva faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de único e agudo, pois as forças que se encontram em enfrentamento na história não obedecem nem a uma destinação nem a uma mecânica, mas apenas ao acaso da luta. Para evitarmos que essa história efetiva se transforme em um conhecimento demagógico e até certo ponto religioso, para conservarmos esta genealogia da história enquanto análise genealógica, devemos nos apoderar dela e voltá-la contra seu nascimento, e não fundá-la. Devemos nos tornar mestres da história para dela fazer um uso genealógico, libertando o sentido histórico da história supra-histórica. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nietzsche nos fornece alguns pressupostos fundamentais para que pensemos a prática historiográfica, e não apenas aquela que se fazia na Alemanha do século XIX pelos hegelianos, mas também a historiografia que produzimos atualmente, e que muitas vezes ainda resvala nos mesmos problemas apontados por Nietzsche para a Alemanha de fins do século retrasado. Devemos pensar então sobre a utilidade do pensamento de Nietzsche para o historiador, e de que forma poderíamos utilizar este pensamento tão singular e específico para que pudéssemos enfrentar os problemas e as questões que a história nos apresenta. A história ultimamente tem se voltado cada vez mais para a vida, como propunha Nietzsche, mas isso gerou inúmeros questionamentos quanto à validade e o caráter de seus novos objetos e temas. Mas lembremos que 8 Idem, ibid., p. 24. 9 Idem, ibid., p. 26. Páginas [ 74-75 ]

Nietzsche afirma a necessidade do caráter radical das transformações, e não apenas que se faça a substituição de valores e que se procure realizar questionamentos superficiais. O ser histórico ainda permanece como ser por vezes determinado, e para que possamos indeterminar este ser se apresenta como de fundamental utilidade o pensamento nietzschiano. É preciso que o historiador invista na ousadia criativa proposta por Nietzsche, rompendo com a lógica de negação da vida e criando assim um saber histórico que potencialize a vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In:. Microfísica do Poder. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 15-38. NIETZSCHE, Friedrich W. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. In:. Considerações Intempestivas. Portugal/Brasil: Presença/Martins Fontes, 1976, p. 101-205.. Para a Genealogia da Moral. Coleção Os Pensadores, Vol. XXXII, (Obras Incompletas). São Paulo: Abril, 1974, p. 305-333. Páginas [ 75-75 ]