OS PANFLETOS DE EULÁLIO DE MIRANDA MOTTA E O DIÁLOGO COM O SEU DOSSIÊ ARQUIVÍSTICO

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Transcrição:

OS PANFLETOS DE EULÁLIO DE MIRANDA MOTTA E O DIÁLOGO COM O SEU DOSSIÊ ARQUIVÍSTICO Patrício Nunes Barreiros (UEFS-PPGLL-UFBA) patriciobarreiros@hotmail.com Célia Marques Telles (UFBA) cmtelles@ufba.br [...] cada texto [...] é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza e com a história. [...] é possível [...] a reprodução mecânica do texto (por exemplo, a cópia), mas a reprodução do texto pelo sujeito (a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2006, p. 310-311). 1. Introdução Os arquivos de escritores têm proporcionado importantes trabalhos de investigação, seja através de edições de obras inéditas, de estudos do processo de criação, explorando rascunhos e manuscritos (o laboratório do escritor), seja através da publicação e estudo de correspondências, de diários, de fotografias, de coleções de postais, de documentos e objetos diversos. As arcas dos escritores revelam os bastidores da vida privada de seu titular e as relações deste com outros sujeitos. O arquivo de Eulálio de Miranda Motta (1907-1988) apresenta um conjunto substancial de documentos que se relacionam principalmente com a sua atividade literária. Trata-se de documentos manuscritos, datiloscritos e impressos que trazem as marcas do processo de criação das obras do escritor, compondo dossiês genéticos; cartas ativas e passivas, prefácios manuscritos, estudos temáticos e bibliografias que se relacionam com determinadas obras, constituindo-se em importantes elementos paratextuais; e documentos iconográficos (fotografias e postais); documentos pessoais (diplomas, certificados, títulos etc.); recortes de jornais e revistas; e, até mesmo,

1904 objetos pessoais que também se relacionam com determinadas obras, constituindo-se no que chamamos de dossiê arquivístico. Neste estudo, pretende-se demonstrar como o acervo do arquivo de Eulálio Motta se relaciona com a sua obra literária, tomando como exemplo um panfleto publicado em 22 de abril de 1977 e que trata dos problemas de sinal de televisão em Mundo Novo. 2. O arquivo do escritor e suas possibilidades de estudo Os documentos literários começaram a ser colecionados a partir do momento em que o culto ao grande escritor surgiu no imaginário coletivo, no século XV. Colecionavam-se os textos dos escritores clássicos para serem imitados, servirem de parâmetro para a escrita literária. Nos séculos subsequentes, os manuscritos dos grandes escritores tornaram-se relíquias e eram até mesmo comercializados. Inúmeros estudos de crítica textual têm demonstrado esta sociologia do manuscrito ao tentar estabelecer textos de escritores como Camões e Lope de Vega, por exemplo. Segundo Souza (2003, p. 68), foi o filósofo alemão Wilhelm Diltthy quem fez a primeira grande defesa dos arquivos literários, em 1889. A partir de então, forma criados na Europa diversos centros e institutos dedicados a arquivar os documentos gerados pelos escritores. Inicialmente o foco de interesse destas instituições era preservar os manuscritos literários como objetos de memória. Posteriormente, os interesses pelos manuscritos começaram a gravitar em torno do processo de criação das obras literárias, instituindo as bases da crítica genética. Hoje, entretanto, os interesses pelos arquivos de escritores têm um horizonte bastante amplo, avançando em outras direções para além do texto literário, permitindo estudos no campo da história cultura, da semiótica, da análise de discurso, dependendo dos tipos de documentos disponíveis no arquivo. O crescente interesse pelos arquivos de escritores e suas múltiplas possibilidades são decorrentes do retorno da figura do autor que durante muitos anos foi rechaçado em nome de uma visão estruturalista e das influências dos formalistas russos nos estudos da teoria e da crítica literária. Estes arquivos revelam não apenas a escritura de uma obra, mas, sobretudo, o modo de vida do escritor, as múl-

1905 tiplas relações entre o sujeito que escreve e os artefatos culturais que o cerca. O lugar do escritor na sociedade é agora reivindicado como passível de oferecer contribuições para o entendimento de uma prática cultural instituída numa determinada localidade e numa determinada época, revelando as condições de produção, circulação e recepção dos textos. Ademais, os escritores, muitas vezes, colecionam fragmentos do passado que não se relacionam diretamente com o o- fício literário e que revelam uma face da história que não se percebe em fontes oficiais das instituições. Por conta disso, os estudos em torno dos arquivos dos escritores interessam sobremaneira aos estudiosos da história cultura que priorizam as práticas sociais, as representações, as questões do indivíduo, a subjetividade e as histórias de vida. Além disso, os arquivos dos escritores revelam a história do texto no sentido próprio do termo. Em muitos casos, é possível a- companhar a gênese e a recepção de uma obra, a partir de cartas, diários, recortes de notícias, ademais de relacionar documentos e objetos à obra, enriquecendo a sua leitura a partir da constituição de importantes paratextos. Segundo Derrida (2001, p. 29) [...] o arquivamento tanto produz quanto registra o evento, assim, os documentos do arquivo do escritor trazem o registro de um evento, mas produzem novos sentidos à medida que se convertem em objetos de estudos de uma pesquisa científica. No Brasil, a formação de arquivos literários relaciona-se aos desdobramentos das idéias de Mário de Andrade na década de 1930 que se preocupou em constituir uma mentalidade de preservação do patrimônio histórico cultural. Carlos Drummond de Andrade chamou a atenção para a importância de se constituir um museu da literatura que, segundo ele, trataria de preservar a tradição escrita brasileira, constante não só de papéis como de objetos relacionados com a criação e a vida dos escritores. Eis o trecho de uma crônica de Drummond: Velha fantasia deste colunista e digo fantasia porque continua dormindo no porão da irrealidade é a criação de um museu de literatura. Temos museus de arte, história, ciências naturais, caça e pesca, anatomia, patologia, imprensa, folclore, teatro, imagem e som, moedas, ar-

1906 mas, república... de literatura não temos... Mas falta o órgão especializado, o museu vivo que preserve a tradição escrita brasileira, constante não só de papéis como de objetos relacionados com a criação e a vida dos escritores. É incalculável o que se perdeu e o que se perde por falta de tal órgão. Será que a ficção, a poesia e o ensaio de nossos escritores não merecem possuí-lo? (DRUMMOND apud VASCONCELLOS, 1999, p. 41). Ao que parece, a reivindicação de Drummond foi atendida. Hoje, o Brasil conta com importantes centros de pesquisa de acervos de escritores, alguns deles bastante desenvolvidos e com repercussão internacional, como o Arquivo-Museu da Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e a Fundação Casa de Jorge Amado, na Bahia, para citar apenas dois exemplos. Entretanto, muitos arquivos de escritores ainda continuam sendo destruídos por familiares que os consideram velharias inúteis. Ir ao encontro destes velhos baús e lhes dar o tratamento digno de seu valor histórico é um desafio para quem se arvora nestas missões próximas às aventuras de Indiana Jones. O primeiro desafio é fazer com que os familiares percebam a importância do pesquisador no tratamento da documentação, no âmbito da preservação e do estudo científico do conteúdo dos acervos (acesso e estudo). O segundo desafio é encontrar uma instituição que possa assumir a guarda dos documentos de forma responsável e que ofereça o tratamento técnico merecido. Quando se trata de um escritor canônico, as dificuldades são de outra ordem, pois certamente a documentação não fica órfã. Mas como a literatura não vive apenas de cânones, existem os escritores que ainda não tiveram seu lugar ao sol e, para que um dia possam tê-lo, faz-se imprescindível o tratamento de seus acervos documentais e que se realizem estudos sérios que possa dar visibilidade a sua obra e a atuação do escritor como sujeito histórico. É neste contexto, que se insere o arquivo de Eulálio de Miranda Motta (1907-1988), constituído pelo próprio autor ao longo de sessenta anos. Este arquivo contém uma infinidade de documentos, desde manuscritos que revelam o laboratório do escritor, obras inéditas manuscritas, cartas, diários, fotografias, postais, livros, documentos pessoais, diplomas, coleções de jornais, etc. O acervo de documentos foi encontrado em 1999, onze anos após a morte do autor e,

1907 desde então, busca-se sistematizar e estudar este arquivo que já recebeu outros documentos doados por amigos e familiares do autor. O arquivo de Eulálio Motta tem revelado um escritor até então desconhecido, pois em vida ele publicou apenas três livros de poesias, textos dispersos em jornais e panfletos. Entretanto, Eulálio escreveu muitas outras obras que se encontram inéditas, deixadas no prelo em busca de uma oportunidade para serem publicadas. Quem é o escritor Eulálio Motta? Autor de uma pequena obra publicada ou um escritor que tinha uma compulsão pela escrita e que deixou uma obra vasta, porém inédita? O escritor é o que publica ou o que escreve? Ao se debruçar sobre o acervo do arquivo de Eulálio Motta estas perguntas surgem inevitavelmente. O arquivo revela outra face do escritor e que não é conhecida, mas o que fazer com esta infinidade de documentos? Convertê-los em peças de museu ou dar a conhecer ao público através de edições e estudos científicos? Eulálio Motta organizou o seu arquivo, selecionou cuidadosamente os documentos, separou-os por tipo e os guardou a espera de quem um dia pudesse interessar-se. E isso aconteceu. A documentação chegou às mãos de um estudante de letras que resolveu estudar o acervo, inicialmente como bolsista de iniciação científica e depois como professor da Universidade Estadual de Feira de Santana. Hoje, onze anos depois, o arquivo do escritor já deu origem a uma dissertação de mestrado, um livro e vários artigos científicos a- presentados em congressos. Está em andamento uma tese de doutorado e em 2008 foi constituído na Universidade Estadual de Feira de Santana um grupo de pesquisa que trabalha em torno do Arquivo de Eulálio Motta, desenvolvendo o projeto de pesquisa intitulado Edição e Estudos das obras de Eulálio de Miranda Motta. Este grupo debruça-se sobre o acervo do arquivo, como o fim de explorar suas potencialidades científicas, realizando estudos no campo da filologia textual; da crítica genética; da lexicografia; da análise das variantes, compondo um quadro estilístico e dos usos iscribendis do autor; da história da literatura baiana, situando a obra do autor e seu diálogo com os grupos que se formaram na Bahia a partir da década de 1920; da história cultura, investigando a ação de Eulálio na política baiana através de sua ação como integralista.

1908 O arquivo de Eulálio Motta não está disponível ao público em geral, somente os pesquisadores ligados ao projeto de pesquisa mencionado acima têm acesso aos documentos. No momento, a guarda do acervo encontra-se sobre a responsabilidade de Patrício Nunes Barreiros a quem foi confiada pelos familiares do escritor. No futuro, depois de resolvida a questão legal de doação do acervo, pretende-se depositá-lo numa instituição que possa garantir a guarda e a preservação dos documentos. As edições preparadas pelo grupo de pesquisa Edição e Estudos das Obras de Eulálio de Miranda Motta têm como objetivo explorar as potencialidades do arquivo. Não apenas o dossiê genético através dos manuscritos e papéis que se referem ao processo de criação, mas também os documentos que podem ser relacionados ao texto, tais como fotografias, postais, cartas, anotações em diários etc. Este conjunto de documentos que mantêm relações com o texto, mas que não se relacionam com o seu processo de criação, denomina-se dossiê arquivístico. Assim, busca-se conciliar o dossiê genético e o dossiê arquivístico na constituição de uma edição que valorize não apenas a produção literária do autor, mas também os documentos que possam constituir-se em importantes elementos paratextuais. No momento, o grupo de pesquisa estuda modelos de edições que possam dar conta da pluralidade de textos e documentos iconográficos relacionados com as obras do escritor e que integram o seu arquivo. 3. Os panfletos de Eulálio Motta Eulálio Motta cultivou a prática de publicação de panfletos em Mundo Novo durante mais de cinquenta anos, de 1940 a 1986. São textos de apenas uma folha, impressos em tipografias ou em mimeógrafos-estêncil. As dimensões das folhas variam de acordo com o tamanho do texto. O próprio Eulálio custeava as publicações e providenciava a distribuição pela cidade. Nem sempre os seus textos eram bem recebidos e, algumas vezes, causavam polêmicas, originando respostas das partes ofendidas que também publicavam um panfleto. Assim, na cidade de Mundo Novo, institui-se a prática de publicação de panfletos como uma forma de travar debates ideológicos e políticos partidários. Muitas vezes, os assuntos circulavam em

1909 mais de um panfleto e povoava o imaginário do escritor durante algum tempo. 4. O dossiê arquivístico para a edição do panfleto Nossa Telé... No arquivo do escritor forma encontrados além do panfleto impresso; dois manuscritos do texto; um texto manuscrito que trata do tema, intitulado A Televisão e D. Coelba ; um panfleto que retoma o assunto tratado no panfleto Nossa Telé... ; e três fotografias da mesma ocasião da publicação do panfleto e que flagra uma cena do cotidiano da cidade de Mundo Novo, registrando o comportamento das pessoas diante da televisão. a) O panfleto Nossa Telé... : publicado em 22 de abril de 1977. A folha mede 300mm X 120mm, em tinta preta, contendo 39, título em caixa alta no centro da página, 9 estrofes com 4 versos de 7 sílabas métricas. Trata-se de um poema de cordel no qual o autor denuncia o problema do sinal da televisão em Mundo Novo. b) Manuscrito 1, no Caderno Diário de um João Ninguém, no f. 15r e no f. 15v, com emendas, correções e rasuras. Percebe-se, em relação ao manuscrito 2, que se trata da estágio 1 da escrita do processo de escrita do texto. c) Manuscrito 2, no Caderno Diário de um João Ninguém, no f. 17r e f. 17v, trata-se de um texto passado à limpo do manuscrito 1 com poucas correções e rasuras. d) Manuscrito Televisão e D. Coelba, trata-se de um manuscrito em 4 fólios, um crônica na qual o autor critica o problema da energia elétrica que falta constantemente na cidade, causando transtornos, impedindo as pessoas de manterem-se informadas através da televisão. e) Panfleto intitulado Chegou!, o panfleto trata da chegada do telefone à cidade de Mundo Novo, mas critica ainda a falta de soluções para o problema da televisão. Este panfleto também será editado e mantém um link com acessá-lo. f) Fotografias: são três fotografias que flagram uma cena do cotidiano da cidade de Mundo Novo, revelando o impacto da televi-

1910 são na vida das pessoas. As fotos são do ano de 1977, quando o sinal de televisão finalmente chegou à cidade mudando a rotina, introduzindo novas práticas culturas. 5. Plano da edição Após elencar os documentos que se relacionam com o panfleto em questão, propõe-se uma edição que possa dar conta deste dossiê, valorizando os documentos que podem possibilitar estudos no campo da crítica genética e da história cultural. Portanto, propõe-se uma edição digital, com hiperlinks para acessar os fac-símiles dos textos, sejam os manuscritos ou os impressos, e a visualização das fotografias. Este tipo de edição permite ao leitor ou ao pesquisador visualizar os suportes dos documentos, bem como os gestos de escritora do autor. O texto de base é o texto impresso e à direita inserem-se hiperlinks para as variantes do texto (fac-símiles dos manuscritos). Abaixo do texto de base, apresentam-se links para os paratextos (impressos, manuscritos e fotografias) Veja-se o exemplo da edição. NOSSA TELÉ... A chuva está sendo pouca... Apenas borrifa o chão... Aqui só não falta chuva 5 Na nossa televisão É piada e na mais A nossa televisão, Com treme-treme e ruído Só nos tráz desolação. m1 m2 m1 m2 10 Nosso bom televisor m1 m2 Sem termos televisão, É mobília de enfeitar Algum canto do salão. Com esperança não morre, 15 Há muita gente a esperar... Há pessoas afirmando Que a coisa vai melhorar... m1 m2

1911 Dizem elas que prefeitos De uma extensa região, 20 Incluindo Mundo Novo Vão nos dar televisão... m1 25 Televisão para valer... Televisão de verdade, Inclusive a colorida, Virá pra nossa cidade... Não acredito entretanto, Por Deus do Céu, por Jesus Que possamos ter telé Com esta fraqueza de luz... m1 m1 m2 30 Não acredito que possam m1 m2 Nos trazer televisão Se não nos trouxerem antes A nossa sub-estação. Sem esta tudo é debalde... 35 Bolodório... lero-lero... A telé sem energia Por Deus do céu que não quero! m1 m2 LIOTA M. Novo, 22/4/77 m1: Manuscrito (Caderno Diário de um João Ninguém f. 15r e f. 15v) m2: Manuscrito (Caderno Diário de um João Ninguém f. 17r e f. 17v) foto 1 foto 2

foto 3 Chegou! Televisão E. D. Coleba 1912 6. Conclusão A partir da discussão empreendida aqui, percebe-se que os documentos dos arquivos de escritores precisam deixar de serem considerados objetos de museu, devendo ser inseridos no contexto das pesquisas científicas. Nas edições, é possível incluir além do dossiê genético, outros documentos dos arquivos, ou seja, o seu dossiê arquivístico precisa ganhar forma e serem inseridos nas edições, convertendo-se em paratextos que auxiliem no entendimento dos textos editados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986. GUIMARÃES, Júlio Castañon. Entre periódicos e manuscritos. In: SOUZA, Eneida Maria de. MIRANDA, Wander Melo (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 101-115. LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Tradução Bernardo Leitão. Campinas: Unicamp, 1996. LEAL, Geraldo da Costa. Perfis urbanos da Bahia: os bondes, a demolição da Sé, o futebol e os gallegos. Salvador: Gráfica Santa Helena, 2002.

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