A imigração alemã no Brasil e a ética weberiana:

Documentos relacionados
A busca sociológica de uma relação causal histórica (EPEC)

INFLUÊNCIAS TEÓRICAS PRIMEIRAMENTE, É PRECISO DESTACAR A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO ALEMÃO NA SUA

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

PLANO DE ENSINO. II. Metodologia: 2.1. Desenvolvimento das seções. a) Explanação introdutória do professor

REFORMAS RELIGIOSAS SÉC XVI.

PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO

- EPEC: investigação de aspectos de um processo amplo de transformação social, cujo desfecho é a modernidade.

REFORMA E CONTRARREFORMA

8. (Fuvest 2009) A Reforma religiosa do século XVI provocou na Europa mudanças históricas significativas em várias esferas.

Sociologia Prof. Fernando César Silva. ÉTICA PROTESTANTE Max Weber

Estrutura e análise do texto acadêmico. Prof. Marcos Vinicius Pó Introdução às Humanidades e Ciências Sociais

CAPITULO 4 SOCIOLOGIA ALEMÃ: KARL MARX E MAX WEBER

Os Sociólogos Clássicos Pt.2

Dossiê Norbert Elias: Uma resenha

PLANO DE ENSINO. II. Metodologia: 2.1. Desenvolvimento das seções. a) Explanação introdutória do professor

OS CLASSICOS DA SOCIOLOGIA

Escritos de Max Weber

EMENTÁRIO MATRIZ CURRICULAR 2014 PRIMEIRO SEMESTRE

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS LICENCIATURA. Disciplina de Estágio II TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA

A ÉTICA PROTESTANTE E A IDEOLOGIA DO ATRASO BRASILEIRO

Sumário detalhado 1. A Reforma: uma introdução O cristianismo no final da Idade Média O humanismo e a Reforma...54

Sociologia da Educação Max Weber. Alessandra Lima Kalani

HISTÓRIA DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA METODOLOGIA - CEHILA. Vanildo Luiz Zugno

RENASCIMENTO CULTURAL

Condições Gerais. Políticas: Crise do Feudalismo Crescimento da Burguesia Rei não aceita interferência da Igreja Supranacionalismo Papal

As Contribuições de Max Weber e

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE 042 CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS PLANO DE ENSINO CÓD. DISC. DISCIPLINA ETAPA CH SEM CH TOTAL SEM/ANO

Leitura responsiva na sala de aula.

ENSINO RELIGIOSO 8 ANO ENSINO FUNDAMENTAL PROF.ª ERIKA PATRÍCIA FONSECA PROF. LUIS CLÁUDIO BATISTA

TEOLOGIA EMENTAS - 5ª ETAPA

Sociologia. Resumo e Lista de Exercícios LIVE 01/10/17

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Unidade 3: A Teoria da Ação Social de Max Weber. Professor Igor Assaf Mendes Sociologia Geral - Psicologia

CONTRIBUIÇÃO DA ÉTICA PROTESTANTE PARA A ORIGEM DO CAPITALISMO

PROFESSOR: GILDEMAR SILVA DISCIPLINA: ENSINO RELIGIOSO CONTEÚDO: ATIVIDADES AULA 01

INSTITUTO GEREMARIO DANTAS COMPONENTE CURRICULAR: HISTÓRIA EXERCÍCIOS DE RECUPERAÇÃO PARCIAL

CURSO PROFISSIONAL DE TÉCNICO DE GESTÃO E PROGRAMAS DE SISTEMAS INFORMÁTICOS

CURRÍCULO PLENO 1.ª SÉRIE CÓDIGO DISCIPLINAS TEOR PRAT CHA PRÉ-REQUISITO ANTROPOLOGIA CULTURAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO

PERFIL DE APRENDIZAGENS 7 ºANO

Plano de Ensino. EMENTA (parte permanente) PROGRAMA (parte variável)

Alguma considerações de Weber sobre a sociedade moderna

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Resenha. DOI /P v14n43p1147. Adriene dos Anjos Noronha

Durkheim, Weber, Marx e as modernas sociedades industriais e capitalistas

COPYRIGHT TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - SABER E FÉ

Sumário. Prefácio... 13

Questões Sugeridas Bloco 1:

!" #$! %&% '( CAUSAS: ! "# $ % & ' $ (% & ) * + *, -$. / ++.) */ 0.) 0 0 0*

Luteranos na Ética Protestante

HISTÓRIA 1 ANO PROF. AMAURY PIO PROF. EDUARDO GOMES ENSINO MÉDIO

HISTÓRIA. aula Reforma e Contrarreforma

IDADE MODERNA A REFORMA PROTESTANTE

EJA 4ª FASE PROF. LUIS CLAÚDIO

ANEXO I: Modelo de Programa de Disciplina (elaborar em conformidade com o Projeto Pedagógico do Curso)

Carga Horária das Disciplinas e Atividades Acadêmicas

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DO BONFIM ESCOLA SECUNDÁRIA MOUZINHO DA SILVEIRA

O pensamento sociológico no séc. XIX. Sociologia Profa. Ms. Maria Thereza Rímoli

Resenha. Glauber Miranda Florindo Doutorando em História Universidade Federal Fluminense Recebido: 27/01/2015 Aprovado:03/05/2015

Soc. Gui Franco. Monitor: Leidiane Oliveira

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

b) Explique o provérbio medieval O ar da cidade liberta, enfatizando as relações entre os habitantes das cidades e os senhores feudais.

TEMA-PROBLEMA. A experiência religiosa como afirmação do espaço espiritual do mundo FENÓMENO UNIVERSAL

INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS (SOCIOLOGIA I)

Agrupamento de Escolas de Terras de Bouro

2º Bimestre 2018 História / Maria Beatriz Leão CONTEÚDO DO BIMESTRE CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO TÓPICOS DO CONTEÚDO CONTEÚDO DO BIMESTRE.

Prefácio dos organizadores... Introdução...

COLÉGIO XIX DE MARÇO excelência em educação 2012 PROVA FINAL DE HISTÓRIA

Sociedade, Estado e Mercado. Aula 4 Teoria social de Karl Marx. Prof.: Rodrigo Cantu

II. Metodologia: 2.1. Desenvolvimento das seções. a) Explanação inicial do conteúdo pelo professor

Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas

INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS (SOCIOLOGIA I)

Contrarreforma. Autores: Maria Eduarda Cordeiro Maria Luísa Relosi Lara Bianchi Marina De Carli Pedro Pérez Pedro Henrique Thomé

MOTIVADORES DA CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA SOCIAL

PROPOSTAS DE PRODUÇÃO DE TEXTO PARA 2ª FASE

SOCIOLOGIA 1 ANO PROF. DARIO PINHEIRO PROF. JOSINO MALAGUETA ENSINO MÉDIO

Renascimento. Professor Eustáquio

REFORMA PROTESTANTE. 1- CONTEXTO HISTÓRICO: 1.1- Início do século XVI no Norte da Europa.

As transformações de saberes, crenças e poderes na transição para a Idade Moderna. Profª Ms. Ariane Pereira

Hoje falaremos de A BÍBLIA OUTROS NOMES FATOS E PARTICULARIDADES DA BÍBLIA

PLANO DE CURSO. 1. Apresentar a emergência da teoria social de Marx e da tradição sociológica, discutindo os traços pertinentes destas duas vertentes.

TÍTULO: INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA: CONCEITOS PRINCIPAIS DE MAX WEBER

Processo Seletivo/UFU - julho ª Prova Comum - PROVA TIPO 1 SOCIOLOGIA QUESTÃO 51

Fiéis em cristo. Direitos e deveres dos fiéis leigos. Paróquia São Francisco de Assis Ribeirão Preto 05/08/2015

Max Weber. Sociologia da Educação I Turma A Os autores clássicos Grupo 3

1.1 CONTEÚDOS ESPECÍFICOS A SEREM TRABALHADOS DURANTE A AULA:

( ) Max Weber: a ética protestante e o espírito do capitalismo

livros REVISTA USP São Paulo n. 103 p

REFORMA E CONTRA-REFORMA

Fatores religiosos: Corrupção do clero religioso : Venda de relíquias sagradas; venda de indulgencias; lotes celestiais; Ignorância do clero a maior

MAX WEBER: UM PENSADOR DA CULTURA

REFORMA PROTESTANTE E REFORMA CATÓLICA VISÃO PANORÂMICA

Como definir a Maçonaria?

TEORIA BUROCRACIA. Profa. Dra. Rosângela F. Caldas

MODERNIDADE LÍQUIDA. Zygmunt Bauman. Ten Ferdinanda Sociologia 3º Ano

EMENTÁRIO HISTÓRIA LICENCIATURA EAD

CURSO E COLÉGIO ESPECÍFICO

Representações cotidianas: um desenvolvimento da teoria da consciência de Marx e Engels

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ HISTÓRIA PRISE - 2ª ETAPA EIXOS TEMÁTICOS: I MUNDOS DO TRABALHO

Ano Lectivo 2016/ ºCiclo 8 ºAno. 8.º Ano 1º Período. Domínios / Subdomínios Objetivos Gerais / Metas Competências Específicas Avaliação.

Protestantismo Americano

Transcrição:

A imigração alemã no Brasil e a ética weberiana: a impossibilidade de uma teoria André Voigt. SOUZA, Jessé de (Org.). O malandro e o protestante a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Ed la UnB, 1999, p. 315. Esta coletânea de artigos, organizada pelo Prof. Jessé le Souza (Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg *), contou com a participação de vários autores do Brasil e do xterior, que pesquisam temáticas relacionadas à obra de Max Weber Como participação em destaque, cabe mencionar o nome d( ) Prof. Wolfgang Schluchter (Ph. D. em Sociologia, Professor da U iversidade de Heidelberg e Diretor do Max Weber Kolleg, em Erfurt, Alemanha), que é considerado "um dos principais interretes e continuadores da obra de Max Weber" pelas palavras do orgat lizador. Mesmo que toda a coletânea seja interessante, será festa uma análise mais aprofundada sobre o primeiro artigo, intitulado "A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro", escrito pç,r Jessé de Souza, cujas reflexões são importantes para uma revisão teóri- * Departamento de História - Universidade Regional de Blumenau.

RESENHAS co-metodológica dos estudos sobre a história brasileira, especialmente acerca da importância da imigração alemã no Brasil. O autor inicia seu estudo questionando a atividade de intelectuais brasileiros que utilizaram a teoria weberiana para justificar o "atraso" brasileiro, em comparação com a "modernidade" dos Estados europeus e, principalmente, dos Estados Unidos da América. Para contextualizar a argumentação desses autores brasileiros, Souza expõe as particularidades da sociologia da religião de Weber a respeito do processo de racionalização do Ocidente, realizado através da esfera religiosa. Para Weber, o dualismo ocidental, em comparação ao dualismo oriental, obtém uma especificidade, que é a sua maior ênfase na ética e menor na ritualistica, o que torna claro o conflito existente entre a esfera ético-religiosa e as demais esferas mundiais, levado para o cristianismo através do judaísmo. No entanto, o autor esclarece que existe uma grande diferença ético-religiosa entre católicos e protestantes ascéticos: Se, no catolicismo, verifica-se uma ênfase em uma estratégia de coloromisso entre ética e mundo, no protestantismo ascético observa-se a continuidade e o aprofundamento da ética judaica antiga, a qual enfatiza precisamente a tensão entre ética e mundo (p. 25, grifos nossos). Dessa forma, para os protestantes ascéticos, a única forma de transcender essa tensão seria moldar eticamente o mundo, através da realização prática na sociedade, o que caracteriza a ascese laica, própria das religiões calvinistas. Os calvinistas, que seguem a doutrina da predestinação, teriam liderado as mudanças culturais nos países capitalistas tidos como mais adiantados. Com efeito, Souza enfatiza que a doutrina da predestinação calvinista o': O a) 196 [...] implica uma distinção radical tanto em relação ao catolicismo guanto ao luteranismo, na medida em que ambos defendem não só uma outra concepção de divindade, mas também um conceito essencialmente distinto da piedade divina (p. 26).

A IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO BRASIL E A ÉTICA WEBERIANA Essa afirmação é importante, uma vez que Weber caracteriza o luteranismo como uma doutrina que não prevê a mesma resistência ativa do que os calvinistas quanto à interferência na esfera política. Os calvinistas resistem à coação secular em assuntos de fé através da guerra "santa" ou "justa", que procura moldar a atuação política de acordo com os princípios religiosos. O luteranismo, para Weber, só conhece a resistência passiva e a obediência à autoridade secular, uma vez que a responsabilidade da guerra cabe a ela, e não ao indivíduo religioso'. Para complementar a argumentação de Souza a respeito do protestantismo ascético, o autor coloca que o calvinismo superou o conceito de vocação em Lutero, na medida em que "o objetivo da salvação e o caminho da salvação passam a exercer uma influência recíproca de forma a propiciar uma condução de vida metódica religiosamente determinada" (p. 27). Nota-se que a crítica de Weber a certos aspectos da mentalidade alemã não se restringem apenas à esfera ético-religiosa, mas também às instituições políticas da Alemanha. O autor cita uma frase de Weber, quando este escreve em uma carta a Adolf Harnack em 1906, que: "O fato de nossa Nação jamais ter sido formada na escola do protestantismo ascético é a fonte de tudo aquilo que odeio nela e em mim mesmo" (p. 29). Dessa forma, Weber identificaria a tradição racionalista e individualista da Inglaterra, ao contrário da versão do protestantismo emotivo e grupal da Alemanha, como a mais eficiente forma de organização social do Ocidente. Quando este debate foi inserido na produção intelectual sobre o Brasil, Jessé de Souza cita vários autores nacionais que, de alguma forma, se utilizaram de facetas da análise weberiana para interpretar a situação social brasileira. O primeiro caso seria a interpretação de Sérgio Buarque de Holanda, que no seu "Raízes do Brasil" (1936), coloca uma contraposição cultural: A tradição "individualista-amoral" do brasileiro em comparação ao associativismo racional, típico dos países protestantes ascéticos. O "homem cordial" de Holanda seria "o inverso perfeito do protestante ascético como definido por Max Weber" (p. 34).

RESENHAS Outros exemplos estariam em Viana Moog, que no seu "Bandeirantes e pioneiros" deixa clara uma comparação do Brasil com os Estados Unidos da América (EUA), afirmando que os Estados Unidos são o único país que nasceu calvinista, portanto, baseado na ética do trabalho e no pragmatismo econômico. O brasileiro seria, para Moog, personalista e, por isso, o oposto do pioneiro americano. No entanto, Moog faz uma comparação simbólica do pioneiro estadunidense com o bandeirante paulista, na medida em que ambos representam para o desenvolvimento destes dois lugares algo bastante positivo. Essa temática foi aprofundada por Simon Schwartzman, no seu "São Paulo e o estado nacional", em que realça a peculiaridade histórica do desenvolvimento de São Paulo a partir da "mentalidade empreendedora" do bandeirante paulista (p. 38-43). Em contraponto a Schwartzman, Souza admite que: Se é verdade que, especialmente com a maciça importação de mão-deobra européia a partir da segunda metade do século XIX em todo o Brasil meridional, temos um padrão social significativamente diferente do que imperava no Brasil escravocrata, a particularidade paulista é um recurso de fantasia (p. 41). te cv 198 Cabe aqui colocar algumas reflexões sobre o artigo de Jessé de Souza quanto à produção historiográfica sobre a imigração européia a partir do século XIX no Sul do Brasil. Se o protestantismo ascético não possui relações com a imigração, principalmente alemã, no Brasil meridional dos séculos XIX e XX, e a própria sociedade alemã até a Primeira Guerra Mundial não era um modelo de estruturação social a ser seguido pelo Ocidente, há um erro metodológico na conclusão de muitos historiadores da imigração no Sul do Brasil, que afirmam que a imigração foi a antítese da tradição individualista e, por sua vez, do atraso social do resto do Brasil. É necessário discernir que diversidade não significa, necessariamente, antítese. A conclusão interpretativa de muitos autores, que argumentam ser a imigração alemã luterana a primeira alternativa para a modernização do Brasil, parece fruto de uma apreensão um tanto descuidada da tese weberiana, o que torna urgente a necessidade de

A IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO BRASIL E A ÉTICA WEBERJANA revisão interpretativa sobre a história da imigração no Sul do Brasil a partir do século XIX, para que não se perpetuem os rótulos históricos, advindos muito mais do senso comum do que de uma pesquisa histórica mais aprofundada. Nota 1. WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p. 385-386. Cv Cs5 o 199