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Transcrição:

Arte em forma de brincadeira, ou brincadeira em forma de arte? O cavalo-marinho e a dimensão criativa da vida Poliana Oliveira Queiroz Mestranda no PPGAS/ UFMT ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! Corpo dança e brincadeira no cavalo-marinho de Pernambuco. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013. Viva Pareia é um livro belo. Não só por sua imagem de capa ou pela qualidade da edição, nem pelo dvd com imagens da dança performada que acompanha o livro. Mas sim pela maneira como a autora revela a arte imanente no modo de vida dos brincadores do cavalo-marinho de Pernambuco, trazendo elementos para pensar a sociedade. Ao abordar antropologicamente a estética do cavalo-marinho, Maria Acselrad investiga como a concepção e apreciação desta prática cultural são construídas. A publicação deste trabalho é bastante pertinente às discussões sobre culturas populares e arte, enfocando também discussões recentes sobre antropologia da dança.

ACENO, Vol. 1, N. 2, p. 97 101. Ago. a Dez. de 2014. ISSN 2358-5587. O livro surge como resultado da dissertação de mestrado escrita em 2002. Entretanto, a experiência da autora com a dança do cavalo-marinho perfaz mais de dez anos. No que concerne à metodologia da pesquisa, a antropóloga revela que se deslocou por diversas cidades da zona da mata pernambucana, inserindo-se em bairros rurais para entrevistar os brincadores e moradores da região. Aliada à pesquisa etnográfica empreendeu ainda vasta pesquisa documental nas principais instituições do estado. A pesquisa bibliográfica revelou a tímida produção acadêmica sobre o cavalo marinho. Mais uma vez coloca-se aqui a relevância da pesquisa etnográfica de Maria Acselrad. O cavalo marinho é um tipo de teatro popular cantado e dançado que integra o ciclo de festas natalino do estado de Pernambuco. No espetáculo misturam-se dança, teatro, poesia e música. Na oralidade dos brincadores, a origem estaria atrelada à vida nas senzalas e consequentemente às estratégias de adaptação e resistência de negros escravizados frente à violenta realidade imposta pelo sistema colonial escravagista. A dança é performada apenas por homens sejam eles jovens, crianças, adolescentes, adultos e senhores. O grupo que a antropóloga acompanhou foi o do mestre Biu-Roque que é composto de vinte integrantes, mas existem inúmeros outros grupos. Em sua maioria, os brincadores são aqueles que já trabalharam ou trabalham com corte de cana na região. Vejamos como a autora explica a categoria brincador: O brincador é aquele que gosta de festa, de farra, de samba. Não pode viver sem isso. Precisa da ordem e da desordem que a brincadeira coloca a sua disposição. A vadiação, o namoro, a cachaça, a amizade, o fumo, a alegria são elementos recorrentes nas toadas da brincadeira. (ACSELRAD, 2013:48) Por meio da perspectiva do fazer, Acselrad revela as especificidades de sentidos escondidos no universo dessa manifestação, mostrando a importância desta na vida dos brincadores, tendo em vista que a dança expressa maneiras de ser, sentir e agir. Pareia significa companheiro, parceiro, aquele com quem se tem afinidade. Segundo a autora, em um cavalo-marinho onde não há parceria e companheirismo, certamente ocorrerá grande conflito. Para ser pareia, é necessária a aglutinação de mais duas categorias que compõem o ser brincador, são elas cuidado e consonância. Ambas atribuídas àqueles que desenvolvem a brincadeira de maneira atenciosa e harmônica. Essas duas categorias já imprimem outra oposta, visto que se existe um brincador cuidadoso, há também aquele que é caracterizado como desarmônico e descontrolado, enfim que não tem cuidado. Para estes o termo referido será desmantelo. Se há desmantelo não há consonância, nem cuidado e consequentemente não haverá pareia. Essas categorias são primordiais para a compreensão da experiência da brincadeira. As letras que compõem as fases de apresentação expressam o trabalho, o amor, o cotidiano e muitas vezes, referem-se à realidade canavieira. A cana-deaçúcar ainda representa um papel importante na economia da região e no cotidiano dos brincadores. Seus corpos e suas histórias de vida estão marcadas 98

QUEIROZ. Poliana Oliveira. Arte em forma de brincadeira, ou brincadeira em forma de arte? O cavalo-marinho e a dimensão criativa da vida. pela cana, e isso pode ser identificado em muitas toadas de cavalo-marinho (p.79). Por meio da etnografia a autora descreve cada momento do desempenho dos brincadores, revelando como a partir da reflexão sobre o modo de viver destes atores sociais, pode-se chegar a reflexões sobre a vida e sobre o que mobiliza essas pessoas que moram na cidade e no campo da zona da mata pernambucana. Acselrad analisa o corpo na brincadeira. Contudo o corpo é pensado e vivido como um eixo de relação, pois a cada apresentação se torna uma nova experiência para o brincador e esta é sentida pelo corpo, tornando cada apresentação única. A crença no longo e inacabado processo de aprendizado e transmissão de saberes o coloca na situação de que é preciso estar sempre em movimento para que se consiga alcançar algum conhecimento diante da complexidade da brincadeira. (ACSELRAD, 2013: 130) A autora também é coreógrafa e por isso estabelece diálogo com o teórico Rudolf Von Laban que considera o movimento no cotidiano e na vida recusando artifícios que condicionam este ao palco. Nesse sentido, ela desconstrói o conceito de dança transferindo-o para a estética do movimento e da experiência de se movimentar. No cavalo-marinho essa desconstrução é primordial, principalmente para compreender a categoria pantinho na qual, chama a atenção para a maneira particular com que cada dançarino desempenha a dança, por meio de um movimento que é experimentado universalmente, mas elaborado particularmente. Espécie de qualidade de movimento em que os elementos a serem combinados passam pela relação entre figura e figureiro, o pantinho é decisivo, uma vez que a graça de cada brincador traz a brincadeira é fruto de um desenvolvimento particular. Com determinado papel dentro dela. E por isso, não é qualquer brincador que pode colocar qualquer figura. (ACSELRAD, 2013: 137) Figuras são as peças que entrelaçam a dança e a música formando uma parte do drama da brincadeira. Entretanto essa separação só existe na esfera analítica visto que na performance não se encontra claramente definidas. Para desempenhar uma figura o brincador deve ter sensibilidade estética que nada mais é do que reunir as categorias cuidado e consonância que explicamos acima. Na brincadeira do cavalo-marinho, a vida e arte se constituem como domínios não excludentes. Ao configurar-se como uma festa dentro de uma festa, suas categorias estéticas mostram-se permeáveis e contínuas. Do cuidado com os brincadores e destes com a vida depende da brincadeira. A expressão máxima desse cuidado se revela através da arte do brincar, de forma consonante e livre de desmantelo. (ACSELRAD, 2013: 105) Sob a perspectiva do que chama de nova antropologia da arte, a antropóloga considera esta manifestação artística como importante elemento de reflexão acerca da organização social que projeta inúmeras acepções sobre a 99

ACENO, Vol. 1, N. 2, p. 97 101. Ago. a Dez. de 2014. ISSN 2358-5587. sociedade revelando os significados e especificidades desta. Para isso seu aporte teórico se estruturou com Franz Boas (1947), Bourdieu(1970), Overing(1994), Geertz(1983), Lagrou(1998) e por fim Mário de Andrade(1963). Todos esses autores citados na obra se preocuparam em revelar que o conceito de arte não está condicionado ao ocidente ou à era moderna. Mais do que uma reivindicação valorativa daquilo que mereceria ser chamado de arte e não é, todo o esforço aqui consiste mais propriamente numa tentativa de entender a arte como relação ou como experiência estética vivenciada das mais diversas maneiras e difundida por fenômenos que permeiam toda a existência social, e não apenas por aquilo que se expressa no que entendemos por obra, espetáculo ou manifestação artística. E, talvez, quem sabe, mais importante do que atribuir a brincadeira o estatuto de arte seja justamente o oposto. Isto é, dar mais relevância ao fato de que a arte é em alguma instância, brincadeira. (ACSELRAD, 2013: 122) A estética da dança é construída na experiência e na relação com os dançarinos, com os músicos e com o público. Por isso, Acselrad sempre faz menção ao discurso de Biu Roque, seu interlocutor que dizia: cavalo-marinho é uma dança de presença! A partir desta expressão, ela desconstrói a ideia de arte como algo inato e a reconstrói levando-a para a esfera das relações sociais, permitindo assim a valorização de sensibilidades transculturais que nascem da experiência. Isso explica o fato de o cavalo-marinho ser uma brincadeira de presença. O cavalo marinho é considerado por muitos brincadores uma brincadeira de presença. A capacidade de atrair pessoas para seu entorno teria sido inclusive o motivo de a roda ter se tornado a sua forma de organização espacial por excelência. A abundante quantidade de informação visual, melódica e coreográfica e a constante possibilidade do novo, considerando as dinâmicas condições sob as quais a brincadeira se organiza, contribuem para a ideia de que o cavalo-marinho é feito por sujeitos em movimento. Versos e gestos novos são sempre bem-vindos. (ACSELRAD, 2013: 50) A antropóloga vai então desfragmentando a brincadeira, e este desfragmentar não é aqui utilizado no sentido pejorativo e sim valorativo, na medida em que está revelando todas as fases da performance artística bem como as características do brincador. A identidade deste também está em constante movimento, pois cada brincador reflete a própria configuração transitória da brincadeira, tendo em vista a inúmera variação de estilos que compõem a dança, o que confere particularidade à coreografia. [...] Sem que isso signifique negar o fato de que todas as brincadeiras da região compartilham elementos, formando um verdadeiro esquema circular de trocas melódicas, poéticas, dramáticas e coreográficas. Afinal, nascida de processos de negociação, transformação ou derivação a brincadeira parece envolver sempre uma construção de identidade em movimento, que abrange e incorpora a alteridade. (ACSELRAD, 2013: 56) Nesse processo é que emerge a dimensão criativa da vida. O movimento move o trabalho, a brincadeira e a sociedade, mediante regras ou regularidades criadas e recriadas, num processo de constante transformação (p.61). A energia despendida em oito horas de dança tempo médio de duração das apresentações - é apropriada pelo corpo, que experimenta sensações, 100

QUEIROZ. Poliana Oliveira. Arte em forma de brincadeira, ou brincadeira em forma de arte? O cavalo-marinho e a dimensão criativa da vida. experiências, emoções e esperança. A brincadeira é uma estratégia de permanência. Ter uma brincadeira é ter alegria na vida. Além dos motivos acima mostrados, entendo que o livro de Maria Acselrad é belo, porque nos leva a uma reflexão acerca da teoria estética da arte que em muito ainda se prende a mensurações técnicas que não refletem a arte do viver e do sentir. Em outras palavras não reflete a arte como elemento simbólico da vida humana. Apesar de não problematizar a experiência e a performance do ponto de vista da antropologia de Victor Turner (1987) sua pesquisa nos mostra a riqueza existente nas manifestações artísticas pensadas do ponto de vista de quem as faz. No movimento de sua escrita, somos levados a movimentar nossas reflexões acerca da importância dos estudos das culturas populares de um povo que muitas vezes não nomeia sua prática como artística, mas que a vive como a motivação de uma relação criativa estabelecida com o mundo. No cavalo-marinho, a brincadeira como a vida, se renova. Referências Bibliográficas TURNER, Victor. The anthropology of performance. The anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1987. 101