Trabalho socioeducativo com famílias em situação de vulnerabilidade: Uma perspectiva interdisciplinar



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Transcrição:

JUL. AGO. SET. 2004 ANO X, Nº 38 285-289 INTEGRAÇÃO 285 Trabalho socioeducativo com famílias em situação de vulnerabilidade: Uma perspectiva interdisciplinar ARILSON PEREIDA ÐA SILVA* KÁTIA BOULOS** MÁRCIA MARTINS FERREIRO*** YONE XAVIER FELIPE**** Resumo Este artigo apresenta o resultado de discussões realizadas por professores e profissionais provenientes de diferentes áreas de atuação e de conhecimento, tais como Direito, Letras, Nutrição, Pedagogia, Psicologia, Sociologia e Serviço Social sobre o tema da família. Mais especificamente, essas discussões buscaram encontrar referenciais comuns para subsidiar o Programa de Assistência Social a Famílias (Proasf). O conteúdo foi construído e sint etizado no texto, revelando idéias e conceitos que foram compartilhados e considerados como base para a compreensão de famílias em situação de vulnerabilidade, bem como para a implementação de trabalhos socioeducat ivos junto a essa população. Palavras-chave família, vulnerabilidade, trabalho socioeducativo. Title Social and educational word with vulnerable families: An interdisciplinary prospect Abstract This article presents the result of considerations by professors and other professionals from different areas and fields of knowledge such as Law, Fine Arts, Nutrition, Pedagogy, Sociology and Social Service on the family. More specifically, such considerations aimed at finding commons points in order to sponsor Programa de Assistência Social a Famílias (Proasf), a program assisting vulnerable families. The contents of these considerations are presented and summarized by our text, revealing ideas and concepts shared and regarded as basic for the comprehension of vulnerable families, as well as for the implementation of social and educational works for this population. Keywords family, vulnerability, social and educational work. O presente texto é derivado de um trabalho multiprofissional com enfoque interdisciplinar, decorrente de uma parceria entre o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (CSNSBP) e a Universidade Data de recebimento: 15/10/2003. Data de aceitação: 28/11/2003. * Psicólogo pela USP, mest re em Psicologia pela Uni versidade São Marcos, dou torando em Psic ologia Social pela USP, especialista em grup os operativos e professor do Curso d e Psicolo gia da USJT. ** Advogada, graduada e pós-graduada em Direito pela USP, coordenadora do Escritório de Assistência Judiciária da USJT, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito e da Matur idade da USJT. *** Psicóloga pela USP, mestranda em Psicologia da Saúde pela UMESP, psicoterapeuta e professora responsável pela disciplina de Avaliação Potencial, Técnicas de Exame e Aconselhamento Psicológico e Atendimento a Famílias do curso de Psicolo gia da USJT. **** Psicóloga pela USJT, mestre em Psicolo gia Clínica pela PUC Camp, professora em regime integral e Iniciação Cie ntifica nas disciplinas de P sicologia e Ciências Sociais e Questões Éticas e Sociais do curso de Ciências Contábeis e Sistema de Informação da USJT. São Judas Tadeu (USJT) e articulado ao Programa de Assistência Social a Famílias (Proasf). O Proasf é um programa que integra a rede de proteção social básica e especial organizada no âmbito da cidade de São Paulo, sob a responsabilidade da Secretaria Municipal de Assistência Social (SAS). Em linhas gerais, visa a articular iniciativas desenvolvidas pela rede socioassistencial, de modo que seja oferecido um trabalho socioeducativo a famílias em situação de risco e vulnerabilidade social. Esse Programa tem se viabilizado pela formação de parcerias entre diferentes instituições. Esta parceria entre a SAS, o CSNSBP e a USJT objetiva desenvolver e operacionalizar o Proasf no âmbito da Zona Leste da cidade de São Paulo (denominada Região Macro Leste 2, abrangendo os bairros de Sapopemba, São Mateus, São Rafael e Iguatemi). Sendo a família o principal foco de conhecimento e de intervenção do Proasf, os professores

286 INTEGRAÇÃO SILVA ET AL. Trabalho socioeducativo da USJT, de diferentes áreas do saber, buscaram compartilhar idéias e concepções sobre esse tema, de modo que fossem encontrados referenciais comuns para nortear a compreensão das famílias que se vinculariam ao Programa, e que respaldassem as possíveis intervenções a serem implementadas. As linhas seguintes apresentam, resumidamente, as concepções de família sob a ótica do direito, da psicologia e do serviço social, tanto nos aspectos legais quanto nos doutrinários considerados relevantes pela equipe. A temática da família sempre representou o cerne da preocupação das políticas públicas brasileiras. Essa premissa justifica-se, uma vez que o núcleo familiar representa a estrutura básica da sociedade e constitui objetivo precípuo do Estado garantir que os direitos fundamentais de seus integrantes sejam preservados. Nesse compasso, é interessante ressaltar os princípios fundamentais estampados na Constituição Federal de 1988 e norteadores do Estado Democrático de Direito, que têm como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e por objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, pela promoção do bem de todos, sem preconceito de qualquer espécie. No que tange ao conceito de família, há que se registrar as profundas modificações observadas ao longo dos tempos, evidenciadas no texto constitucional que ampara, em seu Artigo 226, as entidades familiares constituídas pelo casamento civil e religioso com efeitos civis, pela união estável, e pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (monoparentalidade). Cumpre salientar que a diversidade de sexos é condição legal obrigatória para a celebração do casamento e para o reconhecimento da união estável, mas o modelo familiar tradicional, constituído exclusivamente por parentes consanguíneos e afins, atualmente convive com diversas outras formas de constituição da família, inspiradas na própria evolução da sociedade, com seus avanços e limitações. Procedendo à análise da questão de forma ampliativa, Netto Lôbo (2002, p. 90) apresenta um perfil das relações familiares distanciado dos modelos legais apontados, relações que são denominadas unidades de v ivência, sendo identificadas em pesquisa regular do IBGE, intitulada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), e classificadas em onze espécies: 1. par andrógino, sob regime de casamento, com filhos b iológicos; 2. par andrógino, sob regime de casament o, com filhos biológicos e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de afetividade; 3. par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união estável); 4. par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos ou ap enas adotivos (união estável); 5. pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental); 6. pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental); 7. união de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso do grupo de irmãos, após falecimento ou abandono dos pais; 8. pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual e econômica; 9. uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual; 10. uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos; 11. comunidade afetiva formada com filhos de criação, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular. Sobreleva esclarecer que, independentemente da forma pela qual se constitua a família, princípios fundamentais anteriormente apontados conduzem à interpretação estampada no Artigo 203, I, da Constituição Federal, que confere proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, e em legislação infraconstitucional regulamentadora das garantias individuais e de largo espectro no campo dos direitos

JUL. AGO. SET. 2004 ANO X, Nº 38 285-289 INTEGRAÇÃO 287 sociais, tais como a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), bem como o Estatuto do Idoso. No âmbito do serviço social, esses marcos legais indicam a necessidade de construção de políticas públicas que encarem a família como eixo básico de atuação, na medida em que é em seu interior que os indivíduos se formam e onde se reproduzem suas condições de existência. Neste âmbito enquadra-se o Proasf, que, sinteticamente, propõe um trabalho socioeducativo voltado para famílias em situação de risco social, com a perspectiva de contribuir para a abertura de espaços e oportunidades para o exercício da cidadania ativa no campo social. Em meio a tantas definições possíveis, como entender o conceito de família? Que concepções estão em jogo? Entendemos que o instrumental para a abordagem e a compreensão da organização familiar deve ser interdisciplinar. A complexidade que a família apresenta, considerada ao mesmo tempo um objeto de conhecimento e um campo de intervenção, requer que distintas linhas do conhecimento articulem-se para dar conta de uma entidade tão rica em matizes e características. Quiroga (1987, p. 122) defende a existência de diferentes níveis de análise do grupo familiar, diferenciados, mas que devem funcionar de modo complementar, quando se busca sua compreensão mais profunda. O nível histórico e antropológico focaliza a família enquanto um sistema de relações interpessoais submetido a uma multiplicidade de determinações socioeconômicas, geográficas, culturais, religiosas, jurídicas, políticas. Um outro nível relaciona-se com os sistemas de significações sociais, olhando a família como estrutura socializadora, transmissora de normas, padrões de conduta, valores, sistemas de significação, de representações sociais. Um terceiro nível de análise diz respeito a relações de causalidade entre interação familiar e saúde mental. Procura estabelecer relações de causalidade dialética entre a estrutura e a dinâmica familiar e a dinâmica da conduta. Neste nível, compreende-se a família como unidade interacional em que o sujeito emerge. Levando em conta esses três níveis de análise, a família será aqui entendida não como um grupo formado por um casal unido segundo as determinações da lei e os filhos constituídos nessa relação, mas como um grupo de pessoas que têm vínculos e que compartilham aspectos significativos de suas vidas. De modo mais claro, compreendemos que se trata de uma associação de pessoas que escolhem conviver por razões afetivas e assumem um compromisso de cuidado mútuo e, se houver, com crianças, adolescentes e adultos (SZYMANSKI, 2002, p. 9). Kaslow (citado em SZYMANSKI, 2002, p. 10) cita nove tipos de composição familiar que podem ser considerados família : 1. família nuclear, incluindo duas gerações, com filhos biológicos; 2. famílias extensas, incluindo três ou quatro gerações; 3. famílias adotivas temporárias (Foster); 4. famílias adotivas, que podem ser bi-raciais ou multiculturais; 5. casais; 6. famílias monoparentais, chefiadas por pai ou mãe; 7. famílias homossexuais com ou sem crianças; 8. famílias constituídas depois do divórcio; 9. várias pessoas vivendo juntas, sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo. Esses conceitos de família fornecem-nos elementos fundamentais para pensar as famílias em situações concretas. Pode-se dizer que não há uma única definição de família, estática, visto que se trata de uma instituição em contínua transformação histórica. Isso implica fugir de uma representação acabada do núcleo familiar, reconhecendo-o em sua especificidade, mas também em sua diversidade de formações. Nosso trabalho destina-se prioritariamente a famílias em situação de vulnerabilidade, tema este que chama a atenção para elementos de agravamento na condição de milhares de famílias. De acordo com Oliveira (1995, p. 9), por um ângulo que não é incorreto, mas insuficiente, grupos sociais vulneráveis poderiam ser defini-

288 INTEGRAÇÃO SILVA ET AL. Trabalho socioeducativo dos como aqueles conjuntos ou subconjuntos da população brasileira situados na linha de pobreza, definida em muitos dos trabalhos correntes na literatura brasileira e na internacional. Os maiores contingentes vulneráveis da sociedade brasileira, do ponto de vista econômico, são constituídos pelos grupos indigentes e pobres. Basicamente, entendemos que aspectos socioeconômicos mais amplos, como a evolução do neoliberalismo, gerando, por exemplo, sérios problemas no mercado de trabalho, são os mecanismos produtores dessa vulnerabilidade. Entendemos que a vulnerabilidade não se refere apenas ao aspecto econômico. Diz respeito também a questões de discriminação social. Certos grupos tornam-se vulneráveis pela ação de outros agentes sociais. Esta forma de pensar é importante porque os retira de uma condição passiva de vulnerabilidade, bem como por identificar processos de produção da discriminação social, que merecem ser compreendidos e anulados. O Estado ainda tem uma função relevante no sentido de propiciar a plena assunção da cidadania justamente pelos setores sociais vulneráveis; e apresenta potencialidades que o habilitam a desfazer as iniqüidades e desigualdades geradas pelo mercado. A auto-organização desses grupos, no bojo de uma redefinição das relações da sociedade civil com o Estado, é necessária para que tais grupos sejam capazes de assegurar a passagem, com suas próprias vulnerabilidades, do estatuto de carências para o estatuto dos direitos mais amplos. Caso isso não ocorra, a vulnerabilidade permanecerá vulnerável às relações de poder nesta sociedade tão desigual (OLIVEIRA, 1995, p. 19). Esse enfoque mostra-se sintônico com a proposta do Proasf, que revela possibilidades de um trabalho conjunto entre diferentes tipos de instituição (governamental, assistencial e de ensino/pesquisa). As ações a serem desenvolvidas por este Programa podem ser embasadas também nas palavras de Sposati (2004, p. 5), que se refere à necessidade de vigilância perante situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social que envolvem famílias/pessoas em diferentes etapas da vida (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos). Destaca as seguintes condições: pessoas com redução de capacidade pessoal, com deficiência ou em abandono; crianças e adultos vítimas de formas de exploração, de violência e de ameaças; vítimas de preconceito por etnia, gênero e orientação sexual; vítimas de apartação social que lhes impossibilite sua autonomia e integridade, fragilizando sua existência. Com um olhar também para o futuro, cabe ressaltar a importância das relações que envolvem família e criança. Na família é que se constituem, para a criança, os modelos de vínculos que serão reproduzidos em seus contatos posteriores com a comunidade na qual esteja inserida. De acordo com diferentes teóricos, a subjetividade de um indivíduo constrói-se a partir dos primeiros contatos que estabelece com aqueles que estejam a seu redor, figuras significativas que oferecem ao indivíduo uma medida sobre seu valor e o valor de seu potencial para transformar o meio e para satisfazer suas necessidades. Percebido desse ângulo, o grupo familiar atua como um modelo capaz de preparar um indivíduo para os contatos posteriores com outros elementos ou grupos, enfim, para sua inserção social. Desse modo, parece-nos que um trabalho com as famílias pode ser de significativa importância para a formação dos indivíduos. Aqui, vale registrar nossa concordância com Sposati (2004, p. 4), no sentido de que nossos serviços seriam norteados não por princípios de tutela, mas sim por princípios que favoreçam a conquista de condições de: autonomia, resiliência/sustentabilidade, protagonismo, acesso a oportunidades, capacitações, acesso a serviços, a benefícios, a condições de convívio e socialização, de acordo com sua capacidade, dignidade e projeto pessoal e social. O Proasf visa, em ação conjunta com as famílias envolvidas, a buscar novas alternativas de solução dos problemas cotidianos por elas enfrentados, descartando ações de caráter assistencialista. Assim, o Proasf espera contribuir para que as famílias reconstruam sua autonomia; construam seu percurso/trajetória para a inclusão social; construam referências e significados próprios, valorizando as relações; obtenham uma convivência familiar e comunitária mais saudável; tenham clareza de seu caráter de sujeitos de direitos (à informação, ao serviço de qualidade, à defesa de

JUL. AGO. SET. 2004 ANO X, Nº 38 285-289 INTEGRAÇÃO 289 direitos); e busquem alternativas de sustentabilidade coletivas que permitam melhores condições de vida à comunidade. Para que as políticas públicas tornem-se efetivas na atuação da assistência social junto às famílias, buscamos a proposição de ações coletivas e integradoras que viabilizem o protagonismo social, imprescindível ao exercício da cidadania. Referências bibliográficas KALOUSTIAN, S. M. (org.). Família brasileira, a base de tudo. São Paulo/Brasília: Cortez/Unicef, 2002, 5ª ed. NETTO LÔBO, P. L. Entidades familiares constitucionalizadas: Para além do numerus clausus. In: PEREIRA, R. da C. (org.). Família e cidadania O novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: IBDFAM/ Del Rey, 2002. OLIVEIRA, F. A questão do Estado. Vulnerabilidade social e carência de direitos. Cadernos Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais (ABONG). Subsídios à Conferência Nacional de Assistência Social 1. Brasília, out. de 1995. QUIROGA, A. P. de. Enfoques y perspectivas en psicología social: Desarrollos a partir del pensamiento de Enrique Pichon-Rivière. Buenos Aires: Cinco, 1987, 2ª e d. SÃO PAULO (Município). Plano de Assistência Social do Município de São Paulo (PLAS). São Paulo, 2002/2004. SPOSATI, A. Contribuição para a concepção do Sistema Único de Assistência Social SUAS. B elém, 2004. SZYMANSKI, H. Viver em família como experiência de cuidado mútuo: Desafios de um mundo em mudança. Serviço Social & Sociedade, ano XXIII, nº 71, pp. 9-25, set. de 2002.

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