1 RESENHA DO LIVRO A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE DO TRABALHO NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A PERSISTÊNCIA SECULAR DAS DESIGUALDADES, DE ADALBERTO CARDOSO Bernardo Vilela Ribeiro Bacharel em Relações Internacionais Uni BH e Pós Graduado em Administração FGV Ao realizar uma interpretação sobre a persistência da desigualdade no Brasil temos, diante dos olhos, uma tarefa que não é das mais fáceis, pois a raiz da questão remonta há séculos. No livro, Adalberto Cardoso propõe, em conjunto com a história, um exercício de reflexão para demonstrar que uma série de fatores cruciais fizeram e fazem com que o Brasil seja caracterizado como um país de grandes discrepâncias sociais. Neste sentido, a estrutura política dos últimos 250 anos contribuiu de forma enfática para a permanência da ordem vigente. Na exegese do autor, ao determinar que uma dada ordem se encontra desigual, devemos inicialmente lançar mão de um parâmetro de comparação. Neste sentido, Cardoso sugere que a percepção da igualdade ou da desigualdade pode variar de uma sociedade para outra. Além disso, carece perguntar em que sentido seria esta igualdade, aludindo à pergunta de Amartya Sen (1973) Igualdade de que?. Em uma lógica capitalista este sentimento é pautado principalmente em recursos materiais que proporcione bem estar ao indivíduo. Tal fato se encontra intimamente imbricado à noção e percepção da conjuntura como sendo justa/injusta e legítima/ilegítima, o que está amplamente ligado à consciência que o indivíduo a percebe, com relação ao outro, na reprodução da ordem. Critérios de justiça equitativa estão ligados às comparações interpessoais e às experiências vividas. Mesmo a percepção de ampla desigualdade em uma determinada sociedade, pode não ser elemento suficiente para se colocar em questionamento o quadro vigente. Determinados recursos podem desviar o clamor das classes menos favorecidas para outros horizontes através de elementos como a apatia, resignação ou fuga mística, caracterizando uma taxa de desconto diante de um futuro que possa vir a ser melhor, mesmo que este futuro seja extraterreno. O trabalho de Cardoso é dividido em duas partes. Na primeira vislumbramos uma reflexão histórica, na qual propõe se que o passado escravocrata e a sua lenta transição para o trabalho
2 livre, aliados à desconfiança das elites com os negros e seus descendentes, representam o alicerce do padrão social brasileiro, ou seja, exclui se grande parte da população no acesso ao trabalho e mobilidade social. Já a segunda parte se detém na significação da ruptura na era Vargas, com a criação de um arranjo jurídico que arrefeceu os ânimos da população economicamente ativa, o que fora denominado cidadania regulada, pautada em leis de organização das relações trabalhistas. Voltando ao ponto de partida podemos dizer que o embrião da desigualdade brasileira está relacionado principalmente pelo padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem capitalista do final do Império e do início da República. Concomitante a esta lógica, destacam se a fragilidade do Estado, a persistência da violência estatal contra o trabalho organizado, a diminuta participação do operariado e a fragmentação de obtenção dos meios de vida fora do trabalho formal. Adiantando o resultado da análise, podemos dizer que, tais elementos contribuíram enfaticamente para que a sociabilidade capitalista no Brasil tenha se caracterizado por uma inércia estrutural e, que atualizou os padrões sociais de divisão hierárquica muito resistentes às mudanças até meados de 1940. Da independência do Brasil até o fim da monarquia, o Estado brasileiro pode ser definido, de acordo com suas fraquezas, como possuidor de uma dificuldade em se enraizar. Neste sentido, o aparato burocrático atuava juntamente com os interesses das elites locais que garantiam a unicidade territorial. No âmbito econômico, a dependência dos recursos auferidos pela exportação de produtos agrícolas, majoritariamente o café, fizeram com que o poder central passasse por um processo de estrangulamento, sem vislumbrar uma alternativa que alavancasse as estruturas do Estado. Desta maneira, podemos dizer que o império constituiu um máquina centralizada com virtual monopólio de arrecadação de tributos (dificuldade de taxar o comércio interno) e com agente privados dotados de armas, que esperavam não mais que a não intervenção do poder público. Resumi se que, o Estado brasileiro, nas palavras do próprio autor, figurava como um Leviatã de múltiplas cabeças e com o corpo raquítico, em que a cabeça do imperador era apenas mais uma, nem sempre a mais importante. Nesta estrutura a desigualdade da sociedade brasileira esteve pautada na relação com propriedade, violência (privada ou estatal), favores e religião, regida por algum chefe local, resultando no distanciamento entre Estado e sociedade. O longo período escravocrata e a abolição da mesma no fim do século XVIII, fez com que cinco impactos decisivos, para a nossa sociabilidade trabalhista no capitalismo, se sobressaíssem: a opção paulista pelos imigrantes; a degradação do trabalho manual pela escravidão, em que o negro
3 só trabalharia se fosse forçado constituem as duas primeiras. O fraco aparato repressivo por parte do Estado para o financiamento, a reprodução, a supervisão e a repreensão do trabalho escravo; a consolidação de um padrão de violência estatal e privada, que sobreviveu ao fim da escravidão, refletindo na esfera trabalhista. O quinto impacto foi a sobrevivência no padrão de relações sociais entre capitalistas e operários, no início da industrialização (século XX), criou a percepção de que o brasileiro é cordial, ordeiro e pacífico. Por fim, a longevidade escravocrata fez com que as expectativas dos trabalhadores, de uma vida melhor, fosse delimitada pelo trabalho escravo, ou seja, pautada em mínimos vitais. Dessa maneira os trabalhadores brasileiros continuaram escravos da necessidade, em que se forjavam aspirações de vida. A pobreza generalizada no campo e as posições superiores inacessíveis, manteve fechado, por décadas, a expectativa de melhoria de vida. A Rigidez da ordem social pode ser traduzida, ainda, na desqualificação do negro e do elemento nacional como trabalhador, ou seja, o próprio povo brasileiro não era suficientemente qualificado para o trabalho, ao passo que se assistiu o encastelamento da elite econômica. Ainda discorrendo sobre a transição da Monarquia para a República, poucos fatores se alteraram. O mundo privado provincial continuava ditando as regras e impedindo a emergência da questão social na cena nacional, contribuindo para continuidade da desigualdade e a carência nos serviços de saúdes e educação. A distinção, desta vez, encontra se em dois fatores: a escolha dos arranjos legais que na constituição federativa de 1891 legava aos federados a tarefa de promover às próprias expensas suas necessidades, fazendo com que alguns estados se desenvolvessem mais que outros, como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. E as resoluções internacionais como o Tratado de Versalhes e a criação da OIT que repercutiram positivamente nas questões sociais brasileiras, determinando a instituição de legislação de proteção social. A ascensão de Getúlio Vargas representa um momento de ruptura da ordem mantida até então, o que não caracterizou diminuição das desigualdades, pelo contrário, esta só aumentou. Ao instituir uma série de leis que regulamentava o trabalho no Brasil, Vargas criou um processo que viabilizou a continuação de uma utopia brasileira, regulando a cidade, mas não o campo. A cidadania, pautada em símbolos como a carteira de trabalho e CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) nos traz a impressão de ter se constituído como um conjunto de direitos, que demarcou a linha de fronteira entre incluídos e excluídos. O que se sustenta é que a legislação trabalhista afogou o brasileiro em leis, que não foram instituídas a sério. O patronato, pautado nas ideias liberais vigentes, não aceitava a regulamentação por parte do Estado. A CLT torna se um
4 instrumento de luta dos trabalhadores, tendo que se qualificar para ser merecedor do seus próprios direitos. A cidadania regulada pelo Estado converte se na forma institucional da luta de classe, uma luta por efetividade dos direitos existentes. O projeto varguista trouxe consigo uma consequência desastrosa, um instrumento poderoso de força centrípeta, o êxodo rural. Diante da expectativa de melhora de vida gerou se um campo gravitacional urbano, atraindo muito mais gente para as cidades do que o mercado era capaz de absorver. A crença na promessa integradora de direitos serviu como forma de reprodução das desigualdades sociais no Brasil que se refletem até os dias de hoje. Entre 1940 e 1980 o Brasil passa por um período de grandes transformações, em um padrão econômico que se denominou desenvolvimentista. Cardoso avalia os traços marcantes dessa nova etapa que concentrou renda e gerou pobreza. Nesses 40 anos, Mesmo o PIB tendo se multiplicado por 15, o mercado de trabalho não conseguiu absorver grande parte dos candidatos, de forma que os que conseguiram alguma posição, não lograram de grandes êxitos no que tange à mobilidade social. Tal fato se deve à concentração de renda no Brasil que aumentou ascendentemente, atingindo seu auge na década de 1980. Os 10% mais ricos em 1960 detinham 39,6% da renda nacional, 46,7% em 1970 e 51% em 1980, em dados obtidos pelas PNAD s (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio). No último contexto histórico do livro, Cardoso analisa os impactos que o alargamento educacional trouxe para o Brasil. As décadas de 1980 e 1990 foram caracterizadas pelo aumento das credenciais escolares e entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho. Contudo, a educação não foi capaz de fazer com que os jovens alcançassem as melhores posições. Um mercado de trabalho pouco estruturado e regulado incorporou de forma não organizada a maioria dos jovens egressos do sistema escolar. Neste padrão culmina se o adiamento da entrada dos jovens no trabalho, desemprego no início da trajetória de vida e aumento da competição pelas posições superiores, o contribui mais uma vez para a continuidade das frustrações das expectativas e a manutenção das desigualdades no Brasil. Diante disso, quais os mecanismos que legitimam esta ordem tão desigual no Brasil? Cardoso interliga como argumentos, no início do livro, os critério de desigualdade social percebida, legitimidade da ordem e justiça distributiva. Desenvolve ainda uma discussão acerca de critérios de justiça baseado nas capacidades e nas necessidades. Na última parte do trabalho, tendo como base um Survey realizado pelo Iuperj/ISSP, Cardoso realiza um comparação entre trabalhadores do Brasil, da Alemanha, da Suécia e da
5 Polônia, questionando quais critério eram importantes para saber quanto uma pessoa deveria ganhar em termos financeiros. Foram alocados critérios distributivos, associados às capacidades e méritos. (i) se a pessoa faz bem o trabalho, (ii) se a pessoa é dedicada ao emprego (iii) as responsabilidades que o trabalho exige (iv) anos gastos em educação e treinamento (v) se o emprego é de chefia ou supervisão. O resultado é que o brasileiro, diferentemente dos outros países, tende a valorizar todos os aspectos, tanto os de capacidade, quanto os de mérito, mesmo se comparado com a Polônia, que tem níveis de desigualdade semelhantes aos do Brasil. A conclusão deste survey é a de que o brasileiro tende a legitimar a desigualdade no país, mesmo percebendo que a ordem é injusta e desigual, ela não é ilegítima, pois aqueles que ascenderam as melhores posições, que são mais exceção que regra, o fizeram porque aproveitaram melhor as oportunidades que apareceram em seu caminho e tiveram o benefício de contar com a sorte ou com a graça divina, encontrando melhores oportunidades ou as pessoas certas, quando na verdade o que ocorreu foi a falta de uma política que distribuísse de maneira equitativa recursos e oportunidades. Assim, a sociedade brasileira se apresentou para a maioria da população fechada no topo da pirâmide durante séculos, porém aberta nas posições inferiores. Transferiu se para cada indivíduo a responsabilidade de acesso ou não aos benefícios. Dado interessante levantado pelo autor é que, se criássemos uma categoria de trabalhador vulnerável que inclua os trabalhadores assalariados sem carteira e os não remunerados, temos como resultado a semelhança da estrutura do mercado de trabalho em 2006 com a do de 1960. Por fim sugere se que o que move o brasileiro é a fé na esperança de que o futuro será melhor do que o presente, mesmo que não exista tais garantias para a efetivação.