COOPERATIVA DE DOCES SANTA SALU: A TRADIÇÃO GERANDO RENDA 1



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Transcrição:

COOPERATIVA DE DOCES SANTA SALU: A TRADIÇÃO GERANDO RENDA 1 Karine dos Anjos Santos Graduanda do Curso de Turismo da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do Programa Especial de Inclusão em Iniciação Científica PIIC/UFS, e-mail: Karine.anjoss@hotmail.com Rosana Eduardo da Silva Leal Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, docente do Núcleo de Turismo da Universidade Federal de Sergipe e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais, e-mail: rosanaeduardo@yahoo.com.br GT01 - A Produção de Alimentos Tradicionais nos Territórios Rurais e Urbanos Resumo Esse artigo se propõe a analisar o papel socioeconômico e cultural da Cooperativa de Doces Santa Salu, situada no Povoado Cabrita, no município de São Cristóvão-SE. O estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica e de campo, com o uso de entrevista, observação in loco e registro audiovisual. Para tanto, utilizamos os pressupostos teóricos que tratam da relação entre alimentação, cultura e doces, bem como os dados empíricos referentes à pesquisa de campo. Diante do que foi pesquisado, observou-se que este modelo coletivo de trabalho tem contribuído para o fortalecimento das etapas de produção e comercialização dos doces, tornandose fonte de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento socioeconômico sustentável. Além disso, a cooperativa apresenta-se também como ambiente de troca de saberes e interação social, bem como espaço de sociabilidade e reforço identitário, que vincula tradição e modernidade. Palavras-chaves: doces, cooperativa, São Cristóvão. Introdução O presente artigo tem por finalidade analisar o papel socioeconômico e cultural da Cooperativa de Doces Santa Salu, situada no Povoado Cabrita no município de São Cristóvão-SE. A intenção é compreender como o processo de cooperativismo tem transformado a produção e comercialização da doçaria, que representa um importante legado identitário local. O estudo foi 1 O trabalho que será apresentado é parte da pesquisa vinculada ao Programa Especial de Inclusão em Iniciação Científica (PIIC) desenvolvido pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (POSGRAP) e a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PROEST) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) por meio da Coordenação de Pesquisa (COPES). 1

desenvolvido por meio da pesquisa bibliográfica e de campo, com o uso de entrevista, observação in loco e registro audiovisual. O artigo está dividido em duas partes. A primeira tratará da relação entre alimentação, cultura e açúcar sob o ponto de vista socioantropológico. E a segunda parte abordará a trajetória da Cooperativa de Doces Santa Salu e a importância da iniciativa social, cultural e econômica para seus cooperados. 1. Alimentação, cultura e açúcar Sabemos que além de suprir as necessidades físicas e nutricionais, a alimentação tem a capacidade de traduzir uma ampla variedade de elementos materiais e simbólicos que envolvem a produção, manipulação e consumo dos alimentos, pois, assim como a língua falada, o sistema alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, é depositário das tradições e da identidade de um grupo. Constitui, portanto, um extraordinário veículo de auto-representação e de troca cultural (MONTANARI, 2008, p. 183). Por isso, como concebe Montanari (2008), o sistema alimentar humano não resulta de uma soma aleatória de alimentos, mas de uma estrutura que absorve trocas, substituições, incorporações e invenções. Segundo Carneiro (2003), o que se come é tão importante quanto quando, onde, como e com quem se come. A verdade é que não podemos deixar de considerar que a alimentação faz parte das necessidades biológicas humanas, sendo essencial para a sobrevivência da espécie. Entretanto, a alimentação traz em seu interior um sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos, entre outros. Conforme Araujo (2005), desde os gregos a transformação do alimento já ditava alguns costumes. Os livros de receitas são, até os dias de hoje, um reflexo desta realidade, posto que demonstram que o ato de alimentar-se está estritamente ligada à cultura e os costumes locais. Alimentação revela origens, civilidade, comportamentos, culturas, sendo cultura a complexidade de padrões de comportamento, crenças, instituições valores espirituais ou materiais, transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade (ARAÚJO, 2005, p. 49). 2

Para Araújo (2005), no Brasil, as diferentes regiões guardam suas formas típicas e marcantes de alimentação. Corroborando com as reflexões de Cascudo (1983), Araújo identifica que a gastronomia brasileira é a mistura da arte culinária dos diversos povos que aqui se fixaram, ou seja, indígenas, portugueses e africanos. Assim, cada comida carrega consigo tradições ou lendas que as fazem significativas em cada país que é produzido, como acontece com o repertório culinário proveniente da cultura do açúcar que se faz presente no cotidiano brasileiro. O açúcar contribuiu sobremaneira para a constituição da comensalidade na sociedade brasileira, inspirando diversos campos do conhecimento, das artes e da cultura. O açúcar, inicialmente uma raridade, tornou-se um luxo no século XVIII e, em meados do século XIX, transformou-se numa necessidade básica de quase toda população (CARNEIRO, 2003, p.90). Ao se fazer presente na dieta dos brasileiros, tornou-se fonte para uma diversificada culinária, responsável por criar hábitos, tradições e laços sociais, influenciando decisivamente o paladar dos brasileiros. No Brasil houve não só a miscigenação de povos, mas também a mistura de práticas culinárias que foram trazidas e modificadas pelos que se fixaram no país. Realidade também identificada na produção de doces. Nas terras de cana do Brasil essas tradições ganharam sabores tão novos, misturando-se com as frutas dos índios e com os quitutes dos negros, que tomaram uma expressão verdadeiramente brasileira (FREYRE, 2007 [1939], p.66). No Nordeste, o cultivo da cana-de-açúcar influenciou sobremaneira a geografia, a economia e o jeito de ser nordestino (ANDRADE, 2007). Na culinária, o uso do açúcar produziu uma verdadeira alquimia de cores, sabores e aromas, transformando-se numa relevante referência identitária. Nesse contexto, Sergipe, especificamente São Cristóvão, destaca-se como núcleo produtor de bolos, biscoitos, compostas e queijadas, que fazem parte da culinária do açúcar tão presente no Nordeste brasileiro (LEAL et al., 2010). No município, é possível encontrar boa parte do repertório identificado por Freyre (2007, p.47 [1939]) presente na doçaria nordestina: [...] a velha goiabada em calda, a geleia de araçá, o doce de jaca, o doce de caju em calda, o doce de banana cortada em rodelas em caldas, a cocada, o doce de coco verde, o doce de coco maduro ou sabongo (ilustração 01). 3

Ilustração 01 Doces produzidos em São Cristóvão Autor: Rosana Eduardo S.Leal (2011) Por tradição pelo Brasil, o ofício de fazer doces, ou mesmo as receitas domésticas, está no âmbito do feminino. Há uma espécie de destinação histórica para quem faça o doce seja a mulher (LODY, 2010, p. 21). Como bem observou Delgado (1999), ser doceira traduz um ofício que vincula gênero, identidade, memória e tradição, contribuindo também para a renda familiar. Trata-se de um ofício que possibilita a manutenção dos afazeres domésticos, já que sua produção ocorre no lar. Ainda conforme a autora, ao tornar-se doceira, a mulher reestrutura os domínios do feminino e descortina novas possibilidades para o trabalho domiciliar, reinventando, assim, o processo concreto da vida cotidiana (DELGADO, 1999, p.304). No Nordeste, a produção doceira foi uma tradição familiar no espaço rural e urbano, passada de geração em geração pela vivência caracterizada pela oralidade (BENJAMIN, p.38). Entretanto, trata-se de um trabalho feminino de pouca visibilidade social, sobretudo por ser desempenhado no espaço doméstico como uma extensão das obrigações rotineiras. No povoado Cabrita, por exemplo, a produção de doces representa um importante meio de geração de renda para diversas mulheres. Boa parte deste repertório é produzido artesanalmente nos lares e comercializado nos mercados públicos de Aracaju, sendo consumidos pela população local e turistas. É também neste mesmo povoado que está situada a Cooperativa de Doces Santa Salu COOPERUNIDOCE, que surgiu com o objetivo gerar renda e fortalecer a produção e comercialização coletiva da doçaria local. 4

2. Cooperativa de Doces Santa Salu A Cooperativa de Doces Santa Salu - COOPERUNIDOCE está localizada no povoado Cabrita no município em São Cristóvão e apresenta-se como um importante reduto de produção de doces. O empreendimento é fruto da iniciativa de Dona Tânia Santos, também conhecida como Dona Santa Aninha, uma respeitada doceira na região que cresceu por entre os doces produzidos por sua mãe adotiva. Sua vocação para a doçaria foi despertada com os ensinamentos de Dona Salu, esposa de uma das lideranças da comunidade e que resolveu passar seus ensinamentos para as mulheres que ali viviam. A ideia de Dona Salu em produzir doces surgiu da necessidade de utilizar as frutas, sobretudo a goiaba, que existiam no povoado como fonte geradora de renda para a comunidade. Foi então que decidiu ensinar a um grupo de mulheres a arte da doçaria. Essa foi uma realidade também relatada por Delgado (1999, p.307) ao estudar as doceiras de Goiás, salientando que: o trabalho feminino, circunscrito ao espaço privado, foi parte das estratégias para sobrevivência dessas mulheres e suas famílias. A prática de fazer doces para vender foi acidentalmente descoberta, substituindo ou combinando-se com outras atividades domésticas. Quando tudo começou, há mais de trinta anos, cada doceira era responsável pela produção, distribuição e venda dos doces. Estes eram produzidos exclusivamente com as frutas da região, o que diminuía os custos individuais. Naquele tempo, os doces eram produzidos em tachos de cobre e as condições de trabalho eram as mais diversas, pois cada uma produzia com seus próprios materiais. O transporte era difícil e era preciso caminhar longas distâncias para se comercializar os doces, que eram vendidos semanalmente de porta em porta nos diversos bairros da cidade de Aracaju. Paulatinamente a produção se tornou conhecida e as doceiras passaram a ter sua clientela garantida, como conta Dona Santa Aninha: Aí ela foi fazendo o doce de goiaba e aí foi convidando as mulheres pra fazer doce juntamente com ela e se formou um grupo, mas um grupo individual, tá entendendo? Um grupo individual, aí ficou assim: fazendo, entregando lá em Aracaju com aquele maior sacrifício pra a gente entregar. As mulheres naquele tempo [iam] entregar, porque elas iam de pé por aqui pela vazia grande, Jabotiana pra chegar lá, pra chegar no Castelo Branco de pé. Saiam três horas da manhã cada uma com uma sacola na cabeça ou um saco com esse doce e vendia assim oh...batendo palma. Quer doce hoje? Eram aquelas mulheres que eram as mulheres assim socialite né? Que são ricas né? [...] Mas, eram umas pessoas 5

rica que faziam com que aquelas pessoas ganhassem o pão de cada dia, sabe? Comprava o doce toda semana, gostava [e] comprava na outra semana 2. Muitas mulheres transformaram em doceiras para minimizar as deficiências econômicas familiares, como relembra Marilene: Aí eu falei [para] minha mãe: vamos trabalhar com doce porque o marido trabalhando na roça, muita criança pra dá comida. [...] Fazia o doce e ia pra rua vender e vendia e trazia nosso pão pra dentro de casa, já ajudava o meu padrasto 3. Diante desta situação, Dona Santa Aninha sentiu a necessidade de unir forças e fabricar coletivamente os doces para unificar e fortalecer a produção na região (ilustração 02). Foi então que decidiu buscar patrocínio para o início da futura cooperativa, já que conhecia outras doceiras que também queriam fazer parte da iniciativa. Ilustração 02: Dona Santa Aninha Autora: Rosana Eduardo, 2011. Com esforço conseguiram reativar um antigo centro social, que passou a ser a sede da atual cooperativa. A luta pela formação do empreendimento começou a cerca de cinco anos, sendo transformado em cooperativa há três anos. A cooperativa está ligada à Associação Comunitária Resplandecer, que tem por finalidade estimular atividades produtivas no Povoado Cabrita capazes de promover o desenvolvimento social e econômico local. Trata-se de uma iniciativa vinculada à economia solidária, na medida em que se apresenta como importante instrumento de 2 Entrevista realizada em 10.10.2011 3 Entrevista realizada em 10.10.2011 6

inclusão social e sustentabilidade por meio de um modelo microeconômico alternativo. A iniciativa atua como um enfrentamento ao modelo capitalista hegemônico, estando baseada em aspectos como autogestão comunitária, democracia, cooperação e solidariedade. Hoje a cooperativa já possui CNPJ, registro na vigilância sanitária e conta com diversos parceiros, dentre eles a Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho Unitrabalho/UFS, o Instituto Afrânio Afonso Ferreira (IAAF), o SEBRAE e a Petrobrás, que contribuem por meio de apoio financeiro, consultoria, doação de materiais, cursos de capacitação e aperfeiçoamento profissional. Hoje contam com cerca de 30 funcionários, sendo estes compostos de 27 mulheres e 03 homens. Mensalmente produzem cerca de 250 quilos de doces por mês e atualmente já comercializam mais vinte tipos de iguarias, que ganham forma de geleias, compostas, balas, doces em calda e em pasta. Tal repertório ganha as cores e os sabores de frutas da terra, sendo confeccionados com goiaba, jaca, jenipapo, abacaxi, manga, araçá, maracujá, mamão, ameixa, coco, jambo, banana, mangaba e caju. Além das frutas, há também a produção de doces de leite, pimenta, batata doce e de queijo (ilustração 03). Ilustração 03: Doces produzidos pela COOPERUNIDOCE Autora: Juciene Bomfim (2011) O trabalho é feito por equipes. Cada grupo trabalha um dia por semana para dar conta da produção. Além das cooperadas, trabalham também vigilantes e alguns estagiários dos cursos de Nutrição e Segurança no Trabalho. A remuneração é constituída de um auxílio oferecido pelo Instituto Afrânio Afonso Ferreira (IAAF) no valor de R$ 50,00, mais R$ 10,00 fixos da cooperativa, acrescidos de uma porcentagem da divisão dos lucros dados pelas vendas dos doces. A cooperativa paga os vigilantes com o próprio trabalho. 7

A comercialização é feita pelos próprios cooperados, que distribuem em padaria, feiras e mercearias. Atualmente o grupo vem se organizando para conseguir o código de barras, que proporcionará a comercialização da doçaria em supermercados do estado. Além disso, a produção é vendida no centro histórico de São Cristovão, sendo consumida também por turistas que visitam a cidade. Em janeiro, a COOPERUNIDOCE participou da Feira de Sergipe fazendo parte do stand do município de São Cristóvão. Durante o trabalho semanal, as cooperadas trocam a cozinha de casa pelo espaço da cooperativa, substituindo os tachos e o fogão à lenha pelos maquinários modernos da cozinha industrial (ilustração 04). Ilustração 04: Cozinha da COOPERUNIDOCE Autora: Rosana Eduardo S. Leal (2011) A organização da cooperativa foi um passo fundamental para a união e reconhecimento do trabalho dessas mulheres. Pois, com essa união, passou a ser possível, por exemplo, receber encomendas para grandes eventos, tais como feiras, casamentos e mostras culturais. 8

Considerações Finais O trabalho é ainda uma das forças centrais da sociedade. Trata-se de um espaço simbólico em que perpassam relações de exploração, reivindicação, negociação, rede de solidariedade ou competição, apresentando-se também como campo em que dialogam saberes, ofícios, técnicas e tecnologias distintas. Por isso, consideramos que o mundo do trabalho não se constitui apenas de valores pecuniários, pois oferece uma multiplicidade de produções culturais possíveis de serem estudadas. O estudo sobre a Cooperativa de Doces Santa Salu nos ajuda a entender que, as relações de trabalho capitalistas, para além de suas acepções economicistas, são, fundamentalmente, relações culturais inscritas no cotidiano das pessoas, capazes de evidenciar princípios e valores (MACHADO, 2004, p.112). Trata-se de elemento estruturador de relações sociais, capaz de desempenhar papel ideológico, simbólico e prático. Como salienta Cavalcanti (2004), é necessário estar atento também aos significados culturais embutidos neste universo que envolve indivíduos e sociedades, espaços físicos e sociais. Diante dos dados coletados, foi possível observar que a presença da cooperativa no Povoado Cabrita apresenta-se como uma fonte de inclusão social, resgate da autoestima e a melhoria na qualidade de vida das cooperadas. Esse modelo coletivo tem proporcionado ao grupo um diálogo mais amplo com a sociedade, possibilitando a absorção de novos conhecimentos que estão sendo acrescentados à tradição. Assim, a inserção de novas informações e tecnologias vem permitindo o desenvolvimento de estratégias que contribuem para o fortalecimento das etapas de produção e comercialização dos doces, possibilitando meios de enfrentamento coletivo de barreiras encontradas. Dessa forma, concluímos que a cooperativa representa um ambiente de troca de saberes e interação social, atuando também como espaço de sociabilidade e reforço identitário para as doceiras participantes. 9

Referências Bibliográficas ANDRADE, Manuel Correia de. Apresentação: a civilização açucareira. In: QUINTAS, Fátima (Org). A civilização do açúcar. Recife: SEBRAE, Fundação Gilberto Freyre, 2007, pp.29-35. APRENDA A FAZER GELEIA DE PIMENTA. Estação Agrícola. Aracaju: TV Sergipe, 29 de janeiro de 2012. Programa de TV. ARAÚJO, Wilma Maria Coelho; BOTELHO, Raquel Braz Assunção. Da alimentação à gastronomia. Brasília, DF: UNB, 2005. BENJAMIN, Roberto. Doçaria e Civilização: a preservação do fazer. In: Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre. Fundação Gilberto Freyre, Recife, 2005, p.37-41. CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. 7. ed. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 2003. CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo, SP: Global, 1983. DELGADO, Andréa Ferreira. Memória, trabalho e identidade: as doceiras da cidade de Goiás. Cadernos Pagu, n.13, p.293-325,1999. FLANDRIN, Jean Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. 6. ed. São Paulo, SP: Estação Liberdade, 2009. FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. 5ª Ed. São Paulo: Global, 2007 [1939]. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª. ed. São Paulo: Atlas, 2009. LEAL, R.; MOURA, A. C. ; COSTA, S. S. P. A doçaria como fator de atratividade turística, inclusão social e reforço identitário: o caso do município de São Cristóvão-SE. In: Anais do 1º Seminário Turismo e Geografia, 2010, Aracaju, p.514-523. ISBN: 2179-2992. LODY, Raul. Apresentação: doce comida. In: REGO, A. J. de S. Dicionário do doceiro brasileiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2010, p.09-29. MACHADO, Rosana Pinheiro. A garantia soy yo : etnografia das práticas comerciais entre camelôs e sacoleiros nas cidades de Porto Alegre (Brasil) e Ciudad Del Este (Paraguai). Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004, 143 p. SCHLUTER. R.G. Gastronomia e Turismo. Aleph: São Paulo, 2003. 10