Construção de Identidades entre imigrantes portugueses e brancos de Angola no Rio de Janeiro



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Construção de Identidades entre imigrantes portugueses e brancos de Angola no Rio de Janeiro Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto Resumo: Ao longo do ano de 1975 chegaram ao Brasil milhares de imigrantes vindos de Angola Nascidos em Angola, ou em Portugal, tomados pelo medo devido à insegurança e a escalada da violência no país Africano naquele ano, ocorre o êxodo da minoria branca, negros e mestiços, em menor número também deixam o país. A migração em massa ocorre predominantemente no segundo semestre, sobretudo nos meses de Setembro, Outubro e Novembro. O Brasil recebe milhares desses emigrantes, que na imprensa são chamados de refugiados. Ao chegarem se instalam nas cidade de Rio de Janeiro e São Paulo. Posteriormente migrando para outras cidades do país. Hoje, é possível encontrá-los em cidades como Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, São Luís do Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, entre outras. Há quem tenha vindo diretamente com passagem comprada com recursos próprios, há quem tenha passado antes de aqui se instalar definitivamente por Portugal, África do Sul ou ambos. Para receber esse grande fluxo migratório o governo federal cria uma força-tarefa, com envolvimento de três ministérios: Relações Exteriores, Justiça e Trabalho. Seu objetivo era fornecer documentação de permanência e trabalho em diferentes regiões do país. Foi instalada em Outubro de 1975, mas já em Novembro o governo anunciava que as instituições ligadas à comunidade portuguesa cuidariam da sua recepção. Hoje, 36 anos após a independência do país africano, ficaram memórias da vivência africana, do êxodo, da inserção na sociedade brasileira, mas também, a construção de uma identidade. Há quem se defina como angolano, há quem se defina como português. Entre os primeiros, no discurso há uma diferenciação com relação aos últimos: nós (angolanos) x. eles (portugueses). Uma das questões mais significativas é o ressentimento com o tratamento diferenciado recebido na antiga metrópole, onde eram designados por dois termos de conotação pejorativa: brancos de segunda e retornados. Esse trabalho visa uma reflexão quanto a esta última questão, sem abandonar os demais aspectos aqui citados. Doutoranda do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense

Palavras-Chave: Descolonização, imigração, identidades Abstract: During 1975 thousands of immigrants from Angola or Portugal arrived in Brazil, gripped by fear due to insecurity and violence in the African country, there was the exodus of the white minority, blacks and mestizos, who left the country in smaller numbers. The mass migration occured predominantly in the second half of the year, especially in the months of September, October and November. Brazil received thousands of these emmigrants, who were called refugees by the press. Upon arrivel they settled in the cities of Rio de Janeiro and São Paulo. Later they moved to other cities. Today it is possible find them in cities such as Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, São Luís do Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, among others. Some of them bought their tickets with their own resources. There were those who before settle permanently in Brazil spent some time in Portugal, in South Africa or both. To receive this large migration the Federal Government created a task force involving three ministries: Foreign Affairs, Justice and Labour. Its goal was to provide documentation of residence and work in different regions of the country. It was instaled in October 1975, but in November the government announced that the institutions linked to the Portuguese community would take care of their reception. Today, 36 years after the independence of the African Country, memories of their life in Africa, of the exodus, of the insertion in Brazilian Society, but also an identity were built. Some call themselves Angolans others call themselves Portugueses. Among the first ones there is a discoursive differentiation concerning the last ones, we (Angolans) x they (Portugueses). One of the most significative matters is the ressentment with the differential treatment received from the former colonial power, where they were designated by two terms of pejorative connotations: brancos de segunda and retornados. This paper aims a reflection on this last matter, without abandone the other aspects mentioned above. Key-Words: Decolonization, immigration, identities Este trabalho visa abordar um aspecto da pesquisa de doutorado ora em andamento cujo tema é a chegada ao Brasil de exilados vindos de Angola majoritariamente durante o ano de 2

1975. Estes eram em sua maioria, membros da minoria branca daquele país africano que naquele ano estava em vias de se tornar independente, vale salientar, entretanto, que negros e mestiços também chegaram, embora em menor número. Pretendemos nos focar na construção de identidades entre membros desse grupo. Até o momento foram ouvidos quinze entrevistados. Entre esses há quem tenha nascido na antiga metrópole e quem tenha nascido na ex-colônia. Imigraram para o Brasil entre Dezembro de 1974 e Abril de 1976. Há quem tenha vindo diretamente para o Brasil, comprando passagem aérea com recursos próprios. Há quem tenha ido primeiramente para Portugal, também com recursos próprio, vindo para o Brasil após um determinado período. Há quem tenha vivido por um período na África do Sul e que só depois preferiram vir para o Brasil sem passar por Portugal e há quem tenha passado pela África do Sul e por Portugal antes de se decidir por vir para o Brasil. Entre os entrevistados onze viveram em cidades, três, de uma mesma família, viveram no meio rural, em uma fazenda de café e 1 viveu nos dois meios, urbano e rural. Entre os que tiveram vivência urbana, aparecem referências a Luanda, Benguela, Lobito, Moçâmedes, Sá da Bandeira (atual Lubango) e Nova Lisboa (atual Huambo). Quanto às suas origens sociais e econômicas, há quem descenda de famílias de camponeses madeirenses que com o passar das gerações deixaram o campo passando a residir nas cidades. Das duas pessoas ouvidas com esse histórico familiar, uma vem de uma família que trabalhava no setor hoteleiro (sendo proprietária do estabelecimento). A outra é um profissional liberal (advogado), cuja família ao deixar o meio rural passou nas gerações seguintes a exercer atividades no comércio, no funcionalismo governamental e por último a exercer profissões liberais. Os entrevistados que viveram no meio rural, eram empregados na fazenda em que viveram. Essa família, antes de migrar para Angola vivia no norte de Portugal, na região de Trás os Montes. Entre os que viveram em um contexto urbano, eram filhos de funcionários públicos ou de profissionais liberais como engenheiros, economistas e funcionários de empresas privadas. No que se refere às suas origens econômicas, portanto, eram em sua maioria membros de uma classe média ou classe média alta. Entre a minoria branca angolana, havia uma estratificação social. Devido a essas questões há entre seus membros ma diferenciação quanto à identidade. Os nascidos em Angola veem-se como Angolanos. Para que se possa compreender melhor essa construção diferenciada da identidade é preciso que nos voltemos em um primeiro momento para a estrutura da sociedade colonial. Como 3

mostram Fernando Pimenta, Cláudia Castelo e Sílvio de Almeida Carvalho Filho e Tatiana Pinto. Silvio de Almeida Carvalho Filho, em artigo em que analisa as minorias branca e mestiça em Angola, aborda os fatores que levaram ao surgimento e à intensificação progressiva de um sentimento antibranco na maioria negra da população angolana ao longo do século XX. A sociedade colonial era dividida, nas seguintes camadas: brancos privilegiados, colonos brancos pobres, mestiços, negros assimilados e a maioria de negros não assimilados, os chamados "indígenas". Havia uma gradação na discriminação ligada à cor. Apesar de ser uma regra repleta de exceções, quanto mais clara fosse a pele, em geral, mais elevada era a posição social do indivíduo. (FILHO, s/d: 01) A separação entre brancos, mestiços e negros aparecia até mesmo ao nível das organizações culturais e recreativas. O autor exemplifica tal fato com a Liga Nacional Africana, fundada em 1929-1930 a partir da Liga Angolana (de 1912); predominantemente de negros com alguns mestiços e a ANANGOLA, formada por mestiços e por brancos nascidos em angola, os brancos de segunda. O ressentimento de negros e mestiços que deu origem ao nacionalismo desses grupos também está ligado à discriminação no meio profissional. Profissões que lidavam com comércio eram preferencialmente exercidas por brancos. Além disso, os salários de negros e mulatos eram inferiores aos de brancos. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, e o significativo aumento da imigração houve em Luanda, por exemplo, uma racialização topográfica, ou seja: Diferenciava-se uma cidade branca no centro urbano e a negritude na periferia, apesar de encontrarmos brancos formando 5% da população dos musseques durante a década de 1960. A grande leva de população branca recém-chegada vai concorrer com os "indígenas" e "assimilados" em várias atividades econômicas, deslocando-os e marginalizando-os. (FILHO, s/d: 02) Devido a isso, as relações raciais se endureceram e os negros chamados pelo autor de novos assimilados, que chegaram a esta condição após 1945, são predominantemente negros. Pelo fato de conviverem menos com brancos e mestiços e serem mais discriminados que os antigos assimilados, esse grupo construiu uma visão extremamente racista da dominação colonial (FILHO, s/d: 02). 4

Esse endurecimento das relações coloca o autor resultou na gênese ainda na década de 1950 de grupos de nacionalistas negros cuja proposta era a expulsão dos brancos e dos mestiços. Alguns brancos filhos de famílias pobres residentes dos musseques tinham contato com um mundo predominantemente negro e mulato. Desse grupo saíram alguns brancos nacionalistas, tais como António Cardoso, Luandino Vieira e António Jacinto. Ainda segundo Silvio de Almeida Carvalho Filho O problema em Angola não era de brancos, mestiços ou negros, mas de exploradores e explorados, mesmo que tivéssemos que admitir que, de maneira geral, os exploradores eram brancos e os explorados, negros (FILHO, s/d: 02). A nação que se buscava criar continua o autor não possuía o grupo étnico como critério de diferenciação, mas sim a unidade nascida da partilha do mesmo ideal revolucionário (FILHO: s/d, 02). O mesmo autor aponta para o fato de que a população branca de Angola em 1940 era de 1% do total, chegando a 5% na década de 1970. Esse crescimento se deve ao aumento maciço da imigração de Portugal para Angola após o fim da Segunda Guerra Mundial. Uma boa parte desses novos colonos eram camponeses de pouca educação que disputavam empregos com negros e mestiços, sendo que os dois últimos saíam perdendo. O branco na visão dos negros estava associado ao domínio, à exploração e a humilhação e essa competição por trabalho só sedimentou essa visão. O ápice desse ódio deu-se durante a guerra colonial. Para a historiadora Cláudia Castelo, ao chegarem no novo contexto, o primeiro impacto dos colonos é com o meio físico e social. Logo na chegada os imigrantes se deparam com um novo meio e entravam no que a autora chama de um embate ambivalente. Isso porque conjuga sentimentos inseparáveis: o medo (diante do clima, das doenças, dos animais selvagens e grandes espaços), o deslumbramento com relação à natureza, sobretudo fora das cidades. Nos centros urbanos essa percepção era diferente. Essas eram criações européias, ocidentalizadas, portanto. O estilo de vida era mais informal que o da metrópole. É nesse ambiente urbano, predominantemente branco, segundo a autora, que se torna mais perceptível à estratificação social entre a minoria branca. Citando Manuel Alfredo de Morais Martins a autora mostra que: nas cidades o núcleo europeu ou de ascendência européia já estava nitidamente compartimentado em classes de contornos bem definidos e baseados, essencialmente, na ocupação profissional, na instrução e nos rendimentos (Morais Martins, 5

apud CASTELO, 2007: 265). Morais Martins na década de 1950 havia servido em Moçâmedes como intendente de distrito e administrador do concelho. Durante seu exercício no cargo, verificou que havia fatores de distinção social e uma subclasse (entre aspas em Castelo), unida, formada por pessoas chamadas de Filhos da Terra. Estes, segundo o antigo intendente procuravam manter sempre uma posição predominante, até com fumos de superioridade aristocrática, que se manifestava mesmo naqueles que desempenhavam funções de pouco relevo e que viviam em nítida mediania económica (MORAIS MARTINS, apud CASTELO, 2007: 265). Os colonos recém chegados tinham que disputar espaço com essa atitude hostil. Nas décadas de 1950 e 1960, as cidades angolanas eram meios dinâmicos, com uma intensa vida sócio-cultural. Eram espaços relativamente liberais no que se refere à opinião pública e de costumes apesar da censura e das barreiras raciais (CASTELO, 2007: 267). Essa questão é outra de grande importância. A percepção que a minoria branca tinha dos povos nativos e a relação entre ambos, que está no centro da motivação do êxodo sofrido pela minoria branca durante o ano de 1975. É ainda Cláudia Castelo que nos diz que fora às questões do meio físico, eram os nativos que causavam as primeiras impressões nos recém chegados. Sua atitude era de estranheza em um primeiro momento, metamorfoseando-se em insegurança por conta da grande superioridade numérica. No sul de Angola, o medo de rebelião estaria sempre presente no meio da comunidade branca. Temor esse que retornou com o início da guerra colonial. Por influência do darwinismo social, em Portugal se difundia uma idéia de que os povos africanos constituíam uma raça inferior, que não poderia progredir por meio da educação por conta de suas características biológicas. Havia, entretanto, uma outra corrente de pensamento que ia na contra mão do darwinismo social, uma corrente de pensamento humanista liberal, que defendia ser o atraso do negro apenas uma etapa na evolução de sua cultura. Ao europeu caberia acelerar o processo. Essas duas correntes ideológicas, segundo Castelo influenciavam as práticas culturais e discursivas dos colonos. Devido à influência dos fatores acima citados, nas antigas colônias portuguesas da África a sociedade foi erguida sob barreiras raciais. Aqui, o racismo era o pilar da construção da identidade. Os colonos dependiam economicamente dos nativos que eram à força de trabalho em fazendas e no meio urbano. Uma grande parte dos impostos cobrados o eram dos nativos. O sistema econômico colocava brancos e autóctones em contato direto, o que gerou 6

uma tensão devido à relação de domínio dos primeiros para com os segundos. Havia mecanismos de controle da população nativa, inclusive no que tange à mobilidade. Aos nativos só era permitido locomoção fora de sua área de residência mediante uma guia dada pela autoridade administrativa. Uma das razões desse controle era a garantia de segurança à população branca. As barreiras raciais eram ainda acirradas por uma diferenciação legal. Como já demonstramos a partir do texto de Sílvio Almeida de Carvalho Filho, a população nas colônias portuguesas era dividida em civilizados, assimilados e indígenas. Esses últimos eram regulados por um estatuto próprio, o Estatuto Indígena (decretos n.º 12.533 e 16.473, de 23.10.1926 e de 6.2.1929). Eram assim considerados todos aqueles que não tivessem incorporado hábitos europeus aos seus usos e costumes e não informava como esses poderiam obter a cidadania portuguesa e, por conseguinte usufruir de direitos civis. Essa divisão dava margem a arbitrariedades por parte da minoria branca. Segundo Cláudia Castelo, influenciados pela crença da superioridade da civilização e da raça portuguesa diante dos povos africanos. O nativo africano era meramente visto como uma força de trabalho, sem nenhum tipo de direito. Nesse quadro temos que abordar aqui a violência do trabalho forçado. Segundo a legislação que o instituíra: o Regulamento do Trabalho Indígena todos os nativos aptos ficavam obrigados a trabalhar para assim prover seus sustento e melhorar progressivamente a sua condição social. Caso o nativo não cumprisse a obrigação de trabalhar era levado a fazê-lo pelas autoridades administrativas que empregavam os meios considerados necessários. Os nativos que se recusassem a trabalhar eram forçados a fazê-lo em prol de empresas públicas ou privadas. Aquele que resistisse: Seria julgado como vadio e punido com trabalho correccional. O trabalho compelido obedecia a um contrato de prestação de serviços, que seria remunerado, devendo o curador dos negócios indígenas e os seus agentes fiscalizar as condições de aplicação. Já o trabalho correccional teria que ser prestado em obras públicas do Estado ou dos municípios e os indígenas a ele sujeitos só tinham direito a alimentação e alojamento por conta de quem os empregasse. (CASTELO, 2007: 304-305) Uma questão muito importante que também não pode deixar de ser apontada é a expropriação de terras dos povos nativos em prol dos colonos que chegavam. Esse foi um dos mais graves problemas do período colonial. Segundo Castelo, o Estado várias vezes tentou frear essa expropriação, mas desde os finais do século XIX a legislação colonial orientava que 7

as melhores terras deveriam ser concedidas a não nativos. Entre 1945 e 1946 tentou-se colocar em prática uma experiência com colonos nativos no que ficou conhecido como Colonato da Caconda. Este foi o maior do gênero em Angola. No ano de 1966 estavam lá instalados 797 chefes de família, numa população total de 4507 pessoas. Houve outras tentativas, mas nenhuma se equiparou a Caconda (FEIO apud CASTELO, 2007: 316). Desde os anos 20, com intensificação nos anos 1950 houve ocupação legal ou não das terras por trabalhadores europeus. Devido à escassez de terra, os ovimbundo, majoritários no sul de Angola, migraram para o norte onde foram contratados como trabalhadores remunerados em plantações de brancos ou de pequenas plantações de café africanos no distrito de Cuanza Norte. Os contratos tinham duração de um ano, mas eram renovados muitas vezes. Durante os anos 1960 80 a 100 mil ovimbundos foram anualmente transportados para o Norte. Em cada ano, outros 15 a 20 mil procuraram emprego de um ou dois anos nas indústrias de Nova Lisboa e/ou na agricultura européia do Planalto (CASTELO, 2007: 316). Citando um artigo de Oliveira Santos, na revista do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, Castelo mostra que com o passar do tempo os nativos tomavam consciência do valor de suas plantações e da espoliação que vinham sofrendo. O autor do artigo chamava a atenção ainda para o fato de que a situação pode ter graves repercussões do ponto de vista político (CASTELO, 2007: 317). Já Fernando Pimenta no livro entrevista com Adolfo Maria 1, mostra através da trajetória de seu entrevistado as diferenças no seio da comunidade branca, o surgimento de um nacionalismo entre uma minoria entre esse grupo bem como entre mestiços e negros, a violência do colonialismo e o desenvolver do processo que levou a libertação de Angola. Uma das primeiras questões levantadas pelo historiador é quem eram os angolanos? A esta pergunta Adolfo Maria responde da seguinte maneira: Essa questão era (e talvez ainda hoje seja) muito pertinente. A noção de angolano era equívoca e provocou uma discussão que sempre atravessou a história do nacionalismo angolano, pois no seu âmago residia o problema da construção de Angola enquanto Estado-Nação. Ao equacionar-se o problema da Nação, o colonialismo português aparece forçosamente como um elemento fundamental em 1 Adolfo Maria Nacionalista branco angolano, filho de imigrantes transmontanos, que participou da luta pela independência de Angola. 8

dois aspectos: um é a sua acção na destruturação das sociedades africanas e na integral submissão das gentes e território à lei colonial; outro é o da própria natureza desse colonialismo. Na minha opinião, a debilidade económica e política de Portugal e a exiguidade dos seus meios humanos traduziram-se no terreno por formas de dominação específicas. O sistema colonial português não se apoiou nas chefias locais (como o fizeram outras potências coloniais). antes procurou liquidar as funções e representatividade dessas chefias. Portugal exercia a sua autoridade sobre as populações negras, directamente, através dos seus quadros administrativos, nomeadamente o chefe de posto, e dos meios repressivos que tinha ao seu dispor (o chefe africano local apenas servia de megafone à autoridade colonial). Como tal, os chefes das diferentes comunidades africanas- e em todos os escalões - nunca tiveram autonomia, o que enfraqueceu os laços identitários de cada comunidade e impediu uma afirmação étnica muito forte como sucedeu noutras regiões africanas. Mas, paradoxalmente, as mesmas debilidades da potência colonial, em particular a escassez de meios humanos europeus, obrigaramna a utilizar no seu aparelho administrativo e militar mestiços e negros instruídos, oriundos de famílias africanas que tinham prosperado através do comércio no interior e até do exercício da escravatura. Isto sucedeu sobretudo no século XIX e primeiro quartel do século XX. É nesta elite que se desenvolverá a ideia de pertença a uma entidade territorial, política e social mais vasta, compreendida no espaço definido pelas fronteiras coloniais, isto é, Angola. Durante bastante tempo, a noção de Angola como Nação difundiu-se quase só ao nível desta elite (por alguns dita «crioula») que, por fim, veio a dirigir o novo Estado, a partir de 1975. Nos anos 50, do século XX, a ideia de Angola como país com identidade própria estava amplamente difundida nos meios instruídos mestiços e negros e nas associações que dirigiam (liga Nacional Africana, Associação dos Naturais de Angola e outras) e na maioria da população urbana negra. sobretudo em Luanda. Em certos meios desportivos e culturais de Luanda (Clube Atlético de Luanda e Sociedade Cultural de Angola), a definição de angolano englobava todos os indivíduos negros, mestiços e brancos naturais de Angola ou que pela sua vivência local se sentissem totalmente identificados com o país. Esta concepção é sobretudo urbana (a convivência na escola e, por vezes no bairro foi um facto muito importante). A 2a. série de Cultura foi beber muito desse caldo na revista Mensagem e, tal como nesta, procurava-se ali contribuir para uma identidade colectiva radicalmente diferente daquela que a dominação colonial impunha. (PIMENTA, 2005: 30) O livro põe em cheque a noção difundida em Portugal de que o colonialismo português era soft, típico de um país tido como de brandos costumes. O entrevistado chama a atenção para as várias situações que configuram as contradições de uma sociedade colonial. Desde os conflitos entre dominantes e dominados, os conflitos entre as diferentes populações que habitam o país, os conflitos entre dominantes e dominados dentro desses grupos e vários conflitos de interesses em cada grupo. Devido à complexidade da sociedade colonial e a estratificação dentro da comunidade branca havia locais de sociabilidade que podiam ser dos seguintes tipos: brancos com brancos, brancos com brancos e mestiços, mestiços com mestiços, mestiços com negros, negros com negros e negros com brancos (estes últimos sendo mais raros). Estes locais eram a rua, 9

campos improvisados de futebol e a escola. Um outro aspecto enfocado foi o controle do Estado colonial centralizado em Lisboa, e não nas mãos da minoria branca. Tal fato teve implicações, embora a resistência ao colonialismo partisse sempre das populações negras no desenrolar da luta pela independência. A colonização portuguesa foi feita com indivíduos oriundos das camadas mais baixas da população metropolitana. Os colonos via de regra não tinham uma consciência política em sua grande maioria. E o regime do Estado Novo não se investia esforços nesse sentido, muito pelo contrário. Dessa forma, em Angola, a população branca era geralmente politicamente amorfa, nas palavras de Adolfo Maria. Para o regime salazarista, o papel da minoria branca era o de ser um instrumento da sua dominação frente às populações nativas. Em 1950, ano em que começou uma imigração mais intensa para a ex colônia, havia apenas dois liceus. Estes eram frequentados, como vimos acima ao abordarmos o texto de Silvio de Almeida Carvalho Filho majoritariamente por brancos, mas também em menor número por negros e mestiços. Dentre a minoria branca, havia um reduzido estrato politizado e defensor da emancipação angolana não importando qual o regime que vigorasse em Lisboa. A postura política desse grupo poderia ser sintetizada m três grupos com as seguintes características: 1- Um conjunto de colonos simpatizantes do regime salazarista, que apoiava a sua manutenção e era ligado ao Partido da União Nacional ou à administração colonial; 2 - Grupo formado por portugueses deportados por razões políticas e outros radicados em Angola que, faziam oposição ao regime. Este era o grupo mais politizado, com uma formação cívica, cultural e política mais completa. Apesar disso, este grupo não era homogêneo. Dentro dele havia: republicanos e democratas portugueses, com grande influência maçônica, ativos principalmente em Luanda, Benguela, Lobito e Huambo; 3 - Havia também um pequeno grupo de comunistas, ligados ao PCP, que apareceu apenas no pós-guerra e só em Luanda; Vários brancos angolanos com ideias independentistas, nacionalistas, presentes em centros urbanos, mas com poucas ligações entre si. Na década de 1940 surgem organizações nacionalistas fundadas por negros e mestiços e, por vezes, por brancos. Nesse ponto, a obra de Fernando Pimenta aborda a tensão existente entre os brancos nascidos em Angola e aqueles chegados de Portugal. Na leitura de Adolfo Maria, havia tensão entre a minoria branca e o governo metropolitano, chegando essas a tomarem a forma de 10

desobediência ao governo de Lisboa. Já entre a população branca na sua visão é mais correto falar em antipatia e oposição do que em tensão. Segundo ele: penso que essa tensão não era acentuada ao nível geral da população branca de Angola. Existia, sim, antipatia, senão mesmo oposição, entre muitos brancos naturais de Angola e os colonos recém-chegados de Portugal, sentimento que se acentuou ao longo da década de 1950. (PIMENTA, 2005: 38) As causas dessa oposição seriam de origem econômica e social, mas também ideológicas. Havia uma competição econômica entre ambos os grupos a nível de empregos na esfera pública e privada. Outro nível de disputas era verificado entre as burguesias metropolitana e local. A primeira buscava subordinar as empresas de Angola aos seus interesses, contando para isso com os mecanismos legais dos monopólios e os «favores» dos políticos metropolitanos (pimenta, 2005, 38). Além disso, havia o que Adolfo Maria denomina apego dos brancos nascidos em Angola àquela que denominavam de sua terra. Para muitos angolanos brancos os colonos portugueses que chegavam a partir da década de 1950 chegavam arrogantes e cheios de preconceitos raciais quer contra os negros e mestiços, quer contra os brancos nados e criados em Angola. E isso continua ele representava uma afronta e uma humilhação (PIMENTA, 2005: 38). Existia assim um sentimento de construção diferenciada da identidade. Se recorrermos ao que nos dizem Cláudia Castelo e Silvio Almeida de Carvalho Filho sobre essa questão, veremos que havia em resposta ao preconceito dos portugueses a construção de uma representação com relação aos recém-chegados de Portugal por parte dos brancos nascidos em Angola, na medida em que esses buscavam manter uma posição predominante e os portugueses que chegavam competiam por trabalho com negros e mestiços, e não com os brancos já instalados. Podemos dizer então, que a construção de uma representação não era exclusiva do português metropolitano, mas era antes do mais uma via de mão dupla. Os portugueses eram chamados de matarroanos, bezugos, termos que se referiam a portugueses, identificados com a dominação colonial que nem negros nm mestiços nem brancos de Angola gostavam. Foi a partir dessa diferenciação identitária, dessa identidade angolana que se formou uma consciência nacionalista entre a minoria politizada dos brancos angolanos. Podemos dizer que 11

haviam cinco tipos de posicionamento político: 1-o desprezo de uma parte dos brancos de Angola pelos novos colonos que chegavam. Não havia por parte deles um projeto para Angola, não tinham nenhuma familiaridade com o conceito de independência política; 2- Havia outra parte que desejava a independência, sendo esta pensada de forma que o novo Estado angolano fosse governado pela minoria branca com uma integração da elite assimilada negra e mestiça. Este grupo tão pouco tinha uma organização ou um líder que corporizasse esse pensamento; 3-um terceiro grupo, melhor estruturado, formado por membros do setor conservador da burguesia branca, que desejavam a independência em moldes rodesianos. Havia entre eles uma figura de destaque, um empresário de Sá da Bandeira, atual Lubango, Venâncio Guimarães Sobrinho. Feroz anti-metropolitano era também um opositor dos movimentos de libertação africanos surgidos entre o fim dos anos 1950 e início dos anos 1960; 4- O setor liberal da burguesia branca angolana era adepto de uma independência para toda a população de Angola, porém conduzida pela minoria branca, dando origem ao que Adolfo Maria denomina de uma situação brasileira. Este ponto de vista era defendido por setores de Luanda, mas principalmente no centro-sul, em Bengela, no Lobito e no Huambo. Neste grupo se destacava a figura do engenheiro Fernando Falcão. É deste grupo que emerge em 1961 um partido político, a Frente de Unidade Angolana (FUA); 5-Por fim havia um grupo reduzido de brancos, principalmente intelectuais progressistas (mas não só) de Luanda e de algumas cidades do centro-sul, que defendia um nacionalismo radical e a entrega do poder à maioria negra. Estes eram influenciados pelas ideias de esquerda e pelo convívio com colegas negros e mestiços na escola, havendo proximidade com os meios oposicionistas portugueses. Mas, uma vez Angola estando independente qual seria o lugar dos brancos tanto portugueses quanto angolanos na sociedade do novo Estado? Este tema era delicado e conflituoso. Não havia consenso em torno da questão. Tatiana Pinto, analisando essa questão dentro do MPLA mostra que havia duas posições conflitantes sobre essa temática. Uma contrária e outra favorável à concessão da nacionalidade angolana aos brancos. Essa última levava em consideração os militantes brancos do movimento. A posição final do movimento relativa a essa questão saída da Conferência Inter-Regional é assim sumarizada: 1. O direito de permanência no pais para todos os estrangeiros que se sujeitem as leis e que não sejam abrangidos pelo ponto 5; 2. Direito de nacionalidade 12

reconhecido a todos os que nasceram em Angola e a todo o estrangeiro que participou na luta de libertação nacional; 3. Direito de nacionalidade para todos os filhos de estrangeiros nascidos em Angola, com direito de opção da nacionalidade dos progenitores [este ponto foi eliminado]; 4. Direito de naturalização para os estrangeiros que satisfaçam as condições previstas pela lei; 5. Negado o direito de nacionalidade a todos os estrangeiros que atentem, por actos comprovados, contra a luta de libertação e a dignidade do Povo angolano; 6. Reafirmar o programa do MPLA em todos os pontos relativos a comunidade estrangeira de Angola, quer no respeitante aos direitos da pessoa humana, quer no respeitante a protecção dos seus bens. (PINTO, 2008: 37) Os brancos que participavam do movimento na luta anticolonial, não sofriam pela cor da sua pele, continua Tatiana Pinto, mas com os privilégios que a sociedade colonial lhes garantia. Assim sendo, a angolanidade de brancos e mestiços fora posta em causa, deslegitimada, assim como, tudo o que haviam feito em beneficio da luta por um país independente (PINTO, 2008: 38). O êxodo ocorre durante o ano de 1975, mas é intensificado no segundo semestre. Os jornais cariocas noticiaram a saída em massa de Angola e também a chegada no Rio de Janeiro. No dia 02 de Setembro o jornal O Globo publica a reportagem Angola: Embaixada retifica informações sobre emigrantes. A matéria versa sobre comunicado expedido pela Embaixada portuguesa que explicava que chegavam ao Brasil durante o primeiro semestre de 1975 4.418 portugueses. O comunicado afirmava também que a TAP transportava cerca de 2.000 pessoas por dia, de Luanda para Lisboa. O Jornal do Brasil, também cobre o processo, em sua edição de 3 de Outubro, com reportagens intituladas respectivamente Novo grupo de 150 refugiados angolanos chegará hoje ao Rio, Angola já perdeu mais de 150 mil residentes informava que A Casa de Portugal, obra de Assistência e Beneficência Portuguesa estava dando suporte aos refugiados, que enfrentaram dificuldades para sair de Angola; que até aquele momento mais de 250 mil pessoas já haviam deixado o território em direção a Portugal, à África do Sul e à Zâmbia. Ainda segundo a mesma matéria mais 50 mil deveriam deixar o país até 11 de Novembro, data para qual estava marcada a independência. O fluxo migratório maior seria de pequnos funcionários, empregados do comércio lavradores, ou seja, indivíduos brancos pobres, mais próximos das ações de revanchismo racial. O fluxo de saída sofria ainda variações. Durante 13

ou depois dos combates se verificava o seu aumento, seguido de uma diminuição nas semanas seguintes. Outro periódico a cobrir o êxodo em Angola é a Revista Veja. Nas suas edições de 15 de Outubro e 19 de Novembro encontramos reportagens intituladas Recepção Especial e Fugindo para o Brasil respectivamente. Na primeira delas consta a recepção a refugiados de Angola e Moçambique no Rio de Janeiro. Cita como local de abrigo o Clube da Feira na Tijuca. Eram quase 300 refugiados, que chegaram ao Brasil em vôos especiais uma semana antes. Receberam ajuda de quatro agências de emprego e também de entidades lusobrasileiras na tentativa de encontrar trabalho. Entre eles havia pessoas com variados graus de instrução. Os de melhor escolaridade contavam com facilidades burocráticas fornecidas pelo Itamaraty, graças ao qual obtiveram visto de permanência em até cinco dias. A matéria informa também que a primeira leva de refugiados teria chegado ao Brasil em Setembro e que o Itamaraty havia anunciado o fim do programa de ajuda a longo prazo, que ficaria a cargo das organizações luso-brasileiras. A reportagem da edição de 19 de Novembro conta que só em São Paulo, já havia 2 500 e que havia quem estivesse chegando de barco a Salvador. Eram, no caso, 25 refugiados. Embora sem estatísticas do Itamaraty, calculava-se em seis mil o número de refugiados chegados de Angola. O perfil desse imigrante é o seguinte: esmagadoramente brancos, desempenhavam profissões de classe média, embora sem instrução ou dinheiro. A reportagem aborda as forças tarefas, uma em São Paulo, na Galeria Prestes Maia e a outra numa sala do Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, com funcionários de três ministérios: Relações Exteriores, Trabalho e Justiça. Sua função era regularizar os papéis dos estrangeiros em três ou quatro dias. A matéria conta ainda que a adaptação ao Brasil não era difícil. No Rio, a Federação das Associações Portuguesas e Luso Brasileiras também recebia os refugiados fornecendo hospedaria, alimentação e ajuda a encontrar emprego. A necessidade da montagem dessa força-tarefa foi detectada pelo Ministério das Relações Exteriores já no mês de Agosto daquele ano. Em documento datado do dia 21 daquele mês o ministro Antônio Francisco Azeredo da Silveira dá a conhecer ao Presidente Ernesto Geisel que até o final daquele ano o fluxo de grande número de portugueses que estava chegando ao Brasil podia chegar a milhares dependendo da evolução dos 14

acontecimentos tanto em Angola como em Portugal. Devido a emergência da situação pelo número de repartições consulares brasileiras e pela limitada disponibilidade de transporte, a grande maioria estava desembarcando em território brasileiro sem visto consular. Devido a natureza e a dimensão da chegada desses imigrantes o tratamento dado a eles deveria ser retirado dos canais rotineiros de transformação de vistos e de outras medidas administrativas. A força-tarefa a ser constituída deveria ser informal e sem ônus adicional para o tesouro. A resposta favorável do Presidente foi dada no dia 22 do mesmo mês em documento assinado por Golbery do Couto e Silva, datado do dia 27. As questões levantadas pelos autores no que se refere à diferenciação identitária entre ambos os grupos nos mostra que a construção de uma visão pejorativa é feita de ambos os lados. Se em Angola os portugueses são vistos como matarroanos e bezugos, os angolanos natos são tidos como brancos de segunda. Um dos entrevistados informou que dentre as famílias mais abastadas da sociedade colonial havia mulheres que viajavam a Portugal para terem seus filhos, para que esses não nascessem com essa condição. Um dos entrevistados aborda também essa questão fazendo a ressalva de que os portugueses não seriam totalmente brancos por conta da conquista do sul de Portugal pelos árabes séculos atrás: Agora, no entanto, havia sim uma diferença entre os portugueses de Portugal e os portugueses de Angola. Eles consideravam portugueses brancos de Angola os brancos de segunda. Tem essa diferença, só que eles se esquecem que eles foram colonizados, pelo menos a parte sul, pelos árabes. Então eles não são tão brancos quanto eles pensam.( M.P.) É comum nos depoimentos de brancos nascidos em Angola a referência ao português nato como o outro. O português é visto como individualista como aquele que se acha melhor por ter nascido na antiga metrópole, ao contrário dos nascidos em Angola, que seriam o oposto, ou seja, ajudariam-se entre si, como podemos verificar nas palavras de outra entrevistada: o português é um pouco individualista, não sei. Eles não são...associações e há outros povos e culturas que se ajudam. Os portugueses, nós os angolanos que vieram, insistimos, ajudamos muito um aos outros, mas em geral, português não (...) (M.B.) Isso nos leva a questão da construção da identidade e também da memória. Nos parece importante remeter aqui às reflexões de Zeila Demartini, que desenvolveu estudo sobre esses 15

imigrantes na cidade de São Paulo e de Michael Pollack e Alessandro Portelli. Segundo a socióloga paulista que junto com pesquisadores do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da Universidade de São Paulo, desenvolveu os primeiros estudos com esse grupo de imigrantes no Brasil, é necessário manter uma vigilância constante sobre as narrativas obtidas. Michael Pollack ao refletir sobre a memória e a construção da identidade social, nos diz que a memória é socialmente construída. Para ele: podemos também dizer que há ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais superficial (...) que é o sentido da imagem de si, para si e para os outros (...). Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essenciais de uma pessoa ou de um grupo. (POLLACK, 1992: 204) Ao nosso ver as palavras do autor se encaixam como possibilidade analítica para o tema aqui analisado. Por fim, citando Alessandro Portelli podemos dizer que estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra ideológica e culturalmente mediadas. (PORTELLI, 2006: 106) Bibliografia e fontes AAS 1974. 05. 23 mre/rb. Arquivo Pessoal de Antônio Francisco Azeredo da Silveira, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, CPDOC. CASTELO, Cláudia. Passagens para a África: o povoamento de Angola e Moçambique com naturais da metrópole (1920-1974), Porto, Edições Afrontamento, 2007. DEMARTINI, Z.B.F. Reconstruido Identidades Múltiplas: imigrantes portugueses e luso-africanos em São Paulo. Athenea Digital, 10, 137-153. FILHO, S.A.C. As relações étnicas em Angola: as minorias branca e mestiça (1961-1992), p. 01. (Disponível em: http://www.angolanistas.org/zazprincipal/r_etnicas.htm) JORNAL DO BRASIL, edição de 03 de Outubro de 1975, p. 07. JORNAL O GLOBO, edição de 02 de Setembro de 1975, p. 17. 16

PIMENTA, Fernando. Angola no percurso de um nacionalista: conversas com Adolfo Maria, Porto, Edições Afrontamento, 2005. PINTO, Tatiana Pereira Leite. Etnicidade, Racismo e Luta em Angola As Questões étnicas e Raciais na Luta de Libertação e no Governo Agostinho Neto, Niterói UFF, 2008 (Monografia de Final de Curso de Graduação em História) POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social, Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de Junho de 1944): mito, política, luto e senso comum, In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006. REVISTA Veja, edições de 15 de Outubro e 19 de Novembro de 1975. 17