JUIZ, LEI E GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA*

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Transcrição:

81 JUIZ, LEI E GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA* Márcio Túlio Viana** Estava me lembrando, um dia desses, da Praça Navona. Muitos de vocês a conhecem: é talvez a mais bonita do mundo. Mas não era de sua beleza que eu me lembrava: era das cartomantes. Toda noite, quando ia lá, via as suas mesinhas, com velas e baralhos. Isso me fez pensar também em Ronald Reagan. Não que ele frequentasse a praça; é claro que não. Mas dizem que não dava um passo sem consultar os astros. Tinha não sei quantos videntes a seu serviço na Casa Branca. Perguntarão os colegas: mas porque tantos devaneios? E o que têm a ver cartomantes e presidentes com essa palestra de fim de tarde? É que a vida é cada vez mais incerta. As verdades uma a uma se vão. Já não se sabe, sequer, qual é o maior rio do mundo, se foram mesmo os egípcios que construíram as pirâmides, ou se Cristo morreu pregado na cruz. Há algum tempo ganhei de um primo um livro chamado Cigarro faz bem à saúde. Quem escreveu foi um médico, Phd não sei onde. O livro me animou a continuar fumando os meus dois cigarrinhos diários; já o meu primo, não sei bem por quê, continuou a mascar fumo de rolo... É a única pessoa que eu conheço que mantém esse velho hábito. O fato é que o mundo está tão incerto, tão instável, que as pessoas ficam aflitas à procura de certezas. Um dia desses, em Curitiba, nós mesmos nos perguntávamos: a justiça é uma solução ou um entrave? No mundo do trabalho, as dúvidas são ainda maiores. Na verdade, são tantas as dúvidas, e tantas as contradições, que achei mais seguro colocar as idéias nestas folhas de papel. Por isso, espero que me perdoem a traição. De todo modo, prometo palavras simples: tentei escrever como se estivesse falando. E não serão mais do que 40 minutos. Começo contando uma história.o herói dessa história se chama Sir Evelyn Ellis. Vocês, com certeza, nunca ouviram falar dele. Era um lorde inglês, e provavelmente tinha a sua bengala, o seu monóculo e o seu relógio de bolso. Mas o que ele queria, mesmo, era ter um carro. E por isso procurou uma fábrica de máquinas e ferramentas. Naquele tempo - fim do século passado - as fábricas de ferramentas começavam a produzir automóveis. Mas Sir Ellis era um homem exigente. Queria um carro do seu gosto. Por isso desenhou, ele próprio, os assentos. Discutiu a transmissão. Falou sobre o volante e os freios. Era tudo muito natural, e ninguém se espantou com isso. Algum tempo depois, Sir Ellis entrava para a História: foi o primeiro inglês a chegar de automóvel em sua casa de campo. Da cidade até lá, eram 90 longos quilômetros. E ele provavelmente pensava em seu inadiável chá das cinco. Por isso, pisou fundo no acelerador - e chegou em 5 horas e 32 minutos. * Palestra proferida no TRT da 3ª Região, em julho de 1998. ** Juiz do TRT da 3ª Região e Professor da Faculdade de Direito da UFMG.

82 Foi um recorde: 16 quilômetros por hora! Mas foi também uma ilegalidade. O máximo permitido, para os cavalos da época, eram 6,44 quilômetros horários... O problema é que Sir Ellis era um lorde. Não lhe ficava bem violar a lei. Por isso, convenceu seus pares a adaptá-la aos novos tempos... e aos novos cavalos mecânicos. O limite de velocidade passou então para 19,32 quilômetros por hora! A história de Sir Ellis revela traços da primeira grande crise. E tem algo em comum com a crise que vivemos hoje. Mas comecemos do começo: como funcionavam as coisas no tempo de Sir Ellis? Havia, como sabemos, um outro modelo de Estado. Seu papel fundamental era o de proteger a propriedade. Quanto à lei, já era igual para todos, muito embora, como disse um autor, alguns fossem mais iguais do que os outros. Por isso, o capital era livre. Voava como queria. Mas queria voar mais alto, como o carro de Sir Ellis. O problema era o motor: alcançara o seu limite. Em outras palavras: produziase pouco - e caro - para um mercado crescente. Mas como resolver o problema? Como produzir em massa? Como subir os lucros? Quem respondeu a essas perguntas foi especialmente Frederick Taylor. Dizem que era um maníaco: desde mocinho, andava com um cronômetro na mão, medindo os seus passos e movimentos. Mas era também um homem inteligente. Taylor notou que já se dividia o trabalho, mas bem menos do que se podia. E isso encarecia e emperrava a produção. E o que era pior: facilitava a resistência operária. A sabotagem, por exemplo, nasceu naqueles tempos. A palavra sabot, em francês antigo, traduzia-se por tamanco. Os operários jogavam tamancos nas engrenagens das máquinas. Taylor sabia que, quando um homem resolve construir alguma coisa - uma vara de pescar, por exemplo - ele primeiro concebe, depois executa. É diferente do que acontece com os animais, que não antecipam sua própria obra. Por isso, sua primeira idéia foi dividir o homem. Separou a mão e o cérebro, o pensar e o fazer. Quanto mais mecânico fosse o trabalho, melhor e mais barato seria. Em seguida, depois de um estudo detalhado de tempos e movimentos, foi subdividindo, metodicamente, cada função. No início, aplicou seus métodos no chão da fábrica. Depois, nos escritórios. Nascia a chamada gerência científica. Os colegas sabiam, por exemplo, que em média gastam 0,033 minutos para mover-se em suas cadeiras giratórias? Ou 0,04 minutos para abrir uma gaveta de arquivo? Mas atenção: se a gaveta for do meio, são 0,026 minutos! Descobertas de Taylor e de seus discípulos... Já o lendário Henry Ford era um misto de mecânico, empresário e inventor. Ele percebeu que, mesmo dividindo o trabalho, havia muita perda de tempo. Primeiro, porque os operários iam e vinham de uma máquina para outra. Depois, porque as pequenas peças variavam muito de forma e tamanho. Era impossível usar o mesmo tipo de parafuso mais de uma vez. Um dia, Ford resolveu dar um passeio pelos abatedouros de frango de Chicago. E descobriu que era possível fazer com que as peças viessem aos homens, em vez de irem os homens atrás das peças. Bastava instalar uma esteira rolante - e foi isso que ele fez. Ao mesmo tempo, uniformizou as peças. Tornou-as intercambiáveis. E essas mudanças eliminaram tempos inúteis, acentuando ainda mais a divisão de trabalho.

83 Para cada função, um homem - ou um pedaço de homem. O próprio Ford dizia que o seu famoso Modelo -T podia ser construído por 670 operários sem pernas, 2 367 de uma perna só, dois sem braços, 715 de um braço só e 10 cegos. Com a mecanização do trabalho, reduziram-se os espaços de resistência. Já não eram os homens a controlar as máquinas: as próprias máquinas controlavam os homens. E já era possível produzir em massa. Acontece que os riscos eram em massa também. E, para reduzí-los, nada melhor do que controlar, de alto a baixo, todo o ciclo de produção. Mais uma vez, Ford deu o exemplo: em poucos anos já possuía navios, minas de ferro e até uma plantação de borracha na Amazônia. Nascia a empresa vertical, como um prédio de apartamentos. Produção em massa exigia infraestrutura - e então apareceu o Estado, com Itaipus e rodovias. Mas produção em massa pedia, também, consumo em massa. E, para um consumo em massa, não bastava baixar os preços. O Estado completou a obra, com políticas de bem-estar. Produção em massa exigia, também, máquinas grandes e caras: impossível trocá-las a cada momento. Por causa disso, os produtos tinham de ser homogêneos: eram poucos os modelos, e custavam a sair de linha. Uniformes os produtos, também os homens se uniformizaram - todos eles trabalhando como peças de um relógio. Mas a produção em massa pedia, também, emprego em massa. E esses dois componentes - pleno emprego e homogeneidade - fortaleciam o movimento operário. Para resolver o problema, Ford dobrou os salários - e, aos poucos, todos seguiram o seu exemplo. Nasceu, implicitamente, uma espécie de pacto. Os sindicatos já não questionavam o sistema: lutavam apenas por ganhos crescentes. Até Lenine citava Taylor como um exemplo a seguir. Ao mesmo tempo, para neutralizar qualquer resquício de resistência, as fábricas armavam-se com uma rede intrincada de poder, com dezenas ou centenas de níveis hierárquicos. Esse modelo econômico gerou também o seu direito. Homogêneo, duradouro, abrangente. Tal como os produtos. Tal como a fábrica. Um direito que é também ambivalente: combate pelos oprimidos, ao mesmo tempo em que ajuda a legitimar a opressão. Produção em massa, consumo em massa, direitos em massa. Tudo parecia bem: como se dizia, o círculo era virtuoso. Uma a uma, como num jogo, as peças encaixavam-se. E foi exatamente por isso que - quando uma delas saiu do encaixe - o modelo entrou em crise. Qual teria sido a peça que se desencaixou primeiro? É difícil saber. Mas talvez tenha sido a do consumo. Os choques do petróleo elevaram os preços. Com isso, o consumo se retraiu. Então, o Estado perdeu renda, e começou a cortar as políticas sociais. Com isso, caiu ainda mais o consumo. Os sindicatos já não conseguiam salários crescentes. E a própria lei perdia eficácia. Os custos aumentaram. Cresceu a resistência. O pacto rompeu-se. A concorrência aumentou. O círculo deixou de ser virtuoso. Passou a ser vicioso. E então, tal como um urso que acorda, o capital se mexeu. Pois era preciso, mais uma vez, manter a dominação e subir as taxas de lucro.

84 Nasceu o novo modelo: o da produção flexível. Com ele, uma nova ideologia, uma nova questão social e um novo modo de pensar o direito. E também um novo mercado - um mercado global. Para isso, o capital pediu a ajuda da ciência, cada vez mais comprometida com os interesses econômicos. Quais as origens desse modelo? Na verdade, suas origens são remotas. Vêm dos anos 50. Foi quando a Toyota entrou em crise - antecipando, de certo modo, a crise global dos anos 70. No Japão ferido pela guerra, as taxas de lucro caíam, a resistência aumentava, o consumo se retraía. Era preciso mudar - e foi o que fizeram o empresário Toyota e seu engenheiro Taiichi Ohno. A palavra de ordem foi reduzir os custos - e diversificar os produtos. Para isso, trataram de eliminar a porosidade da fábrica. Um exemplo: os estoques. Era preciso acabar com eles. Outro exemplo: os movimentos. Os operários deviam aproveitar cada instante de seu tempo. Mas, ao mesmo tempo, era também necessário minar as resistências, e a solução foi introjetar nos operários a idéia de que a empresa era uma coisa deles. Mas deixemos de lado o Japão e visitemos uma empresa moderna. Como ela funciona? Qual é a sua lógica? A lógica é reduzir custos. E uma das estratégias é externalizar. A empresa joga para as outras tudo aquilo que não pertence ao foco de suas atividades. Mas de outro lado reintegra-se, formando grupos de parceiras. Já não é como um edifício: é um conjunto de casas. O vertical horizontaliza-se. Nos vácuos deixados pela grande empresa, multiplicam-se as empresas pequenas. Mas sua liberdade é aparente - pois dependem de seus contratos para viver. Por isso, travam entre si uma guerra desesperada. E essa mesma guerra se reproduz entre os trabalhadores, numa espécie de seleção natural, em busca da sobrevivência. É como disse um autor: o capitalismo tem a grande sabedoria de fazer com que os outros lutem por ele. Se as pequenas empresas lutam pela sobrevivência, não costuma ser assim no que toca às grandes. Cada vez mais elas se unem, partindo o mercado em fatias e limitando a concorrência. Um exemplo: em breve, cruzará os nossos ares um Super- Jumbo da Boeing, Airbus, Douglas, Mitsubishi e Fugi. Outros exemplos: apenas quatro corporações controlam 92% dos eletrodomésticos norte-americanos. No mundo inteiro, cinco empresas respondem por 70% da produção de bens duráveis de consumo. Assim, como se vê, a rede de parceiras que forma a base não tem nada a ver com a rede de parceiras que está no topo. Concorrência em baixo, oligopólios em cima. Em termos de poder, o vertical verticaliza-se. E o que acontece no interior da empresa enxuta? Cada vez mais se automatiza. E isso lhe permite descartar ainda mais a mão-de-obra excedente. Quanto aos produtos, são mutantes. Estão sempre variando, ao sabor dos consumidores. E os consumidores mudam de gosto a cada instante, não tanto porque estejam ficando mais exigentes, como se diz, mas porque o próprio mercado os impele a isso. Para vender numa economia saturada, nada melhor do que multiplicar necessidades. O problema é que - mesmo provocados - esses variáveis desejos têm

85 componentes imprevisíveis. Por isso, toda empresa tem de estar sempre pronta para mudar produtos e ritmos. Não pode se dar ao luxo de ter estoques - nem de materiais, nem de homens. Por isso, tudo funciona ao avesso. Ao invés de um segmento da produção despejar no subsequente as suas peças e matérias-primas, gerando estoques intermediários, cada qual pede ao anterior exatamente o que precisa, na medida certa. Os erros têm de ser corrigidos na hora, e depressa, e por isso as informações correm velozmente de um ponto a outro. O sistema trabalha sem folgas, sem falhas, sem fôlego. Tudo é transparente - como num tubo de cristal. E tudo é móvel: homens, máquinas, produtos. Se já não há tantos chefes, é simplesmente porque eles não são mais necessários. A qualidade é tão total que envolve o próprio homem. E quanto mais produtivo ele é, mais ameaçado estará - no futuro - o seu emprego. Aliás, num certo sentido, a própria fábrica, de imóvel que era, torna-se móvel. Viaja em busca de mão de obra barata, tributos menores, sindicatos frágeis, políticas favoráveis... e direitos sem eficácia. E mesmo quando não planeja viajar, usa essa possibilidade latente como arma de pressão. Isso faz com que cidades, regiões e países inteiros passem a disputá-las, tal como acontece com as parceiras que estão na sua base. Dou-lhes um exemplo real: tenho uma amiga que era secretária de planejamento numa cidade mineira. Certa vez, uma multinacional anunciou que talvez fosse para lá. Entre outras coisas, exigia uma área de 5 milhões de metros quadrados, alojamentos, um clube de campo, empréstimos subsidiados, isenção de tributos... E o pior é que tudo não passava de um blefe: desde o início, a empresa já sabia que não ia implantar sua fábrica ali. Notem os colegas que o movimento das peças mudou - mas, tal como antes, elas se encaixam perfeitamente. Estados fracos - e corporações fortes. Produtos descartáveis, baratos, variados. Trabalhadores descartáveis, baratos, fragmentados. Para a grande empresa, é bom que haja desemprego, precariedade, economia informal. É graças a isso que ela pode contratar a preço baixo os serviços de suas parceiras. Não é à tôa que a bolsa de Nova Iorque sempre cai quando caem os índices de desemprego... Do mesmo modo, é ótimo que as fronteiras se abram, pois assim a empresa pode, por exemplo, pagar 1,6 dólares a hora, no México, pelo mesmo trabalho que nos Estados Unidos custa 6. Ou até usar mão-de-obra infantil, como acontece na Tailândia. Ou o trabalho escravo, como no Brasil. Seja diretamente, seja por vias travessas. E é também interessante que se partam os grupos - pois o poder sindical reduz-se. E se o sindicato é fraco, nada melhor do que abrir espaços, cada vez maiores, à livre negociação. Especialmente sem a interferência da lei para reequilibrar a balança. Com o sindicato em crise, muda a relação entre a lei e a negociação coletiva: antes, a lei estipulava o mínimo; hoje, o mínimo vai-se tornando o máximo. Muda a própria posição dos atores: o empresário é cada vez mais ativo e o sindicato cada vez mais passivo.

86 Na verdade, o sistema briga com todas as formas de representação - e, no limite, talvez seja incompatível com a própria negociação coletiva. Tende, cada vez mais, ao fragmentado, ao individual, ao arbitrário. Depende cada vez menos do trabalhador assalariado. Margareth Thatcher sintetizou a mudança: não há sociedade - disse ela - só indivíduos. É esse conjunto de peças que viabiliza o modelo. É essa instabilidade que lhe dá - paradoxalmente - uma certa estabilidade. É assim que crescem os lucros, os ritmos e o domínio. Tal como um doente em coma, o trabalhador tem de lutar com mais força exatamente quando as forças lhe faltam... Para respaldar tudo isso, um novo modelo de direito e uma forte ideologia. A ideologia diz que tudo que é público, é ruim. Seu papel é deslegitimar o Estado, pois é o Estado, com todas as suas contradições, o principal agente de redistribuição de riquezas. Governo não é solução, é problema - discursava Ronald Reagan, enquanto protegia as suas fronteiras dos produtos japoneses. E a ideologia, hoje, tem muito mais força do que jamais teve, pois se vale de uma mídia altamente sofisticada. E o que dizer da lei? Tal como os produtos, ela busca a divisão, o fragmento. Do mesmo modo que os grupos, ela se parte em pedaços. Aparentemente, isso é positivo: novas relações, novas regras. Parece até que o direito vai ficando maior. Além do mais, como se diz, o contrato padrão vai sumindo. Cada vez menos gente trabalha sem prazo, com jornada inteira, para um só empregador. O problema é que a lei não é apenas um retrato da realidade. Ela ajuda a criá-la. A lei reforça, legitima, convence. É transformada, mas transforma. E a lei também ilude, mascara, entorta. Tal como a jurisprudência e a doutrina. Vejam, por exemplo, o caso da subordinação. A voz geral é que está em crise. E sendo ela, como é, a pedra de toque do emprego, o direito do trabalho perde o seu ponto de apoio. Mas acontece que nunca o trabalho foi tão subordinado - exceto, talvez, quando a própria lei não existia. 1 Na verdade, como dizia Nelson Rodrigues, é preciso desconfiar das unanimidades. Nem sempre o discurso da moda reflete o real, nem sempre a modernidade... é moderna. O Direito do Trabalho sempre teve um componente ambíguo: legitima o capital, protegendo o trabalho. Agora, parece buscar o unívoco: prioriza, cada vez mais, o capital. Mesmo quando as palavras não mudam, muda a postura do intérprete - cada vez mais envolvido pela nova ideologia. E mesmo quando a leitura não muda, a eficácia da norma reduz-se. Repete-se, com a lei do Estado, o mesmo fenômeno que afeta a lei do grupo: quando mais se precisa dela, menos força ela tem. Qual a solução para a crise? O que esperar do futuro? O que esperar do juiz? Não sei o que poderiam dizer as cartomantes da praça Navona, mas os autores estão divididos. Uns apostam no futuro. Para esses, a automação nos trará liberdade, a engenharia genética vai matar a fome do mundo, a informática nos dará o controle do saber e o fim da guerra fria já nos trouxe paz eterna. O único problema será administrar o lazer. 1 A propósito, v. a excelente tese Mundialização, neoliberalismo e novos marcos conceituais da subordinação, do colega paranaense Reginaldo Melhado (apresentada no último Conamat, em Curitiba)

87 Para outros, o futuro é de terror. Nem mesmo os vitoriosos gozarão sua vitória. O mundo global globalizará a miséria, hordas de famintos invadirão as cidades e o mundo explodirá em múltiplas guerras civis. Para uns, a solução está dentro do sistema. Para outros, o sistema não comporta soluções. Afinal, se todos perderem o emprego, quem irá comprar os produtos? Como diria Brecht: tantas perguntas, poucas respostas... Mas talvez o melhor seja ser pessimista, para lutar, otimistamente, por um futuro menos negro. Pergunto: e como pode lutar o juiz? Eu diria que o juiz deve repensar os seus conceitos. E reaprender, com a canção, a caminhar contra o vento. Tentar usar a lei como arma de mudança. Usar suas horas livres para aprender novos caminhos. Denunciar, a cada passo, as contradições do sistema. Trocar, quando for o caso, a segurança pela justiça. Lutar pela greve, pela cogestão, e, de um modo geral, para fortalecer a ação coletiva. O juiz deve, como disse alguém, embriagar-se de nostalgia - não de uma época que já passou, mas de uma época que ainda não existe. Mas deve, sobretudo, abrir os olhos para o mundo - e eu sei quanto isso é difícil, pois nossa função nos impele a viver em pequenas ilhas. É que não estamos juízes; somos juízes. De corpo inteiro. Noites e dias. Eu mesmo, durante um bom tempo, vivi entre sentenças... e pescarias. Hoje pego um romance para ler, e vem-me a sensação de que estou perdendo tempo. Minha esperança é que sou distraído: um dia, quem sabe, leio um Machado de Assis achando que estou lendo Celso Barbi, ou - melhor ainda - pego o carro para o Tribunal, e acabo chegando na beira de um rio...