Aqui ninguém reza por ele! Trânsitos fúnebres entre o Bangladesh e Portugal



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ÁREA TEMÁTICA: Grupo de Trabalho 1 A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajectos num mundo em globalização Aqui ninguém reza por ele! Trânsitos fúnebres entre o Bangladesh e Portugal MAPRIL, José Estudante de doutoramento em Antropologia Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa jmgoncalves@ics.ul.pt Resumo Uma das mais recorrentes narrativas sobre migrações é ver os seus agentes como os novos cosmopolitas e os representantes de culturas desterritorializadas, viajantes. Estes permitiriam pensar novas formas de cidadania assentes noutros laços que não o Estado-nação bem como na criação de novas paisagens, as etnopaisagens. Em suma, os migrantes seriam as figuras da contemporaneidade por representarem os fluxos e um mundo sem fronteiras. Mas será de facto assim? O que pretendo com esta apresentação é complexificar estes discursos através de uma pesquisa sobre a morte e a sua gestão entre migrantes bangladeshis em Lisboa. O argumento central é que num contexto transnacional a morte é uma forma dos sujeitos pensarem a sua relação com os lugares de pertença e a fixidez. Isto é, a gestão da morte revela que nem tudo é fluxo, que as pessoas continuam fortemente apegadas a lugares, lugares estes cuja própria (re)produção, enquanto territórios de pertença e identidade, se relaciona, dialecticamente, com os fluxos transnacionais em que muitos dos meus interlocutores participam. Palavras-chave: migrações internacionais, transnacionalismo, lugares, morte NÚMERO DE SÉRIE: 295

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Um dos discursos mais recorrentes sobre as migrações é ver os seus agentes como os novos cosmopolitas e os representantes de culturas viajantes, os cosmopolitas vernaculares, de que Stuart Hall e Homi Bhabha nos falam. Estes permitiriam pensar novas formas de cidadania assentes noutros laços que não o Estado-nação bem como na criação de novas paisagens. Os migrantes seriam assim as figuras da contemporaneidade por representarem os fluxos e um mundo sem fronteiras. Por exemplo, Michael Taussig, em Mimesis and Alterity (1993), argumenta que a emigração Sul - Norte revelaria a porosidade das fronteiras culturais, geográficas, políticas ou étnicas. De uma metafísica do sedentarismo, para usar o conceito de Liisa Malkki (1995), onde tudo estava parado e isolado, passámos para uma metafísica da mobilidade, onde tudo é fluxo, desterritorialização e mobilidade. Mas será que de facto a realidade é assim tão dualista? A pesquisa que desenvolvi entre bangladeshis em Lisboa alertou-me para a necessidade de olhar criticamente para tais narrativas não só porque as fronteiras não deixaram de existir mas também porque as pessoas não deixaram de se relacionar com lugares concretos. Muitos dos meus interlocutores produzemse por relação a determinados lugares, lugares estes que são, por sua vez, produzidos nessa mesma relação. Quando falo aqui de lugar refiro-me a espaços de pertença produzidos e reproduzidos pelos sujeitos durante as suas experiências de vida. Ao longo desta apresentação argumentarei, inspirando-me nos escritos de Birgit Meyer e Peter Geschiere, que a mobilidade e os fluxos globais são acompanhados por processos de encerramento nos quais a produção de lugares assume uma importância central. Tal argumento será explorado através de um exercício etnográfico sobre a morte e o morrer entre muçulmanos bengalis em Lisboa. Antes de prosseguir, porém, é necessário perceber quem são estes migrantes. I Os bangladeshis começaram a chegar a Portugal em 1986 e ainda hoje este fluxo migratório se mantém activo. Corresponde a pouco mais de duas mil pessoas legalmente registadas nos serviços de imigração - apesar dos mais de quatro mil registos no consulado geral do Bangladesh. Como acontece em Espanha e em Itália, a maioria é oriunda de estratos sociais intermédios, aquilo que no Bangladesh tem vindo a ser classificado como a nova e afluente classe média, urbanizada e com elevados níveis de instrução. Para estes vir para a Europa não é uma forma de escapar à pobreza mas sim uma estratégia de acesso àquilo que no Bangladesh dá pelo nome de adhunik o moderno e, ao mesmo tempo, de aceder ao estatuto de adulto. As cadeias migratórias que serviram de esteio à formação deste surpreendente fluxo estão directamente relacionadas com os processos de regularização levados a cabo em vários contextos da Europa Meridional, desde finais dos anos oitenta até à actualidade. Muitos encontravam-se já na Europa e apenas chegaram a Portugal na procura de oportunidades de legalização impossíveis de aceder noutros contextos do espaço Schengen. Esta é uma migração que apresenta até ao momento duas facetas distintas. Por um lado, os pioneiros, aqueles que chegaram no final dos anos oitenta e inicio dos anos noventa, que começaram por trabalhar nos sectores mais desprivilegiados e que hoje são proprietários de vários negócios. Constituíram as suas unidades domésticas e são exemplos de sucesso e êxito; um modelo para muitos dos recém-chegados. 3 de 7

Por outro lado, encontramos os recém-chegados, os chamados freshies, aqueles que chegaram para os processos de regularização de 2001, e continuam ainda hoje a chegar para o actual. Trabalham nos sectores mais desprivilegiados ou no mercado de trabalho criado pelos pioneiros e na maior parte dos casos são solteiros. Muitos chegaram a Lisboa isoladamente, e portanto é comum não terem família em Portugal, e o seu projecto migratório é ainda incerto. Neste contexto migratório, como é então gerida a morte e o morrer? II Entre os bangladeshis em Lisboa, a morte de um parente no Bangladesh pode implicar uma súbita viagem de regresso. No entanto, e por motivos financeiros ou de estatuto legal, nem sempre é possível deslocar-se num espaço de tempo curto e sem planeamento. Além disto, e como ocorre noutros contextos islâmicos, é crença generalizada que o corpo deve ser enterrado o mais depressa possível e como tal nem sempre há tempo para preparar e fazer uma viagem que permita ainda participar no enterro. Perante tal cenário, uma das soluções é realizar algumas cerimónias fúnebres em Lisboa ao mesmo tempo que ocorrem no Bangladesh. Por exemplo, passados quarenta dias da morte é suposto organizar uma assembleia devocional para recitar orações e invocações em nome do falecido, seguindo-se a distribuição de comida, shinni. Esta é, por vezes, realizada também em Lisboa e para a qual se convidam vários membros da comunidade. Mas como é gerida a morte entre os próprios migrantes? O que acontece quando um bangladeshis morre em Lisboa ou no Porto? Desde 1986, altura em que terá chegado o primeiro bangladeshi a Portugal, até ao final de 2006, morreram treze bengalis em circunstâncias diversas. Doenças prolongadas, acidentes de trabalho e mesmo alegados crimes foram as principais causas das mortes. Todos foram a enterrar no Bangladesh excepto um, ao qual voltarei um pouco mais adiante. As despesas e organização da transladação do corpo ficaram a cargo dos pioneiros. Enquanto símbolos de sucesso e êxito, assumem frequentemente o papel de líderes da comunidade, e é precisamente enquanto badralok, designação bengali para homem importante, Big Man, que são chamados para resolver situações de conflito ou gerir a morte de um conterrâneo. São eles que, juntamente com vários outros ajudantes, se encarregam da preparação das cerimónias fúnebres, com a explícita colaboração das principais instituições islâmicas em Portugal. Recorde-se que, em 2006, os muçulmanos bengalis criaram uma das mais importantes mesquitas no país, bem no centro da cidade de Lisboa a mesquita Baitul Mukarram (nome da mesquita central de Dhaka, a capital do Bangladesh). Pode albergar seiscentas a setecentas pessoas e é autónoma em relação a outras instituições islâmicas portuguesas ao nível cerimonial já que realiza as principais orações do calendário anual e diário. No entanto, como não dispõe de instalações para a realização das cerimónias e rituais fúnebres, os corpos são sempre encaminhados para a Mesquita Central de Lisboa ou a Mesquita Hazrat Bilal, no Porto, consoante a conveniência. São os funcionários destas mesquitas que habitualmente realizam as lavagens (ghosul), as abluções (wuzu) e embrulham o cadáver no kafan, a mortalha branca que é também usada pelos peregrinos durante a Hajj. Em seguida, o corpo é embalsamado, como aliás a lei obriga e selado num caixão para fazer a viagem de regresso ao Bangladesh. Uma agência funerária portuguesa é normalmente contratada para tratar do processo. 4 de 7

Posteriormente, o corpo é transportado para a sala de orações, ou, no caso da mesquita central de Lisboa, para o pátio interior, e realiza-se a salat-ul-janazah, a oração fúnebre. De acordo com os meus interlocutores, o número de crentes nesta oração deve ser significativo já que quanto maior for a congregação maior é o mérito, sowab, que o falecido receberá. Como tal, não é incaracterístico muitos bangladeshis se deslocarem de todo o pais para participar nestas orações, sendo por vezes, literalmente recrutados para participar. Num dos casos que acompanhei, cinco interlocutores foram ao Porto e regressaram no mesmo dia com o intuito de participar na oração fúnebre de um conhecido comum. Assim que possível começa-se a tratar do repatriamento do corpo. O preço da passagem equivale a meio bilhete de turística mas tem que se pagar à agência funerária e pedir a documentação apropriada ao Consulado Geral do Bangladesh. Todas estas despesas são suportadas através de colectas informalmente organizadas entre os pioneiros. Estas cotizações destinam-se também a recolher uma quantia que é posteriormente entregue à família ou à viúva, no Bangladesh, e que num dos casos chegou aos cinco mil euros. Cabe então à família ir buscar o corpo ao aeroporto. Nalguns casos aluga-se uma ambulância que transporta o corpo até ao cemitério e depois organiza-se o cortejo fúnebre e o enterro. Num dos casos, o caixão foi levado para a aldeia de origem, nos arredores da capital, e no terreiro onde se fazem as orações das duas principais festas do calendário anual, foi aberto com o intuito de desvelar o corpo - requisito essencial para realizar a salat-ul-janazah. Vários dias depois de falecer, e com a cara direccionada para Meca, foi finalmente enterrado na desh. Mas porque não enterrar o corpo em Portugal? Afinal, e como alguns membros da comunidade Islâmica de Lisboa se questionam, existe um talhão islâmico e uma vez que o enterro deve ocorrer com celeridade, para quê enviá-lo de volta para o país de origem? III Tal estratégia está relacionada com a crença generalizada na obrigatoriedade de ser enterrado na desh. Numa conversa sobre este facto Ali, um dos meus interlocutores, aprofundou esta ideia dizendo, e passo a citar: Aqui ninguém reza por ti porque ninguém te conhece. No Bangladesh, as pessoas quando passam no cemitério lembram-se de ti e portanto fazem uma du a em teu nome. O que Ali queria dizer era que cada oração feita em nome do falecido reverte a seu favor no futuro, quando os seus comportamentos forem avaliados por Deus, e nessa medida é necessário enterrar as pessoas nas imediações das sociabilidade mais próximas. Estas redes de relações sociais são indispensáveis para a derradeira viagem que a morte representa, afinal, quando o julgamento final chegar, todos, a começar pelos mortos, terão que prestar contas pelas suas acções na terra. Nesta medida ter parentes que fazem orações ou assembleias devocionais em nome ou homenagem do defunto é uma forma de adquirir mérito. Mas ser enterrado em Portugal está também relacionado com uma ideia de abandono. É como se a pessoa fosse abandonada à sua sorte, desprotegida e vulnerável. Esta mesma ideia foi me expressa por um dos meus interlocutores ao dizer que se morresse não nos deveríamos dar ao trabalho de o repatriar. Só iria dar trabalho à família e como não conseguia enviar dinheiro para casa mais valia ser deixado em Portugal. Enviar o corpo para o Bangladesh é igualmente uma forma de corresponder ao ideal, às noções de boa morte, como Maurice Bloch e Jonathan Parry lhe chamaram. Como tem sido extensamente documentado em várias etnografias sobre o Bangladesh (Kotalová 1996, Gardner 2002, Garbin 2004), a boa morte é aquela que ocorre junto dos seus, dos parentes, dos membros da unidade doméstica e da patrilinhagem e não sozinhos e junto de desconhecidos. 5 de 7

Ora se é no Bangladesh que estas se encontram então é ai o lugar da morte e do enterro, o que aliás é bem visível entre os bangladeshis no Reino Unido, o destino mais importante desta emigração, onde 60 a 70% dos corpos são repatriados. Mas o que é que acontece quando estas sociabilidades desaparecem? Quando os parentes morrem ou vivem todos no destino de imigração? Vejamos um caso. Alam estava em Portugal desde 1996 onde fazia o circuito nacional de feiras. Em 2001, sofreu um acidente de automóvel e ficou gravemente ferido. A ideia inicial era leva-lo para Dhaka mas a viagem foi fortemente desaconselhada. A esposa e os quatro filhos vieram então para Lisboa, com a ajuda do tio materno, e compraram um apartamento para poder tomar conta dele, que se encontrava em estado semi-vegetativo e portanto totalmente dependente. Em Janeiro de 2006, Alam faleceu em casa e a família decidiu enterrá-lo em Lisboa no talhão islâmico do cemitério do Lumiar. Estranhei tal decisão e quando questionados explicaram-me que ele deveria ser enterrado o mais depressa possível e como tal não queriam enviá-lo de volta para o Bangladesh. Além disso, Alam já não tinha parentes (atyio) no Bangladesh. O pai e a mãe já tinham falecido e único parente vivo, a irmã que vivia em Dhaka, não queria saber do irmão. Anos antes, depois do acidente, as relações com a família de Alam tinham-se deteriorado até ao corte de relações. Assim era desnecessário enviar o corpo para o Bangladesh pois não havia ninguém que pudesse tomar conta dele. A família estava em Portugal e não no Bangladesh. Neste caso, o genro e os filhos participaram nas abluções e na limpeza ritual do cadáver na mesquita central de Lisboa. Depois da salat-ul-janazah, onde estavam perto de trinta bangladeshis, entre os quais algumas das figuras mais proeminentes da comunidade, o corpo foi a enterrar no cemitério do Lumiar; foi o primeiro enterro bengali em Portugal. Através destes exemplos, revela-se a dimensão telúrica da morte, dimensão essa que é está directamente relacionada com a existência de sociabilidades e de relações sociais a quem o corpo é confiado. IV Depois desta breve descrição etnográfica, e para terminar, proponho que regressemos à antropologia, mais concretamente a Maurice Bloch e aos seus escritos sobre a morte e o morrer. No último capítulo do livro Death and the Regeneration of Life (1982), Bloch argumenta que a morte entre os Merina de Madagascar implica dois enterros. Um primeiro, nas imediações do lugar onde a pessoa faleceu com vista a limpar o cadáver das substâncias impuras que o compõem. Dois anos mais tarde, o corpo é transladado para ser novamente enterrado mas desta vez na campa onde se encontram os seus antepassados. A campa e o grupo de parentes equivalem-se e portanto ser enterrado naquela terra é o mesmo que se reunir com os parentes, passados, presentes e futuros. Este enterro na terra ancestral é a celebração da união com as redes familiares e uma vitória face à divisão e à separação que a vida quotidiana implica. O caso dos bangladeshis em Lisboa que explorámos ao longo deste paper remete, até certo ponto, para uma lógica comparável, apesar de algumas diferenças que convém salientar. Embora uma pessoa possa ser enterrada nas terras da família não é obrigatório que assim seja. È muito frequente serem enterradas em cemitérios públicos onde as campas são totalmente indistintas e não representam uma correspondência directa entre a terra e os antepassados. No entanto, não deixa de ser verdade que existe uma estreita relação entre uma terra, e os atyio, os parentes. 6 de 7

O que daqui emerge tem evidentes semelhanças com o argumento de Karen Fog Olwig (2007) segundo a qual num mundo crescentemente globalizado os lugares não deixaram de existir; eles continuam a ser produzidos no âmbito da vida social. Existe uma homologia entre lugares de pertença e noções de relatedness, o que, no caso apresentado, assume o seu oximoron na morte e no morrer. Através da territorialização da morte celebra-se uma união com um lugar onde as pessoas têm os seus parentes, amigos e conhecidos, união essa que é uma vitória sobre a divisão e a separação que a contemporaneidade implicou ao forçar muitos dos meus interlocutores a migrar, a vir para a Europa. De facto, e como Engseng Ho (2006) argumentou a propósito da diáspora iemenita no Oceano Índico, numa sociedade de migrantes o importante não é onde se nasce mas sim onde se é enterrado. Assim, e para regressar ao titulo desta comunicação, percebe-se como os trânsitos fúnebres entre Portugal e o Bangladesh são também projectos de produção de lugares, de fixidez, num mundo de fluxos, mobilidades e deslocamentos. Referências Bibliográficas Bloch, M., Parry, J., (1982), Death and the Regeneration of Life, Cambridge, Cambridge University Press Ho, E. (2006), The Graves of Tarim, Berkeley, University of California Press Malkki, L. (1995), Purity and Exile, Chicago, Chicago University Press Meyer, B., Geschiere, P., (1999), Identity and Globalization, London, Sage Olwig, K., (2007), Caribbean Journeys, Durham, Duke University Press Pina-Cabral, J. (1980) Cults of death in Northwestern Portugal. Journal of the. Anthropological Society of Oxford Taussig, M., (1993), Mimesis and Alterity, London, Routledge 7 de 7